Corso e pirataria no cabo da Roca e suas imediações (séculos XVI-XVII)

Cabo da Roca 1
Fig. 1 – Vista aérea do cabo da Roca.

Designado na Antiguidade por promontório de Ofiússa[1], Promontorium Lunae e Promontorium Magno[2], o cabo da Roca sempre foi um importante acidente geográfico para a navegação, servindo aos mareantes “de firme demarcação para buscarem a barra de Lisboa”[3]. Situado na área mais ocidental do mundo conhecido, caracterizada pelo forte vento e agitação marítima, este cabo, efectivamente, desde cedo foi o grande ponto de referência da costa de Sintra e da região que abarca, conhecidas pela sua perigosidade e pelos diversos naufrágios que proporcionaram ao longo dos séculos, sendo que a primeira referência documental que se conhece sobre acidentes marítimos no litoral sintrense remete para 1147[4].

Fig. 8
Fig. 2 – Outra vista área do cabo da Roca.
Fonte: https://www.e-cultura.sapo.pt//patrimonio_item/2513

Relativamente às actividades de corso/pirataria, os casos mais antigos que se conhecem estiveram associados a salteadores franceses, entre 1520 e 1537, se bem que alguns não tenham ocorrido propriamente em águas sintrenses, mas umas léguas mais ao largo, aparecendo o cabo da Roca como local de referência nas fontes históricas[5]. No entanto, sabe-se que este local, assim como as suas imediações, inclusive para Sul, envolvendo a área ao largo da enseada de Assentis e até à zona do Alto das Entradas, foram usados por inimigos que esperavam estrategicamente a vinda de navios ricamente carregados[6]. Não se pode esquecer, entre várias rotas que por ali passavam, que esta era uma das áreas de aproximação à costa para os navios que vinham dos Açores, onde se incluíam os que vinham da Índia, do Brasil, de África e de outras partes, pelo que acabava por ter grande procura. É bem provável que, conforme nos referiu Miguel Lacerda, os corsários/piratas fizessem sair gente em terra para, em posições altas, poderem controlar as movimentações da navegação. Além disso, existe uma ribeira que desagua junto ao cabo da Roca, a qual poderá ter sido usada para se obter água. Estas deslocações a terra seriam efectuadas em pequenas embarcações largadas dos navios.

Fig. 11
Fig. 3 – Cabo da Roca, também designado como The Rock of Lisbon.
Fonte: John Christian Schetky, 1861 (NMM).
Fig. 1 –
Fig. 4 – Cabo da Roca com vista parcial para a Enseada de Assentis e imediações.
Fotografia: Marco Oliveira Borges.

Foi nas proximidades da Enseada de Assentis, mais precisamente no Alto das Entradas ou Calhau das Entradas (sítio caracterizado por ser uma área de penhascos e de altura considerável em relação ao mar), que após a Restauração foi edificado o Forte de Nossa Senhora da Roca (ou Forte do Espinhaço)[7], do qual já só subsistem escassos vestígios das suas ruínas (fig. 7). De acordo com as investigações de Carlos Callixto, um inspector anónimo havia visitado o local em Abril de 1751, altura em que o forte já se encontrava bastante arruinado, ficando estimado que a sua reconstrução total orçaria pelos 1.300$00 réis.

À primeira vista, a importância para defender os navios de menor porte que por ali passavam, bem como a própria presença de corsários naquelas imediações e a necessidade de evitar que pairassem por ali, foram  argumentos mais do que válidos para se erguer um forte naquela área. Assim, de acordo com o dito inspector, o Forte de Nossa Senhora da Roca estava “num dos sítios mais importantes daquela marinha pelo muito que ampara dos inimigos as embarcações pequenas que fazem viagem para o Norte”[8].

Fig. 13
Fig. 5 – Forte da Roca numa gravura da segunda metade do século XIX.

Não se sabe por quantas peças de artilharia estava dotado em 1751. Porém, anos mais tarde, entre 1763 e 1764, sabe-se que estava artilhado com 4 peças de ferro: 2 de calibre 9 e 2 de calibre 6[9]. Todavia, os relatórios levados a cabo nas décadas seguintes viriam a tirar a importância estratégica e a utilidade defensiva deste forte. Em 1777, um oficial alegou que o “Forte não he de nenhuma utilidade, e assim só lhe bastão duas peças para servir de vigia. O paiol da pólvora está em bom estado. Para guarnecer esta fortaleza em tempo de guerra, no cazo que seja acommetida por alguma frota inimiga, bastar-lhe-ha ao menos um Cabo e oito artilheiros; presentemente se acha guarnecida por hum Cabo e trez Soldados infantes”[10]. Em 1796, num novo relatório, a importância da fortificação foi considerada “quaze inútil pois não defende porto algum e os seus tiros são tão mergulhantes que não poderão fazer efeito, por estar levantado sobre o plano do mar alguns 300 palmos; e além disto todos os navios se apartão deste Cabo [da Roca] por não darem a Costa”[11]. Por fim, num relatório de 1831 foi referido que não era “possível com o fogo feito da bateria deste Forte incomodar o inimigo, devido à sua grande altura sobre o mar”[12].

Em todo o caso, apesar da curta duração que teve e de se ter verificado a sua inutilidade para a defesa marítima dessa área, a verdade é que a intenção inicial que esteve por detrás da construção do forte estaria mesmo na necessidade de protecção dos navios de menor porte que se abrigavam de corsários naquelas enseadas e imediações. Talvez o poder de fogo que o forte dispunha acabou por ter um efeito mais dissuasor para os navios inimigos que se aventuravam por aquelas paragens do que propriamente operativo.

Fig. 14
Fig. 6 – Planta do forte de Nossa Senhora da Roca (ANTT).

De qualquer forma, tal como nos deixam perceber vários tipos de fontes, não há qualquer dúvida de que se estava perante uma área movimentada e que, apesar de bastante perigosa, era paragem frequente para piratas e corsários. De acordo com Manoel Pimentel, por exemplo, “na ponta desta Roca distante de terra o tiro de hum mosquete está huma baixa em que arrebenta o mar. Por entre a baixa, e a Roca tem ja passado navios pequenos fugindo dos Mouros, encostando-se mais à baixa que à Roca”[13]. Esta seria uma referência à Baixa do Broeiro (situada a cerca de 900 m a Noroeste do cabo da Roca), ou a outro rochedo das imediações, ficando o contínuo testemunho quanto à presença de piratas e de corsários nesta área sintrense, bem como de esta servir de refúgio a navios de menor porte que, liderados por mareantes conhecedores da geografia local, poderiam usar a presença dos rochedos à flor da água como armadilha para se defenderem da agressão de navios maiores. O embate contra os rochedos seria um naufrágio quase certo naquele local, sendo que na Baixa do Broeiro existe um navio naufragado e canhões submersos[14].

Fig. 15
Fig. 7 – Ruínas do Forte de Nossa Senhora da Roca (ou do Espinhaço) com vista para o Cabo da Roca, Enseada de Assentis e imediações (foto: André Manique).

Por fim, há que referir o ataque ao patacho Nossa Senhora da Conceição, do qual se sabe muito pouco. Referida como urca e patacho, havia velejado para a Índia em Abril de 1635, juntamente com as naus Santa Catarina de Ribamar e Nossa Senhora da Saúde. Sob capitania de João da Costa, que também ia como piloto, fez escala em Moçambique, onde largou 50 homens, e surgiu em Goa a 6 de Novembro, tendo iniciado o retorno a Portugal algures em 1637[15].

Uma vez na costa de Sintra, mais concretamente na área próxima do rio das Maçãs e já pelo dia 17 de Dezembro, entrou em combate e foi queimada por 4 navios de corsários muçulmanos[16]. Ainda que a historiografia tenho vindo a seguir as indicações de  Saturnino Monteiro, e nós próprios, em outros estudos, tenhamos colocado a hipótese mais concreta de João da Costa ter sofrido uma emboscada junto à enseada de Assentis[17], a verdade é que não se sabe ao certo o desenrolar dos acontecimentos. No entanto, o navio terá ido ao fundo perto da praia das Maçãs.

Marco Oliveira Borges | 2020

[1] Avieno, Orla Marítima, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica/Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 1992, pp. 22 e 47, n. 33.

[2] Vasco Gil Mantas, A rede viária romana da faixa atlântica entre Lisboa e Braga. Tese de Doutoramento, vol. I, Universidade de Coimbra, 1996, p. 882; idem, “O porto romano de Lisboa”, in G. P. Berlanga e J. P. Ballester (coords.), Puertos fluviales antiguos: ciudad, desarrollo e infraestructuras, Valência, Universidad de Valencia, 2003, p. 15.

[3] Fr. Joseph Pereira de Santa Anna, Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia Nestes Reynos de Portugal, Algarves e seus Domínios, t. II, Lisboa, Officina dos Herdeiros de Antonio Pedrozo Galram, 1751, p. 115.

