Do desconhecido “invisível” ao sábio “superior”: uma resposta a José d’Encarnação

Em Março de 2017, no âmbito do I Colóquio Ibérico de Paisagem – O estudo e a construção da Paisagem como problema metodológico, realizado em Lisboa, apresentei uma comunicação intitulada “Paisagem cultural marítima de Sintra: uma abordagem histórico-arqueológica”. Um dos locais aí abordado, a par do Espigão das Ruivas, do cabo da Roca e da enseada de Assentis, foi o Alto da Vigia. Como em qualquer outro evento científico do género, a seguir às comunicações houve um momento para a colocação de questões e o esclarecimento de dúvidas. É, sobretudo, nestas alturas que o investigador pode ser directamente posto à prova pelos congéneres da sua área. Isso é sempre bastante proveitoso, pois permite ouvir críticas ou perspectivas diferentes e, consoante os casos, corrigir aspectos e ir um pouco mais além no conhecimento. Naturalmente que respondi às questões e observações que me foram colocadas naquela altura, inclusive já em off, e só tenho de agradecer os comentários.

Poucos meses após o referido colóquio foram disponibilizadas (online) as actas, distribuídas em três volumes, coordenados por Pedro Fidalgo, sendo que no terceiro encontra-se o artigo que escrevi[1]. Já a 12 de Junho de 2020, usei uma parte desse artigo – aquela que aborda o Alto da Vigia durante o período romano – para um texto de divulgação que foi publicado no meu blogue sobre a história de Sintra e Cascais[2]. Tive o cuidado de mencionar, em nota de rodapé, de onde provinha o texto, ainda que o mesmo apresentasse ligeiras modificações, aspecto que também indiquei.

Entretanto, ontem fui informado de que o professor José d’Encarnação tinha colocado um texto no Archport a criticar o meu post sobre o Alto da Vigia (em anexo). Caso não tivesse sido avisado sobre o assunto, nada saberia sobre isto, pelo que também não poderia fazer a minha defesa. Pelo tom baixo, exagerado e tendencioso do autor, que finge não conhecer o meu trabalho e percurso desenvolvido, é dado a entender que cometi um atentado deontológico e que ando a brincar aos investigadores. Porém, antes de seguir para as questões do Alto da Vigia, importa aduzir alguns factos para que se avive a memória.

Em 2010, depois de assistir a uma conferência que se realizou no Museu do Mar Rei D. Carlos, abordei José d’Encarnação, apresentei-me e expliquei que estava a investigar assuntos da história de Cascais e a reunir dados para uma tese de mestrado que iria desenvolver sobre o porto local durante o século XV. Nessa altura, Encarnação entregou-me um cartão de visita (ainda o tenho), de modo a que o pudesse contactar por e-mail, algo que fiz, obtendo uma resposta. Nunca mais falei com o visado, sendo que seria perfeitamente compreensível que não se lembrasse do que acabei de referir, pois já passaram dez anos e a memória pode pregar partidas. Todavia, não deixa de ser misterioso que, não conhecendo o meu trabalho de investigação e de divulgação, apesar dos vários contributos que têm sido publicados sobre a História de Sintra e Cascais desde 2012, o autor tenha citado um artigo meu num estudo recente que escreveu em co-autoria sobre o Espigão das Ruivas[3]. Posso acrescentar que José d’Encarnação teve publicado um texto no último número do Arquivo de Cascais (2015), sendo que também tive a oportunidade de participar com um artigo em co-autoria. Refira-se igualmente que Encarnação, desde Maio de 2015, faz parte de um grupo que criei no Facebook, intitulado “Arqueologia e História de Cascais”, pelo que pressuponho que vê ou já viu algumas das publicações ali feitas. Não querendo desenvolver aqui este tipo de assunto, que daria pano para mangas no contexto da história de Cascais, acrescento apenas que é muito estranho que Encarnação não tenha notado em nenhum destes aspectos que referi. É muita “desatenção” junta! Qualquer investigador no activo deve estar atento e actualizado, não apenas quando é conveniente.

Relativamente ao Alto da Vigia, talvez José d’Encarnação não saiba que estou em contacto com os arqueólogos do Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas desde 2010 ou 2011, e que, em 2016, participei, durante alguns dias, na escavação arqueológica que decorre naquele local desde 2008. No entanto, com todo o respeito, reconhecimento e mérito que aqueles arqueólogos merecem, a quem só tenho a agradecer pela disponibilidade sempre demonstrada, isso não significa que se concorde com toda a interpretação que tem sido feita sobre o local. Isto da mesma forma que sei que algumas interpretações que eu e outros investigadores colocámos não são acolhidas. E existe algum mal nisso? Claro que não. Em vários artigos que tenho vindo a desenvolver, sobretudo para o período de ocupação islâmica, tenho citado os relatórios arqueológicos do Alto da Vigia, seguido indicações e, por vezes, apresentado interpretações que divergem ou que complementam aspectos que têm sido dados a conhecer. E isso acontece igualmente no post criticado por Encarnação, que, como se viu, só parece ter olhos e memória para o que lhe convém.