[4] Altura em que as forças cruzadas vieram auxiliar D. Afonso Henriques na tomada de Lisboa aos muçulmanos (cf. Marco Oliveira Borges, “Em torno da preparação do cerco de Lisboa (1147) e de uma possível estratégia marítima pensada por D. Afonso Henriques”, História. Revista da FLUP, IV: 3 (2013), pp. 126-129).

[5] Idem, “Corso e pirataria na costa de Sintra durante os séculos XVI-XVII”, comunicação apresentada no V Encontro de História de Sintra (Sintra, 28/10/2016); idem, O trajecto final da carreira da Índia na torna-viagem (1500-1640). Problemas à navegação entre os Açores e Lisboa: acções e reacções, Lisboa, Tese de Doutoramento, 2 vols., Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (a aguardar defesa).

[6] Idem, “Portos e ancoradouros do litoral de Sintra-Cascais. Da Antiguidade à Idade Moderna (I)”, in Jornadas do Mar 2014. Mar: uma onda de progresso, Almada, Escola Naval, pp. 162-163; idem, Paisagem cultural marítima de Sintra: uma abordagem histórico-arqueológica”, in Pedro Fidalgo (coord.), Estudos de paisagem, vol. III, Lisboa, Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2017, pp. 243-250.

[7] Carlos Callixto, Fortificações da Praça de Cascais a Ocidente da Vila, sep. da Revista Militar, Lisboa, 1980, pp. 4-5.

[8] Joaquim Boiça, Maria Rombouts de Barros, Margarida de Magalhães Ramalho, As Fortificações Marítimas da Costa de Cascais, Cascais, Quetzal, 2001, p. 212.

[9] Carlos Callixto, op. cit., pp. 5-6.

[10] Joaquim Boiça, Maria Rombouts de Barros, Margarida de Magalhães Ramalho, op. cit., p. 212.

[11] Idem, ibidem, p. 213.

[12] Carlos Callixto, op. cit., p. 8.

[13] Manoel Pimentel, Arte de Navegar, em que se ensinam as regras praticas, e os modos de cartear, e de graduar a balestilha por via de Numeros e muitos problemas úteis à navegação, Lisboa, Officina de Francisco da Silva, 1762, p. 526.

[14] Paulo Alexandre Monteiro, “Canhões na Roca. Análise preliminar de um conjunto submerso de peças de artilharia”, in Al-Madan, sér. II, t. 15, 2007, p. 159; idem, “O património cultural subaquático da costa de Sintra” (Sintra, 02/08/2014).

[15] Relações da carreira da Índia. Navios da carreira da Índia (1497-1653), códice anónimo da British Library. Governadores da Índia, pelo Pe. Manuel Xavier, Lisboa, Publicações Alfa, 1989, pp. 85 e 166-167; Memórias das armadas da Índia. Org., introd. e notas de João C. Reis, Macau, Edições Mar-Oceano, 1990, p. 271; Paulo Guinote, Eduardo Frutuoso e António Lopes, As armadas da Índia, 1497-1835, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2002, p. 169.

[16] BNP, Ms. 26, 153, n.º 129; Relações da carreira […], pp. 166-167; Memorias das armadas […], p. 271.

[17] Saturnino Monteiro, Batalhas e combates da marinha portuguesa, vol. VI, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1995, p. 152; José António Rodrigues Pereira, Grandes batalhas navais portuguesas. Os combates que marcaram a História de Portugal, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2009, pp. 193-195; idem, Grandes naufrágios portugueses, 1194-1991. Acidentes marítimos que marcaram a História de Portugal. Pref. de Adolfo Silveira Martins, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2013, pp. 204-205; Marco Oliveira Borges, “Portos e ancoradouros […]”, p. 162; idem, “Paisagem cultural marítima […]”, pp. 245-247.

Videoclipe o “Mar de Cascais”

 

Aproveitei algum do meu tempo de quarentena para fazer este videoclipe instrumental sobre o “Mar de Cascais”. Para tal, usei imagens de arquivo que fui captando sobretudo ao longo dos últimos dois anos. Nada foi planeado, o cenário de quarentena é que levou a isto, pelo que fiquei limitado ao uso dessas imagens. Gostaria de ter enriquecido o videoclipe com mais imagens em movimento, assim como com outras imagens de actividades desenvolvidas nesta costa, pois há muito mais no mar de Cascais para ver, mas, perante a crise actual, terá de ficar para outras oportunidades.

Nestes tempos difíceis, em que todos devemos ficar em casa para evitar ainda mais a disseminação do vírus Covid-19, aqui fica um cheirinho do mar de Cascais. No videoclipe podemos ver várias perspectivas do mar, as cetárias romanas, pescadores, os apetrechos de pesca, Cascais medieval, os barcos, os acidentes marítimos, Cascais actual, a procissão a Nossa Senhora dos Navegantes, o lixo marítimo, etc.

Em breve, talvez também surja algo no mesmo contexto para a costa de Sintra. Até lá, vejam o vídeo (encurtador.com.br/eipL7), subscrevam o canal no Youtube e activem as notificações para ficarem a par das novidades.

Marco Oliveira Borges | 2020

Sexualidade a bordo dos navios durante os séculos XVI-XVII

Pero Dias
Navios da carreira da Índia de início do século XVI.

Ausentes de terra durante várias semanas ou largos meses, os homens embarcados em navios com diferentes destinos recorriam ao onanismo, à sodomia e, em certos casos, até tinham relações sexuais com mulheres[1]. Contudo, as práticas nem sempre eram consentidas de livre vontade, podendo ser forçadas, até mesmo por corsários e piratas que apresavam navios ou que atacavam povoações costeiras e levavam os seus habitantes. Neste texto olharemos com maior pormenor o caso dos navios e das pessoas que partiam do rio Tejo rumo à Índia e que faziam a viagem de regresso a Lisboa.

Mulheres a bordo dos navios

A presença de mulheres a bordo dos navios foi uma realidade durante a expansão marítima portuguesa, destacando-se, nas fontes históricas, o caso das que partiam para a Índia ou que de lá vinham. Todavia, exceptuando em alguns casos, sobretudo quando capitães ou fidalgos importantes recebiam autorização para levaram as suas esposas e filhas, era proibido o embarque de mulheres, pelo que muitas iam sendo embarcadas ilegalmente.

Se para alguns homens a existência de mulheres a bordo não levantava grandes problemas, para outros era muito inconveniente, sendo que a sua presença no seio de uma tripulação exclusivamente masculina poderia ser vista como a causa dos males e das adversidades que surgiam durante as viagens. Entre mulheres de fidalgos, órfãs, mancebas, aventureiras e prostitutas, as que viajavam solteiras estavam associadas, segundo a correspondência dos padres da época, à prostituição a bordo, à origem de distúrbios, à falta de segurança, à destruição de costumes e à indisciplina, pelo que eram sujeitas a castigos ou largadas nalgum local de escala da viagem. Face a essa presença feminina, considerava-se que os homens faziam mal as suas vigias, revelavam atitudes negligentes e descuidavam-se noutros aspectos de segurança, podendo levar a acidentes a bordo ou até a naufrágios.

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Mapa da carreira da Índia. Viagem anual entre Lisboa e os portos da Índia e vice-versa.

Romances, vida sexual e casamentos

Apesar da forte contestação e perseguição a bordo dos navios da carreira da Índia, movida pelos padres às mulheres, chegaram a ocorrer romances e casamentos em pleno mar. Em 1545, um caso vivido na nau Burgalesa terminou em casamento. A história ligou um cavaleiro que se apaixonou pela filha de um outro passageiro ilustre e que pediu a sua mão em casamento. Porém, a celebração teve lugar apenas em Goa. Contrariamente, em 1562 ocorreram dois casamentos numa nau. O primeiro deles teve o consentimento de todos, por não se registar qualquer impedimento, enquanto que o segundo ocorreu clandestinamente, em virtude de o capitão do navio ter proibido tal união, tendo alegado que havia suspeita de “cunhadio”.  É que inicialmente o homem e a mulher haviam dito que viajavam enquanto cunhados, pelo que num momento posterior não conseguiram provar o contrário.

Como se desenrolava a vida sexual a bordo dos navios que partiam para a Índia transportando, por norma, cerca de 500 homens, poucas mulheres e que, em média, demoravam perto de seis meses a finalizar a viagem? Sobre este tema, como seria de esperar, as fontes não são muito expressivas. Todavia, adivinha-se com facilidade, e comprova-se com alguns dados disponíveis, que os mais ousados tentavam toda a sorte de expedientes para se aproximarem das mulheres embarcadas, se bem que às vezes com consequências trágicas ou então simplesmente caricatas.

Vivendo num espaço marcado pela promiscuidade e em que praticamente não havia privacidade, exceptuando no caso daqueles que tinham compartimentos dos navios reservados, é muito provável que tenham sido frequentes as situações de flagrante sexual e consequente aplicação de castigos, podendo mesmo levar à morte, ainda que muitas também devam ter sido abafadas e nem sempre penalizadas. Em todo o caso, no tempo de Afonso de Albuquerque, Rui Dias, português de boa linhagem oriundo de Alenquer, foi apanhado na câmara da nau do governador com uma escrava. O caso ocorreu na Ásia, tendo Rui Dias, ao que parece, sido encontrado em flagrante sexual com essa mulher. Consequentemente, foi condenado ao enforcamento, sendo que nem o apelo de outros portugueses fez Albuquerque recuar.

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Representação de uma nau numa carta náutica do Atlântico Sul e Oceano Índico (1510).

Olhando para o caso da prostituição a bordo, algo que seria frequente, parece-nos que as mulheres que iam como prostitutas estavam apenas ao alcance de um pequeno grupo de homens onde se incluíam capitães, pilotos, mestres e armadores, a não ser que, por vezes, eles não tivessem conhecimento da sua presença ou permitissem o contacto com homens comuns. Contudo, muitas mulheres que ficaram conotadas com a prostituição poderiam vir apenas como mancebas. Numa carta de 1532, o bispo D. Fernando Vaqueiro queixou-se ao rei de que tinha viajado muito desgostoso para a Índia devido a Vicente Gil (armador da nau Graça) vir publicamente amancebado, consentindo que alguns oficiais viessem na mesma situação. O bispo repreendeu Vicente Gil por várias vezes, até porque o escrivão da nau requereu previamente ao armador que cessassem tais situações, mas o homem não ligou ao que era dito nem às penas que D. João III tinha decretado para quem trouxesse mulheres a bordo.

Embora a prostituição tenda a ser vista como uma actividade desenfreada, a verdade é que seria controlada e levada a cabo em certos locais que aqueles poucos homens tinham acesso. Porém, esta situação das prostitutas estarem apenas disponíveis para um pequeno grupo de homens acabaria por ser um enorme problema e podia gerar conflitos graves, visto que muitos dos que tinham conhecimento da sua presença ou que testemunhavam actos sexuais também sentiam necessidade de satisfazer os seus impulsos. Não conseguindo comprazer o desejo sexual com aquelas que iam embarcadas, os homens que viajavam para o ultramar tinham que esperar até que os navios fizessem escala nalgum local e pudesse haver contacto com alguma mulher, situação que levava meses. Todavia, é possível que devam ter havido momentos de maior liberdade em que as mulheres possam ter estado envolvidas com um número mais elevado de homens e em espaços à vista de muitos outros, se bem que esse fosse um factor para maior desordem a bordo e perigo quanto à navegação, daí também as sucessivas queixas dos missionários.

Seja como for, é preciso atenuar, de facto, o peso da prostituição, visto que nem todas as mulheres eram prostitutas. Por outro lado, e embora numa condição social diferente, sendo esposas de homens importantes, órfãs, etc., outras mulheres poderiam vir a ter problemas com homens durante o percurso. Viajando entre centenas de indivíduos, muitos deles criminosos de delito comum saídos das prisões, aquelas que não estivessem na protecção dos seus maridos ou de homens importantes poderiam ser alvo de um assédio desenfreado. Mesmo as que vinham na companhia dos maridos e que, com o decorrer da viagem, ficavam viúvas, poderiam a partir daí ser um alvo fácil.

Em 1608, na atribulada e trágica viagem da nau Nossa Senhora da Salvação, que naufragou na costa de Mombaça, iam embarcadas três órfãs do recolhimento do castelo de Lisboa, estando confiadas a uma passageira de consideração. O capitão da nau, D. Luís de Sousa, andou desinquietando as órfãs, tanto a bordo como em Mombaça, onde a tripulação se acolheu depois do naufrágio. Acabou por ser ordenada uma averiguação, a propósito do comportamento do impulsivo capitão e de este pretender devassar o recato das jovens passageiras, uma das quais acabou por morrer durante a viagem. A bordo da nau seguia igualmente um embaixador do rei da Pérsia, o qual foi assaltado pelos fidalgos, que tomaram o seu dinheiro à força. Por estes incidentes, pelo naufrágio da nau e possivelmente por outros que ficaram por conhecer, o capitão D. Luís de Sousa, posteriormente, andou homiziado.

Tentando procurar e entrar em contacto com mulheres clandestinas ou que vinham isoladas e sob protecção, alguns homens poderiam embocar em situações bastante caricatas e ser alvo do registo escrito dos missionários. Veja-se, por exemplo, o caso de um homem morto por ferimentos de um tubarão depois de se ter atirado ao rio para tentar ver melhor as mulheres que seguiam a bordo de uma nau da carreira da Índia:

“Morreram muitos [durante a viagem para a Índia] entre os quais foi um mancebo que, andando nadando no rio, e segundo alguns diziam era para ir ver umas mulheres que estavam em a varanda do leme [do navio], e andando assim nadando veio um tubarão que lhe levou uma coxa da perna que lhe não deixou mais que o osso e assim um pedaço de um braço. Acudiram-lhe logo e o trouxeram para a terra, onde o  enterraram e queira Nosso Senhor que estivesse confessado, ou ao menos com contrição dos seus pecados e esperança de misericórdiaa hora da sua morte. Aqui verão, caríssimos irmãos quanto bem é estar em graça com Nosso Senhor e aparelhados para todas as horas”[2].

O caso remonta a 1562, altura em que se fazia escala em Moçambique. É muito provável que estas mulheres que o homem tentava ver fossem órfãs, moças que, geralmente, iam ao cuidado de senhoras da nobreza. Contudo, isso não impedia que a sua presença suscitasse grande curiosidade entre as tripulações e demais passageiros. De modo a evitar situações problemáticas, estas mulheres viajavam fechadas num camarote da nau, normalmente à popa, mas com acesso a uma varanda.

Numa deslocação entre Lisboa e os portos asiáticos e vice-versa, se houvessem mulheres grávidas a bordo ou que engravidassem já no mar, o nascimento poderia ocorrer durante a viagem. Note-se que normalmente este tipo de viagens duravam 6 meses, mas nalguns casos, se fosse necessário invernar, era possível que se atingisse um ano e meio. Em 1610, de acordo com o padre francês Francisco Pyrard de Laval, durante a torna-viagem e antes da chegada ao cabo da Boa Esperança, uma dama mestiça oriunda da Índia, mulher de um português, muito bela e com cerca de trinta anos, entrou em trabalho de parto em pleno mar. Acabou por ter a criança, mas ambas morreram, tendo sido lançadas ao mar.

Onanismo e  sodomia

No meio de centenas de homens embarcados, e face a restrições de contactos com as poucas mulheres presentes ou até mesmo à sua ausência, o onanismo e a sodomia acabavam por ser frequentes, havendo dados sobre esta última prática e execuções punitivas a bordo. Em 1548, numa carta dirigida ao rei, D. João Henriques, capitão-mor de uma armada da carreira da Índia, deu a conhecer que recebeu uma denúncia de sodomia, actividade que era severamente punida. O caso punha em acção Diogo Ramires, castelhano que cometera esse pecado com dois criados de D. Manuel Telo. Consequentemente, “por ser coisa tão abominável ante Deus”, e de modo a cumprir a lei e ordenação régia, D. João Henriques tomou parecer com os fidalgos, cavaleiros, padres e oficiais da nau, acabando por condenar o sodomita castelhano à morte. Diogo Ramires chegou a confessar a sua acção, sendo assim executado como “bom cristão”.

Por seu turno, os rapazes mais novos que viajavam nas naus também chegavam a ser um alvo sexual dos homens mais velhos. Numa carta régia de 1620, dirigida ao vice-rei da Índia, o monarca referia que fora informado de que nas naus que partiam de Lisboa iam embarcados muitos meninos que os soldados, à chegada à Índia, logo levavam para as suas casas, abusando deles. Como medida punitiva, o rei determinou que se deveria investigar o assunto e proceder contra os soldados conforme o que estava disposto nas leis e instruções régias.

A violência dos corsários

Entre as situações de violência de corsários franceses contra a navegação portuguesa, há um caso conhecido em que as mulheres que vinham embarcadas foram violadas. O acontecimento teve lugar no início de Junho de 1524, quando uma caravela portuguesa que se deslocava na costa de Lagos foi atacada por franceses. Ao que parece, a situação decorreu como represália por se terem prendido, em Lisboa e em Lagos, alguns franceses que haviam sido capturados por alegada associação a actos de corso. Nesse mesmo ano, provavelmente no seguimento de acções de represália e não muito longe da barra do Tejo, corsários franceses assaltaram outra caravela portuguesa, castrando os homens que vinham nela.