Sendo assim, que interpretações alternativas/complementares aduzi que não têm sido tidas em conta? De uma forma geral, penso que um sítio com as características do Alto da Vigia precisa de ser enquadrado mais aprofundadamente no contexto da história marítima local, ao longo dos diferentes períodos históricos, sendo que a colocação de hipóteses com base em diferentes dados dispersos pode ajudar a avançar no conhecimento. É nesse sentido que também tenho seguido as indicações de Maria Teresa Caetano, cuja monografia que elaborou sobre Colares é de consulta fundamental quando se abordam temas histórico-arqueológicos locais[4]. Neste contexto, tenho seguido diversas indicações e pistas deixadas, seja reforçando a ideia de navegabilidade para o interior do território, seja indicando novas interpretações e os vários vestígios arqueológicos que foram encontrados nas proximidades do chamado rio de Colares e que ajudam a pensar na antiga existência de estruturas ou de povoados. Veja-se, por exemplo, o caso do Mucifal, que tenho tido oportunidade de divulgar, indicando inclusive uma hipótese colocada oralmente por José Cardim Ribeiro: a de que as ânforas ali encontradas poderão estar associadas à produção local de preparados piscícolas e à existência de cetárias romanas na área do esteiro de Colares.

Seja como for, quem estiver minimamente atento ao que se tem produzido a nível científico, e não apenas ao conteúdo do post de Junho, vai notar que existem algumas diferenças interpretativas, sendo sempre interessante analisar a evolução de diferentes perspectivas de pensamento ao longo dos anos. Eis uma passagem muito importante que referi no artigo de 2017 e, posteriormente, no referido post, não sendo correcto, no seguimento do que fez José d’Encarnação, fazer a apresentação das ideias aí contidas através de pequenas citações truncadas, omitindo o resto do conteúdo:

“De qualquer forma, é muito provável que a área do Alto da Vigia e imediações, com larga extensão, tenham tido igualmente outras funcionalidades para além daquelas associadas ao santuário. Em tempos recuados, poderá mesmo ter havido uma extensão habitável. Essa situação seria facilitada por condições meteorológicas e oceanográficas mais aprazíveis à fixação costeira do que na actualidade, sendo na altura caracterizadas, nomeadamente, pela menor intensidade de vento e de agitação marítima. Isso deveu-se à fraca presença de upwelling no Ocidente ibérico[5], traduzindo-se esse factor, efectivamente, na parca intensidade da nortada e menor altura das ondas em relação ao que no presente se verifica[6], se bem que não se possa falar numa total ausência de vento[7]. Por outro lado, é possível que possa ter havido algum tipo de exploração económica romana nessa área, fosse ligada à terra ou ao mar. O mesmo se pode pensar nalgum tipo de edifício de apoio à navegação, talvez até um posto de controlo romano do acesso naval ao interior de Sintra. Recorde-se que em pleno século I d.C., altura em que os romanos terão construído o dito santuário, o esteiro de Colares era navegável, constituindo-se assim como um canal privilegiado de comunicação e ligação naval com o interior do território”.

José d’Encarnação, que parece não ter notado que o post resulta de um excerto de um artigo científico, refere “que não passa de um amontoado de citações”, assentes na “apresentação de hipóteses já por outros colocadas”. Se assim é, e para além dos aspectos que atrás assinalei, que diga, relativamente ao Alto da Vigia e às frases que citou, em que locais estas hipóteses têm sido destacadas em conjugação com a ideia de que, com condições meteorológicas e oceanográficas mais aprazíveis à fixação costeira do que na actualidade (o que tem sido apontado para a Antiguidade), outras estruturas e funções poderiam ter existido naquela área. No meio de diversos estudos e relatórios lidos a partir de 2009/2010, altura em que elaborei um trabalho sobre Sintra e Cascais para a cadeira de História Urbana Medieval, assim como outro para a cadeira de História da Marinha, sobre os portos de Colares, Touro e Cascais, pode ser que me tenha escapado algo.

O Alto da Vigia é um sítio de grande importância, sem dúvida, mas as interpretações ainda estão muito centradas no santuário e no período romano. A área onde se insere, quanto mais relacionada com a história local em longa duração e com as diferentes condições meteorológicas e oceanográficas atrás referidas – ainda que esta ideia pareça não ser consensual entre os investigadores da Antiguidade –, melhor será compreendida, até no contexto das navegações, pelo que estes são aspectos que devem ser enfatizados e explorados.