Marco Oliveira Borges | 2019

[1] Este artigo foi escrito para ser publicado na revista Visão História, mas, na versão que veio a ser publicada, sofreu modificações sem o nosso consentimento – inclusive no titulo, que foi completamente alterado –, sendo que a última frase não é de nossa autoria. Além disso, no final do texto surgem imprecisões sobre a nossa pertença institucional e percurso académico (cf. Marco Oliveira BORGES, “Como era a bordo das naus?”, in Visão História, n.º 54, 2019, pp. 48-50). Face ao exposto, decidimos disponibilizar aqui a versão original do artigo. Importa ainda referir que neste texto retomamos muitas das informações já apresentadas num outro estudo, no qual são indicadas as fontes e a bibliografia usada: Marco Oliveira BORGES, “Aspetos do quotidiano e vivência feminina nos navios da carreira da Índia durante o século XVI: primeiras mulheres, buscas e sexualidade a bordo”, in Revista Portuguesa de História, t. 47, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, pp. 195-214. Outros dados, fontes e estudos podem ser igualmente consultados em Marco Oliveira BORGES, O trajecto final da carreira da Índia na torna-viagem (1500-1640). Problemas à navegação entre os Açores e Lisboa: acções e reacções. Tese de Doutoramento, 2 vols., Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (a aguardar defesa).

[2] Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente. Colig. e anot. por António da Silva Rego, vol. IX, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1953, p. 72.

 

Cascais, antes de mais, é terra de pescadores!

Pescadores
Fig. 1 – Pescadores e varinas na praia da Ribeira em meados do século XX.

O documento histórico mais antigo que alude a Cascais remonta a 1282, resultando dos foros e privilégios concedidos pelo rei D. Dinis ao alcaide do mar e homens do mar de Tavira, conforme os que decorriam em Lisboa[1]. No que respeita ao caso casca(l)ense, alude a Martim Anes, que fora alcaide do mar em Lisboa e que, durante o desempenho do seu ofício, punha alcaides do mar em Cascais e Sesimbra. Estes alcaides eram como que capitães de porto nomeados pelo almirante, existentes nas principais cidades e vilas marítimas portuguesas, desempenhando funções de justiça e de organização[2]. No referido documento, é indicado que os alcaides do mar tinham a obrigação de prender os pescadores quando estes estavam em terra, quando se feriam ou faziam alguma coisa “sem guisa”[3].

1282
Fig. 2 – Documento de 1282 que alude a “Cascays” e aos pescadores locais.
Fonte: ANTT, Chancelaria de D. Dinis, liv. I, fl. 46v.

Embora a actividade piscatória casca(l)ense venha atestada na documentação histórica desde essa altura – ainda que de forma indirecta –, a pesca já era exercida neste território desde tempos ancestrais, sendo que no Período Romano chegou a existir uma fábrica de preparados piscícolas na área da actual Rua Marques Leal Pancada[4], junto àquele que hoje é o bar “Spicy”. Descoberta em 1992 e alvo de trabalhos arqueológicos nos anos seguintes, em breve uma das cetárias dessa fábrica ficará permanentemente visível ao público.

11 - Cetária romana
Fig. 3 – Uma das cetárias romanas da área portuária de Cascais. Fotografia cedida por Guilherme Cardoso.

Durante os últimos séculos da Idade Média, o peixe de Cascais era carregado para abastecer vários locais do Reino e, muito possivelmente, do exterior, embora neste último caso apenas se confirme uma cidade: Ceuta. As provisões eram constituídas por sardinhas – a espécie que ganha maior relevância na documentação preservada –, pescadas, congros e polvos. Posteriormente, o foral de Cascais (1514) também refere a existência de santolas, lagostas e outros tipos de marisco, atestando a riqueza deste mar. A fama do peixe de Cascais era tal que o mesmo chegou a ser elogiado pelo autor da História do Reino do Congo:

“Tem os rios, e crião em si grande quantidade de peixe do de Portugal: barbos, picões, bordalos, pardelhas, saramugas, esquilhões, peixe que se dá aos doentes, angolas, e outros muitos mui estranhos dos de cá; no mar corvinas, sardinhas, pescadas, mas não tão boas como as de Cascaes”[5].

No plano religioso, a memória medieval casca(l)ense também se liga às actividades piscatórias, havendo uma referência ao aparecimento de uma imagem de Nossa Senhora (com o menino Jesus nos braços) nas redes dos pescadores locais. O acontecimento terá ocorrido em 1362, ou até mesmo antes, muito possivelmente resultante de uma figura de proa decorativa de um navio naufragado. Das várias versões existentes desta memória, seguem-se dois trechos distintos:

Guia - pescadores
Fig. 4 – Pescadores ao largo da Guia.

“E foy que tendo na visinhança da villa de Cascaes lançado suas redes alguns pescadores no anno de 1362, quando as recolheram acharam nellas a melhor pesca que podiam desejar, que era huma pequena imagem da Virgem Sanctissima Senhora Nossa com o minino Jesu nos braços, lavrada em madeyra de cipreste, de rara belleza e fermosura. Alegres os pescadores com tam precioso achado, e desejando que fosse venerada com o culto e reverencia que lhe era devida, resolverem de a collocar na igreja de Sancto Agostinho”[6].

“O ano de 1362 […] ou alguns anos antes deste, segundo se colige de alguns autores, lançaram certos pescadores da Vila de Cascaes […] suas redes ao mar, em a Vigília da Assumpção de Nossa Senhora, com o animo de lhe oferecer tudo o que recolhessem naquele lanço: e como em outros que haviam feito antes, tiveram grande quantidade de pescado, pareceu-lhes seria aquele lanço mais copioso, pela devoção, e piedade com que o haviam oferecido à Virgem Nossa Senhora. Foram também afortunados em o lanço, que ao levantar das redes as acharam não só cheias de toda a variedade de peixes; mas presa pela parte de fora em uma malha, uma formosa Imagem d’aquela Senhora a quem haviam oferecido misteriosamente o lanço”[7].

A imagem haveria de ser crismada de Nossa Senhora da Graça e, curiosamente, em vez de ficar em Cascais ou até mesmo em Sintra – que na altura tinha jurisdição sobre Cascais –, foi transportada para o mosteiro dos Eremitas de Santo Agostinho de Lisboa sob solene procissão. Para A. H. de Oliveira Marques, esta situação deveu-se à não existência de uma igreja em Cascais suficientemente importante, nem sequer ermida que a pudesse receber[8].

Caracterizada durante largos séculos por ser, sobretudo, uma terra de pescadores, de camponeses e de pequenos e médios comerciantes, assim como por estar ligada às actividades de apoio à navegação com destino a Lisboa e à defesa costeira[9], sendo regida a nível local por condes e marqueses, somente em finais do século XIX é que Cascais começou a ser estancia dos monarcas portugueses, trazendo atrás de si os diversos fidalgos que integravam a Corte e que começaram a edificar grandes habitações na zona costeira, marcando ainda hoje a paisagem cultural marítima.

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Fig. 5 – Porto e vila de Cascais numa gravura publicada por Georg Braun 
e Frans Hogenberg, Civitates Orbis Terrarum, vol. I, 1572 (ICGC).

O centro da vida portuária de Cascais sempre foi a praia da Ribeira, também conhecida por praia dos Pescadores e praia do Peixe, tendo assistido, ao longo da História, a diversos ataques de corsários e de piratas, assim como a invasões de inimigos que pretendiam conquistar Portugal. “Os conflitos de 1383-1385 que envolveram Portugal e Castela, bem como a invasão liderada pelo duque de Alba, em 1580, e os diversos actos de corso e pirataria documentados a partir do século XV, são exemplares no que respeita à importância estratégica de Cascais enquanto porta de entrada de forças inimigas vindas por mar”[10]. Daí que a costa cascalense tenha sido fortemente fortificada ao longo dos séculos.

Era, e ainda é, na praia da Ribeira que os pescadores desembarcavam quando vinham da faina, mas muitos, ao longo dos séculos, não lograram voltar a terra, tendo sido vítimas de acidentes no mar. Um desses acidentes ocorreu com o barco a motor “Ana Paula”, em Julho de 1962, ao largo do cabo Raso. Dos sete tripulantes que tinham saído durante a noite para pescar apenas um sobreviveu, tendo nadado para terra, acabando por ser recolhido por uma chata que transmitiu a informação em Cascais.

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Fig. 6 – Notícia presente in A Nossa Terra, Julho de 1962.

No que diz respeito à tradição local, nos últimos trinta anos certos costumes/elementos foram desaparecendo de forma acelerada, enquanto que outros foram sendo esquecidos ou postos de lado. Quem cresceu na baía entre as décadas de 1980 e 1990, por exemplo, habituou-se à chegada, pela tarde, dos arrastões carregados de peixe para ser vendido na lota local. Entre eles, refira-se o “Brutimar”, o “Carlos Tiago”, o “Cruz de Malta” (fig. 7), o “Felizardo”, o “Marina Dulce”, o “Pedrito”, o “Pedro Manuel”, o “Raio de Luz”, o “Verita”, etc. Para a descarga, já na década de 1990, contava-se com o auxílio das chatas do Trinta e da chata do Manel, o Careca, fazendo a ligação entre os arrastões e o pontão de desembarque. Com o abate ou a venda dos arrastões locais terminou a pesca de arrasto com base no porto de Cascais, algo que durante várias décadas foi imagem de marca a nível local.

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Fig. 7 – “Cruz de Malta” ancorado em Cascais (2004).
Década de 1980
Fig. 8 – Chatas na praia da Ribeira.

O mesmo se pode dizer das chatas, embarcações típicas de Cascais. No entanto, será que alguém se preocupa com o seu desaparecimento? No Verão de 2016, quando tive oportunidade de escrever um texto sobre o bairro dos Pescadores, contei apenas 3 chatas em frente à praia da Ribeira e de pequenas dimensões, isto quando em meados da década de 1990 chegavam a estar perto de 20 nas amarrações e na praia[11]. Quantas se podem ver hoje em dia? Ontem, ao final da tarde, apenas era visível uma, mas, curiosamente, até estava varada na praia, depois de ter sido feita a limpeza do casco (fig. 10). Longe vão os tempos em que inúmeras chatas, agitadas nas amarrações pelo vento de Norte, integravam a paisagem marítima casca(l)ense, servindo para a pesca ou de embarcações de apoio às actividades piscatórias e de transbordo.

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Fig. 9 – Vara-se uma chata do Trinta para limpeza do fundo (2004). Na fotografia: Tó Simão (?), Armando e “Fininho”.
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Fig. 10 – Chata varada na praia para limpeza do casco (26/04/2019).

Quando era miúdo, lembro-me que chegava a haver um evento anual em que era simulada a chegada de Nicolau Coelho ao porto de Cascais, isto a propósito do regresso da primeira expedição marítima portuguesa à Índia (1497-1499). Várias escolas do concelho e de fora eram convidadas, havendo diversas actividades na praia da Ribeira associadas às profissões da época dos Descobrimentos, acabando o evento com comes e bebes, não faltando sardinhas e pão. Sendo Cascais uma vila cheia de História, seria importante retomar este tipo de iniciativas ligadas ao seu passado marítimo e de Portugal.

Outra memória recente, esta ainda mais fresca, diz respeito à época da construção da Marina de Cascais, que veio a tapar parte da praia de Santa Marta e a tapar por completo a pequena praia dos Tropas, também conhecida por praia dos Namorados. Mas antes disso, a discussão sobre a construção da Marina de Cascais prolongou-se bastante no tempo, chegando a existir um projecto que propunha a sua construção na Costa da Guia.

Em pleno Inverno de 1997, com a aproximação de um temporal de Sudoeste, três amigos (Bernardo, Fernando e Marco), antes do seu treino habitual de Hóquei de Sala, foram fotografados a passear no pontão de Cascais (fig. 11), altura em que ainda não existia a Marina, se bem já tivessem sido descarregadas toneladas de pedra para a construção do molhe.

Inverno de 2007
Fig. 11 – Cascais durante a aproximação de um temporal de Sudoeste.

Nesse tempo, após as marés-vivas e tempestades oceânicas, era costume ver alguns pescadores da praia da Ribeira, à borda-d’água e durante a baixa-mar, a apanhar diversos objectos, sobretudo moedas provenientes de naufrágios ou perdidas na areia ao longo dos anos, ficando ali soterradas. Não usavam detectores de metais, apenas as mãos para escavar entre a areia e as pequenas pedras postas a descoberto pela baixa-mar. Entre as moedas que apanhei naquela praia, quase sempre de 100 escudos ou outras igualmente de décadas recentes, também encontrei uma mais antiga, de 1808, altura em que a Corte, devido às invasões francesas, rumou ao Brasil. Foi a moeda mais antiga que achei, e até cheguei a mostrá-la a uma professora de História que tive na escola preparatória, mas sabe-se de pescadores que, ao longo das décadas, encontraram exemplares muito mais antigos, até mesmo do Período Romano. A moeda mais antiga que se sabe ter sido apanhada naquela praia é do século I d.C.[12]. Depois da construção da Marina, este costume pouco conhecido – mas comum nas comunidades piscatórias – perdeu-se, sobretudo porque o mar deixou de entrar na praia da Ribeira com a força de outrora, deixando de trazer aqueles e outros objectos.

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Fig. 12 – Praia da Ribeira durante um temporal (meados do século XX).

E as festas do mar? Outra tradição que foi perdendo identidade é a realização, precisamente, das festas do mar, antigamente viradas verdadeiramente para o mar, para a praia e para os pescadores, com diversos eventos na areia e na água: corridas de cocos e de chatas, corridas na areia, competição de cordas, garraiada, etc. Contudo, desde há vários anos que se tornaram, como alguns referem, exclusivamente num género de festival de música de Verão.

Festas do Mar
Fig. 13 – Cartaz das Festas do Mar de 1997. Atente-se nas diversas actividades que estavam presentes.

O tempo não volta atrás, mas é sempre possível recuperar, preservar memórias e as tradições e passá-las às gerações vindouras. Cascais não pode viver sem isso, tal como não pode fugir ao progresso e à inovação. O que não se quer é que seja somente uma atracção baseada em programas virados para a vida turística, para quem vem de fora. É sempre possível conciliar os vários aspectos, mas há que privilegiar as raízes piscatórias e a cultura local.  Quem quiser conhecer ou relembrar um pouco do passado recente e as gentes locais, este vídeo de 1996 é um bom ponto de partida: Cascais: o Fim da Linha (https://arquivos.rtp.pt/conteudos/cascais-o-fim-da-linha/). Muito fica por dizer e conhecer, sendo que nunca é demais relembrar que, historicamente falando, Cascais, antes de mais, é terra de pescadores!

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Fig. 14 – José Marques, mais conhecido por Zé Rabuça, antigo pescador local.

Marco Oliveira Borges | 2019

[1] ANTT, Chancelaria de D. Dinis, liv. I, fl. 46v.

[2] A. H. de Oliveira MARQUES, “A arte da guerra”, in Nova História de Portugal, vol. IV – Portugal na Crise dos séculos XIV e XV, Lisboa, Editorial Presença, 1986, p. 362.

[3] ANTT, Chancelaria de D. Dinis, liv. I, fl. 46v.

[4] João CABRAL e Guilherme CARDOSO, “Escavações arqueológicas junto à torre-porta do Castelo de Cascais”, in Arquivo Cultural de Cascais. Boletim Cultural do Município, 12 (1996), pp. 127-145; Guilherme CARDOSO, “As cetárias da área urbana de Cascais”, Setúbal Arqueológica, 13 (2006), pp. 145-150.

[5] História do Reino do Congo (Ms. 8080 da Biblioteca Nacional de Lisboa). Pref. e notas de António Brásio, Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1969, p. 31.

[6] História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas de Lisboa […], t. I, Lisboa, Nas Oficinas da Gráfica Santelmo, 1950, cap. IV, pp. 113 e 123.

[7] Fr. Agostinho de STA. MARIA, Santuário Mariano, 2.ª ed., 1.º liv., Lisboa, Miscelânea, 1933, pp. 93-94.

[8] A. H. de Oliveira MARQUES, “Sintra e Cascais na Idade Média”, in Novos Ensaios de História Medieval Portuguesa, Lisboa, Editorial Presença, 1988, p. 150.

[9] Marco Oliveira BORGES, O porto de Cascais durante a Expansão Quatrocentista. Apoio à navegação e defesa costeira. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2012.

[10] Idem, “Povoamento, estruturas e navegação na costa de Cascais entre a Idade do Ferro e o Período Islâmico” (no prelo).

[11] Idem, “Uma visita ao bairro dos Pescadores (Cascais): em busca de vestígios de actividade piscatória recente”, 2016 (https://sintraecascais.wordpress.com/2016/08/29/uma-visita-ao-bairro-dos-pescadores-cascais-em-busca-de-vestigios-de-actividade-piscatoria-recente/).

[12] Guilherme CARDOSO, Carta arqueológica do concelho de Cascais, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1991, p. 57.

O porto do Touro (Cascais) e o sítio arqueológico do Espigão das Ruivas (Sintra) entre a Antiguidade e a Idade Moderna

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Fig. 1 – Porto do Touro e sítio arqueológico do Espigão das Ruivas.

O local[1] conhecido como “porto do Touro”[2] situa-se próximo da Biscaia, no limite costeiro Noroeste do concelho de Cascais, um pouco a Sudeste do cabo da Roca, tendo sido utilizado até muito recentemente como porto de apoio à pesca. É ladeado a poente pelo sítio arqueológico habitualmente denominado “Espigão das Ruivas” (rochedo alto, sobranceiro ao mar, de acesso extremamente difícil e perigoso[3]), o qual tem vindo, desde a década de 1880 até aos nossos dias, a ser referido como pertencendo ao concelho de Cascais. No entanto, o assunto levanta dúvidas, parecendo que integra já a parte costeira de Sintra. A arqueologia mostrou que estes locais tiveram uma utilização/ocupação que remonta à Idade do Ferro, com continuação durante o Período Romano e Idade Média, se bem que ainda não esteja devidamente esclarecido qual o tipo de aproveitamento e funcionalidade dos mesmos em períodos tão recuados. Na verdade, existem diversas dúvidas e diferentes interpretações sobre a presença humana nestes locais.

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Fig. 2  – Pormenor da costa de Cascais entre o cabo Raso e o porto do Touro (circundado).

O sítio arqueológico acima referido foi identificado na década de 1880 por Francisco de Paula e Oliveira[4], capitão de artilharia, antropólogo e funcionário da Direcção dos Trabalhos Geológicos entre 1886 e 1888, ano do seu falecimento[5]. Por esta altura, o investigador desenvolveu um importante trabalho de prospecção sistemática no concelho de Cascais, embora o seu falecimento repentino não tenha permitido o estudo da totalidade dos arqueossítios e materiais por si identificados. O relatório das suas observações acabaria por ser publicado postumamente sem que estivesse terminado[6]. Relativamente ao Espigão das Ruivas, ao que parece erradamente colocado pelo autor em território de Cascais, Paula e Oliveira descreveu-o como sendo um rochedo muito escarpado e que, ao avançar para o mar, formava uma pequena península de acesso extremamente difícil, se bem que reconhecendo que aquela configuração provavelmente nem sempre teria sido assim. Nesse rochedo, o investigador referiu que havia identificado alicerces de edifícios, fragmentos de telhas e de cerâmicas, indícios que mostravam que o local havia sido habitado. Não tendo tido tempo para estudar aquelas ruínas, ou talvez se tenha furtado a isso pelo pouco interesse despertado, já que o investigador se importou mais com estações arqueológicas de carácter funerário[7], tornou-se difícil a Paula e Oliveira avançar com a sua possível funcionalidade e idade, ainda que o próprio não tenha tido dúvida quanto a uma antiguidade remota que recuava pelo menos até ao Período Romano[8]. Aliás, o investigador chegou a interrogar-se sobre a possibilidade desse arqueossítio ser o local onde havia sido erguido o templo (ou santuário) romano dedicado ao Sol e à Lua que se sabia ter existido no litoral de Sintra. Muito embora pelas indicações de Francisco de Holanda[9] e outros autores posteriores fosse perceptível que o dito templo havia sido construído no Alto da Vigia (Colares)[10], a hipótese de Paula e Oliveira viria a ser retomada e mantida até recentemente.

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Fig. 3 – Indicação do sítio arqueológico do Espigão das Ruivas, ladeado pela praia do porto do Touro.

Durante muito tempo os investigadores posteriores a Paula e Oliveira não conseguiram localizar o Espigão das Ruivas, até porque o autor não apresentou nenhum mapa com a localização do sítio. Somente em 1991, mais de cem anos depois das averiguações de Paula e Oliveira pelo concelho de Cascais, é que este local veio a ser (re)descoberto, por intermédio de Guilherme Cardoso, vindo a sofrer uma intervenção arqueológica parcial nesse mesmo ano. A partir de então, passou a ser divulgado que o dito rochedo ficava ladeado do porto do Touro[11].

Os trabalhos arqueológicos decorreram entre 29 de Março e 10 de Abril. Naquele rochedo foi escavada uma estrutura pétrea rectangular de pequenas dimensões, com porta a Nordeste e já bastante danificada, situação que não permitiu aos arqueólogos determinar a sua utilidade. Para além disso, e dado o remeximento que toda a superfície do rochedo foi sofrendo ao longo do tempo, não foi possível destrinçar níveis estratigráficos[12]. Ainda que as evidências detectadas não tenham correspondido às expectativas geradas pelas averiguações de Paula e Oliveira e à possibilidade de ali poder ter existido o dito templo, foi dada a conhecer a descoberta de importantes materiais arqueológicos da Idade do Ferro que consistem em cerâmica de pasta fina de cor cinzenta e castanha, correspondendo a fragmentos de pequenas taças e ânforas[13].

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Fig. 4 – A difícil e perigosa subida ao Espigão das Ruivas (Julho de 2015).

Relativamente ao Período Romano, ficou referida a recolha de dois fragmentos de uma pequena taça em terra sigillata sudgálica (forma Drag. 24/25), da segunda metade do século I d.C., um cossoiro, fragmentos de telhas grossas (ímbrices), um anel (?) em fita de cobre, etc.[14]. Refira-se, igualmente, que ficou em aberto a possibilidade de este sítio arqueológico ainda ter estado em actividade durante a Idade Média.

Embora não se tenha conseguido compreender a utilidade da estrutura pétrea em causa, Guilherme Cardoso, trazendo o topónimo “Touro” à questão e a ligação com o mar, colocou a hipótese de ali ter existido “um antigo templo com imagem de um touro[15], animal que simbolizava o desenvolvimento da violência sem contenção e que se encontrava associado ao culto de Poseidon, deus grego do mar a que os Romanos chamaram Neptuno”. Outra hipótese, segundo o mesmo investigador, era “sugerida pela existência do culto lunar na Serra de Sintra e em toda a região desde a Pré-História”, permitindo assim “ligar o touro à Lua, símbolo da luz que, na noite escura, servia de guia aos navegantes”[16].

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Fig. 5 – Vista do Espigão das Ruivas para o Guincho e mar envolvente.
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Fig. 6 – Vista do Espigão das Ruivas para a praia do porto do Touro.

Inicialmente interpretado como um possível local de culto, posteriormente surgiu uma hipótese divergente e que coloca as ruínas da estrutura detectada naquele rochedo como sendo o que restou de um antigo farol usado já no tempo dos fenícios e com continuação pelo Período Romano[17]. Este tipo de estruturas, edificadas em pontos estratégicos da costa, serviam para indicar pontos de referência para orientação marítima e evitar naufrágios, permitindo que os navios mantivessem a necessária distância e prudência em relação a terra[18]. Foi salientado que a possível estrutura de sinalização não teria as características das torres de Cádis e da Corunha (“Torre de Hércules”) que serviram de farol, ou até mesmo da que poderá ter existido no estuário do Sado (Outão)[19] durante o Período Romano, se bem que estivesse próxima do Cabo da Roca, acidente geográfico merecedor de sinalização[20].

Uma outra hipótese sugere que as ruínas da estrutura existente no Espigão das Ruivas, rochedo na cota dos trinta metros, são o que restou de “uma pequena casa”[21]. Face aos “grandes recipientes de cerâmica ali descobertos, nomeadamente ânforas”, foi referido não haver dúvida de que o acesso ao sítio “se fazia por mar, visto que, por terra, seria difícil”[22]. Uma nova interpretação dos materiais arqueológicos ali exumados permitiu enquadrar alguns fragmentos de telha no Período Islâmico[23], sendo ainda apontada a presença visigótica no local[24].

No entanto, falta que se faça o estudo desenvolvido da estrutura, dos materiais arqueológicos ali detectados e a sua publicação integral. Aliás, sabe-se que os materiais da Antiguidade Tardia ali exumados foram apresentados num congresso no Verão de 2016 e que estão em fase de estudo mais aprofundado para publicação, pelo que em breve teremos novidades sobre o assunto. O mesmo virá a ocorrer, futuramente, com os materiais da Idade do Ferro. Espera-se que se possa vir a compreender de forma mais detalhada a cronologia de ocupação inicial do sítio, a integração dos materiais nos circuitos comerciais antigos e estabelecer possíveis paralelos com outros sítios arqueológicos da região.

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Fig. 7 – Barrotes de madeira no interior da estrutura pétrea.

Não havendo um consenso sobre a funcionalidade da estrutura detectada no Espigão das Ruivas, existem outros aspectos que precisam de ser aduzidos à discussão: será que a dita estrutura teve a mesma funcionalidade entre a Idade do Ferro e o Período Islâmico? Será que não sofreu modificações ao longo do tempo? Já vimos que as sucessivas fases de ocupação do sítio foram afectando os níveis arqueológicos anteriores, sendo que a isso podemos acrescentar uma presença humana em tempos mais recentes. Nas ocasiões que visitámos o Espigão das Ruivas constatámos que existem barrotes de madeira no interior das ruínas da estrutura pétrea visível à superfície e que a mesma apresenta, hoje em dia, um formato circular (fig. 8), situações que mostram que o local foi frequentado até muito recentemente e que sofreu novas alterações de ordem antrópica após as escavações de 1991.

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Fig. 8 – Ruínas de estrutura pétrea, hoje em dia de formato circular.

Contudo, as telhas do Período Romano e Islâmico ali detectadas sugerem que se estava perante um pequeno edifício que deverá ter funcionado como casa-abrigo, decerto ligado à navegação. Quanto aos fragmentos de ânforas e de terra sigillata exumados, poderiam estar associados a acções de desvio e descaminho de mercadorias vindas de Olisipo. Note-se que o porto do Touro e toda aquela costa também estavam na rota de uma linha comercial à escala regional que unia as villae do Ocidente do Municipium Olisiponense e Olisipo, sendo que alguns esteiros de mar outrora navegáveis serviam de ligação entre os dois pólos. É o caso do rio Lizandro (Mafra) e do rio de Colares (Sintra) – que no passado beneficiavam da entrada de um braço de mar para o interior dos seus territórios –, por onde teriam fluido navios e mercadorias envolvidas numa rede de ligações comerciais com Olisipo que teria estado activa sobretudo entre os séculos I-II e V d.C., havendo ainda elementos arqueológicos que permitem pensar numa maior antiguidade desses contactos navais[25]. É possível, inclusive, que a área do rio de Colares já tivesse alguma importância quanto à entrada e saída de mercadorias no âmbito do comércio regional do Bronze Final[26].

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Fig. 9 – Pormenor da área costeira entre Sintra e Lisboa com alguns arqueossítios da Idade do Ferro.

Um dos aspectos que desperta a atenção quando se visita o porto do Touro reside no facto de haver uma porção territorial útil mais alargada para o interior imediato e mais abrigada do que o exíguo sítio arqueológico escavado, sendo que entre a praia daquele porto e esse interior existem ruínas de edifícios e outros diversos vestígios de presença humana. Não teria havido já na Idade do Ferro, durante o Período Romano e Idade Média uma relação com esse interior imediato ao porto? Não teriam sido construídas habitações ou outro tipo de estruturas? Ademais, e apesar de apenas terem sido detectados vestígios arqueológicos da Antiguidade e Idade Média naquela área, não teria o local sido ocupado posteriormente, durante a Idade Moderna? É muito provável que tenha havido uma ocupação humana espacialmente mais alargada daquela área durante a Antiguidade e a Idade Média, sobretudo onde actualmente ainda se encontram ruínas de barracas e de algumas habitações geralmente referidas como tendo sido construídas por pescadores em tempos mais recentes, marcando a paisagem cultural marítima local. Talvez tenham existido ali grupos de pessoas que prestavam apoio à navegação, fazendo a ligação entre terra e o mar através de pequenas embarcações quando fosse necessário, e que já se dedicavam a usar o local como porto de apoio à pesca, algo que se deverá ter mantido ao longo de vários séculos. Essas pessoas, se seguirmos estas hipóteses, estariam igualmente associadas à funcionalidade da estrutura detectada no Espigão das Ruivas, que também poderá ter funcionado como vigia e local de sinalização do porto do Touro aos navegantes.

Tendo a área confinante ao dito porto um elevado potencial do ponto de vista arqueológico, era importante desenvolver trabalhos de prospecção nas imediações e possíveis escavações que pudessem trazer novidades e compreender melhor qual o tipo de ocupação humana desde tempos antigos. Do mesmo modo, e havendo a possibilidade de que outras enseadas das proximidades também tenham tido algum tipo de actividade, é essencial que se proceda à prospecção geofísica daquela área costeira. De uma forma geral, futuros trabalhos arqueológicos (em terra e mar) poderão levar a descobertas que permitam perceber melhor a ligação de todo aquele espaço com a actividade naval em épocas recuadas.

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Fig. 10 – Ruínas de habitações no território adjacente ao porto do Touro.
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Fig. 11 – Praia do porto do Touro.

Contrariamente ao que se possa pensar, quando falamos do porto do Touro estamos a indicar um local exíguo, com uma praia pequena, de seixos, sem areia e bastante rochosa, que não é acessível a navios de médias e grandes dimensões. Os navios que quisessem largar ferro naquela área tinham de ficar um pouco adiante da pequena praia para evitar o contacto com os rochedos, sendo aquelas imediações extremamente perigosas. A ligação com terra era feita através de pequenas embarcações que podiam varar, mas com maior segurança em períodos de preia-mar. O acesso à praia é bastante estreito, feito entre rochedos, sendo que ao mínimo desvio as embarcações a remos podiam chocar. Do mesmo modo, as embarcações que estivessem em terra – tal como aconteceu até recentemente – podiam ir para o mar, fosse para pescar ou para estabelecer contacto com navios, mas mais seguramente em períodos de preia-mar, mantendo-se os perigos.

Outro dos aspectos que também não pode ser posto de lado quando analisamos a importância do porto do Touro diz respeito ao seu enquadramento perante a presença humana desta região. O povoado das imediações que salta mais à vista, embora não esquecendo a villa romana de Miroiços (Malveira da Serra), é Casais Velhos (Areia), sítio que abrange uma área sobranceira às dunas do Guincho e que, segundo Guilherme Sarmento, poderá ter sido ocupado pelos romanos ainda no século I d.C.

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Fig. 12 – Vista das imediações do povoado romano/visigótico de Casais Velhos para a área do porto do Touro.

Durante a Idade Média o sítio arqueológico do Espigão das Ruivas ainda esteve em actividade, sendo que, de momento, é possível remontar a presença humana naquele local ao Período Visigótico e ao Período Islâmico[27]. É muito provável que, à semelhança de outros locais da costa de Sintra-Cascais que têm vindo a ser estudados, o porto do Touro tenha sido algo importante para a navegação muçulmana. Posteriormente, o local terá mantido ocupação ou, pelo menos, servido de apoio marítimo. Datam de 1253 (“portu Tauri”[28]) e 1370 documentos que aludem ao porto do Touro, indiciando assim a sua contínua utilização, ainda que os mesmos estejam inseridos no âmbito de delimitações territoriais, não referindo qualquer actividade portuária no local. Note-se, porém, que anteriormente a 1370 este sítio estava integrado no território de Sintra, sendo bastante curioso que o termo de Cascais, uma vez traçado, tivesse início precisamente nesse local.

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Fig. 13 – Pormenor da carta régia de 1370 que criou o senhorio de Cascais e concedeu-lhe um termo geográfico, começando pelo “porto do Touro” (ANTT, Chancelaria de D. Fernando, liv. I, fól. 56, 1.ª col.).

Para uma cronologia compreendida entre os séculos XVI-XVII o porto do Touro terá mantido alguma importância. Nos tempos iniciais da Monarquia Hispânica, um tal de Rodrigo dos Santos, mestre de uma caravela oriundo de Cascais, havia sido contratado por Dom P.º Negro (embaixador do Congo) para transportá-lo secretamente a França. Com ele iriam outros companheiros partidários de D. António, prior do Crato, tendo o embarque sido acordado para aquele porto. Depois de reunidos no mosteiro de Colares, local indicado pelo mestre, que ali tinha um sobrinho como frade, descer-se-ia a serra de Sintra até ao dito porto para se embarcar pela noite. Porém, o súbito aparecimento de um homem chamado Diogo Cardoso, que não estava incluído no grupo inicial que faria a viagem secreta e que pedia que o levassem consigo, levantou forte desconfiança. Ao que parece, tendo sido rejeitada a sua inclusão no grupo, o intruso quis retornar a Lisboa já durante a noite, pelo que alguns “sospejtaram mal dele, e o qujzeram matar”, enquanto que outros se opuseram a tal desfecho[29]. Não se sentido à vontade com tal situação, e estando descoberto o segredo e a embarcação que os levaria até à caravela, a qual estaria frente ao porto do Touro, o grupo inicial acabou por abandonar o empreendimento e fugir.

Deste caso podemos reter alguns dados importantes. Em primeiro lugar, confirma-se que neste sítio havia uma ligação entre terra e o mar que era feita através de uma pequena embarcação e um navio de maiores dimensões, sendo esta uma actividade conhecida em Cascais, pelo menos no caso de Rodrigo dos Santos, mas que deveria estender-se a outros mareantes locais e ter alguma tradição. Neste sentido, não era por acaso que o porto do Touro estava a ser usado por esta altura, sendo muito provável que ocorressem outros tipos de ligações para além deste género de embarques. É muito provável que, nesta altura, já existissem estruturas naquele local e que pudessem, inclusive, ser reaproveitamentos de épocas mais antigas, servindo para apoio a quem usava o porto e a pequenos desembarques.

Para além do caso da tentativa de embarque na dita caravela, e que comprova a importância daquele local durante a Idade Moderna, existem referências cartográficas (séculos XVII-XIX) a um porto situado na fronteira entre a costa de Sintra e Cascais e que correspondem ao porto do Touro. O primeiro exemplar cartográfico conhecido, da autoria de Pedro Teixeira (1634), alude claramente ao “Porto do Guincho” (fig. 14), naquilo que será uma alusão ao porto do Touro, até porque o local, ainda hoje, é igualmente conhecido por Guincho Velho. Posteriormente, temos mapas dos arredores de Lisboa com alusões ao “porto do Guinel”, evidente corruptela de Guincho, e ainda outros, mais tardios, grafados com o topónimo “porto do Sinchel”, correspondendo todos ao porto do Touro.

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Fig. 14 – Faixa costeira entre o cabo da Roca e S. Pedro do Estoril. Destaque para o porto do Guincho e os dois navios ao seu largo (Pedro Teixeira, 1634). Note-se que a representação da costa de Cascais, nomeadamente a parte ocidental, surge algo fantasiada.

Tudo isto permite pensar, de facto, que este local teve certa importância durante a Idade Moderna, inclusive em séculos posteriores, e que ainda haveria uma ocupação humana do local. Pela sua posição abrigada e até estratégica, é muito provável que a costa de mar onde se encontra este local tenha servido de apoio a corsários e a piratas que esperavam nas imediações pela passagem de navios. Sabemos de diversos casos de corso e pirataria ocorridos no litoral de Sintra e Cascais entre finais da Idade Média e a Idade Moderna, pelo que o porto do Touro e arredores poderão ter sido usados nesse contexto. Na verdade, sabe-se que o cabo da Roca e a enseada de Assentiz, sítios muito próximos do referido local, foram estratégicos para este tipo de actividades[30].

Marco Oliveira Borges | 2017

[1] Este artigo de divulgação histórica, ainda que tendo sido sujeito a pequenas revisões e acrescentos, foi adaptado de um trabalho mais alargado: Marco Oliveira BORGES, “A importância do porto do Touro e do sítio arqueológico do Espigão das Ruivas (Cascais) entre a Idade do Ferro e a Idade Moderna”, in História. Revista da FLUP, IV: 6 (2016), pp. 161-182. Disponível para consulta e descarregamento gratuito através do seguintes links: https://tinyurl.com/y5s3q774; https://tinyurl.com/y5mbyxub.

[2] Tal como vem referido na documentação medieval e moderna em português. Actualmente, também é conhecido por Porto Touro, Guincho Velho, Porto de Pescadores ou Secret.

[3] Na subida final requer mesmo escalada, existindo, actualmente, uma corda que pode ajudar a esse efeito. Em 1991, aquando das escavações arqueológicas no Espigão das Ruivas, essa corda ainda não estava no local. Agradecemos esta e outras diversas indicações fornecidas por Guilherme Cardoso.

[4] Francisco de Paula e OLIVEIRA, “Antiquités Préhistoriques et Romaines des Environs de Cascaes”, extrait des Communicações da Commissão dos Trabalhos Geológicos, II: I (1888-1892), pp. 10-11.

[5] João Luís CARDOSO e José Manuel ROLÃO, “Prospecções e escavações nos concheiros mesolíticos de Muge e de Magos (Salvaterra de Magos): contribuição para a história dos trabalhos arqueológicos efectuados”, in Estudos Arqueológicos de Oeiras, 8 (1999-2000), pp. 84 e 91.

[6] Francisco de Paula e OLIVEIRA, op. cit., pp. 1-27.

[7] Carlos FABIÃO, “100 anos de investigação arqueológica no concelho de Cascais”, in Arquivo de Cascais, 6 (1987), p. 45.

[8] Francisco de Paula e OLIVEIRA, op. cit., p. 11.

[9] Francisco da HOLANDA, Da fábrica que falece à cidade de Lisboa. Introd., notas e coment. de José da Felicidade Alves, [Lisboa], Livros Horizonte, 1984, pp. 90-92 e fl. 24v e 25.

[10] José Cardim RIBEIRO, “Estudos histórico-epigráficos em torno da figura de L. Iulius Maelo Caudicus”, in Sintria, III: I (1982-1983), p. 166; idem, “Felicitas Ivlia Olisipo. Algumas considerações em torno do catálogo Lisboa Subterrânea”, sep. de Al-Madan, II: 3 (1994), pp. 86-87; idem, “Soli aeterno Lvnae. Cultos astrais em época pré-romana e romana na área de influência da serra de Sintra: ¿um caso complexo de sincretismo?”, in Sintria, III-IV (1995-2007), pp. 596, 599-608 e 614-616; idem, “Soli aeterno Lvnae: o santuário”, in Religiões da Lvsitânia. Loquuntur Saxã, Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia, 2000, pp. 235-239.

[11] Guilherme CARDOSO, Carta arqueológica do concelho de Cascais, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1991, p. 20.

[12] Idem e José D’ENCARNAÇÃO, “Sondagem no Espigão das Ruivas (Alcabideche, Cascais)”, in Al-Madan, II: 2 (1993), p. 150.

[13] Cf. Guilherme CARDOSO, op. cit., p. 31.

[14] Idem, ibidem, p. 31; idem e José D’ENCARNAÇÃO, op. cit., p. 150.

[15] Embora sendo apenas uma hipótese, uma imprecisão levou a que fosse dito que na estrutura pétrea havia sido detectada “uma gravura representando um touro” (cf. Ricardo SOARES, “Tartessos, um povo do mar. Génese da navegação, técnicas de construção e embarcações mediterrâneas e pré-romanas” (2008), (disponível em http://light-cyclops.blogspot.pt/2010/10/farol-de-pharos.html – consultada em 1/05/2015).

[16] Guilherme CARDOSO, op. cit., p. 20.

[17] Ana Margarida ARRUDA, Fenícios e Mundo Indígena no Centro e Sul de Portugal (séculos VIII-VI a.C.). Dissertação de Doutoramento em Arqueologia, Universidade de Lisboa, 2000, 3-17 e 3-18; idem, Los Fenicios en Portugal. Fenicios y mundo indígena en el centro y sur de Portugal (siglos VIII-VI a.C.), Barcelona, Universidad Pompeu Fabra de Barcelona, 2002, p. 29; idem e Raquel VILAÇA, “O Mar Grego-Romano antes de Gregos e Romanos: perspectivas a partir do Ocidente Peninsular”, in Francisco de Oliveira, Pascal Thiercy e Raquel Vilaça (coords.), Mar Greco-Latino, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, p. 44; Carlos FABIÃO, “A Dimensão Atlântica da Lusitânia: Periferia ou Charneira no Império Romano?”, in Lusitânia Romana. Entre o Mito e a Realidade. Actas da VI Mesa Redonda Internacional sobre a Lusitânia Romana, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 2009, p. 66.

[18] Ana Margarida ARRUDA, Fenícios e Mundo Indígena, 3-17 e 3-18; idem, Los Fenicios en Portugal, p. 29; idem e Raquel VILAÇA, op. cit., p. 44.

[19] Ou, inversamente, no cabo Espichel (cf. Maria Luísa BLOT, Os Portos na Origem dos Centros Urbanos. Contributo para a Arqueologia das Cidades Marítimas e Flúvio-marítimas em Portugal, Lisboa, Instituto Português de Arqueologia, 2003, p. 60; Jorge de ALARCÃO, “Notas de Arqueologia, epigrafia e toponímia – I”, in Revista Portuguesa de Arqueologia, 7: 1 (2004), pp. 317-319 e 324).

[20] Carlos FABIÃO, op. cit., p. 66.

[21] Guilherme CARDOSO, Jorge MIRANDA e Carlos A. TEIXEIRA, Registo fotográfico de Alcabideche e alguns apontamentos historicoadministrativos, Alcabideche, Junta de Freguesia de Alcabideche, 2009, p. 393.

[22] Idem, ibidem, p. 30.

[23] Idem, ibidem, p. 35.

[24] Idem, ibidem, p. 38.

[25] Marco Oliveira BORGES, “Portos e ancoradouros do litoral de Sintra-Cascais. Da Antiguidade à Idade Moderna (I)”, in Actas das Jornadas do Mar 2014. Mar: Uma onda de Progresso, Almada, Escola Naval, 2015, pp. 152, 157 e 164.

[26] João Luís CARDOSO e Maria João SOUSA, “O Bronze Final na Serra de Sintra”, in Estudos Arqueológicos de Oeiras, 21 (2014), p. 366.

[27] Guilherme CARDOSO, Jorge MIRANDA e Carlos A. TEIXEIRA, op. cit., pp. 35 e 38.

[28] Pub. por Francisco COSTA, Estudos Sintrenses, I, Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 2000, p. 97.

[29] Pedro de FRIAS, Crónica Del-Rei D. António. Estudo e leitura de Mário Alberto Nunes Costa, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1955, pp. 345-346.

[30] Marco Oliveira BORGES, “Portos e ancoradouros do litoral de Sintra-Cascais”, pp. 162-164.