Olhando outro aspecto, tem sido referido que a descoberta de epígrafes romanas no Alto da Vigia, em 1505, coincidiu com a construção de uma vigia manuelina (até há pouco tempo interpretada como sendo um facho). No entanto, em 2017, avancei com a hipótese de que essa estrutura poderia ser mais antiga, sendo que o acontecimento de 1505 talvez estivesse relacionado apenas com obras de reparação/reformulação daquela estrutura. Eis mais um trecho do referido post, desta vez atestando o que acabou de ser dito:

“Ou seja, no sítio que desde 2008 está a ser alvo de intervenções arqueológicas, tendo a descoberta de 1505 coincidido com as obras de construção da vigia[8] acima referida ou que ou apenas com trabalhos de reparação/reformulação após uma possível destruição causada pelos sismos que terão ocorrido em 1504-1505. Estes sismos terão provocado estragos na torre defensiva que D. João II mandou construir em Cascais, por volta de 1494, e nas muralhas medievais da vila, pelo que poderá muito bem ter acontecido o mesmo em edificações da área costeira de Sintra. Terá sido neste sentido que o monarca ordenou que se reunissem meios monetários para que essas estruturas cascalenses entrassem em reparação, coincidindo assim com a altura das informações escritas por Valentim Fernandes, sendo que o documento que o comprova é de 12 de Agosto de 1505[9], três dias depois do achado no Alto da Vigia. Outros sismos ocorridos em anos posteriores, 1512, 1527, 1528 e 1531[10], poderão ter levado a estragos na estrutura do Alto da Vigia e a consequentes reparos que tenham implicado reformulações e alterações”.

Confesso que o titulo do post que escrevi sobre o Alto da Vigia poderia ser mais preciso, até porque ali não foi abordado o período islâmico, algo que inicialmente era para ter sido feito. Porém, quem tiver a oportunidade de ler o artigo que deu origem ao post e os meus outros trabalhos sobre Colares vai perceber melhor o que aqui tenho referido[11].

Por fim, resta dizer que, mais do que olhar para as questões do Alto da Vigia, o conteúdo do texto de José d’Encarnação revela uma atitude depreciativa e de pretensa superioridade moral e intelectual. Infelizmente, em certas áreas do conhecimento em Portugal – e não só –, o trabalho de investigadores mais jovens continua a ser desvalorizado, “invisível”, omitido. Aparecer e falar sobre um assunto, acrescentar algo, discordar do conhecimento produzido a nível institucional ou pôr em causa as ideias de uma “autoridade” académica, continua a ser visto – por alguns – como que uma falta de respeito ou até mesmo um crime de lesa-magestade. Mesmo que as instituições e as supostas autoridades possam, de certo modo, estar a fazer passar informações incompletas, desactualizadas ou erradas sobre um determinado tema. Parece que a melhor ou a única opinião tem de ser a mais antiga, sendo que o factor “idade” continua a pesar numa forma de pensar muito gasta e que, apesar de dissimulada, ainda se faz sentir com expressões do género: “quando cá cheguei vocês ainda não eram nascidos”. Contudo, as melhores hipóteses não são as mais antigas ou as mais recentes, mas sim aquelas que nascem da discussão e são melhor fundamentadas. O conhecimento está em constante reinterpretação, são sempre importantes novos contributos e existem princípios éticos que devem ser universais e intemporais, não apenas quando convém!

Marco Oliveira Borges | 2020

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[1] Marco Oliveira Borges, “Paisagem cultural marítima de Sintra: uma abordagem histórico-arqueológica”, in Pedro Fidalgo (coord.), Estudos de paisagem, vol. III, Lisboa, Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2017, pp. 230-272 (https://tinyurl.com/yatmhrxn).

[2] Idem, “O Alto da Vigia no tempo dos romanos: uma interpretação alternativa sobre este sítio arqueológico”, 2020 (https://tinyurl.com/yb3nmvjj).

[3] José d’Encarnação e Guilherme Cardoso, “O sítio arqueológico do Espigão das Ruivas (Cascais)”, Arqueologia em Portugal. 2017 – Estado da questão, Lisboa, Associação dos Arqueólogos Portugueses, 2017, pp. 958-959.

[4] Maria Teresa Caetano, Colares, Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 2000 [2.ª ed. revista, 2016].

[5] J. M. Alveirinho Dias, “A história da evolução do litoral português nos últimos vinte milénios”, in António Augusto Tavares, Maria José Ferro Tavares e João Luís Cardoso (eds.), Evolução geohistórica do litoral português e fenómenos correlativos. Geologia, História, Arqueologia e Climatologia. Actas do Colóquio. Lisboa, 3 e 4 de Junho de 2004, Lisboa, Universidade Aberta, 2004, pp. 165 e 167; António M. Monge Soares, “Identificação e caracterização de eventos climáticos na costa portuguesa, entre o final do Plistocénico e os tempos históricos – o papel do radiocarbono”, in Evolução geohistórica […], p. 194.

[6] Ana Margarida Arruda e Raquel Vilaça, “O Mar Grego-Romano antes de Gregos e Romanos: perspectivas a partir do Ocidente Peninsular”, in Francisco de Oliveira, Pascal Thiercy e Raquel Vilaça (coords.), Mar Greco-Latino, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, p. 35.

[7] Cf. Avieno, Orla Marítima, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica/Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 1992, pp. 22 e 47, n. 34.

[8] Alexandre Marques Gonçalves, Escavação arqueológica do Alto da Vigia (Colares-Sintra): relatório da intervenção realizada em 2015, 2016, p. 10 [policopiado]; José Cardim Ribeiro, “Ad Antiquitates Vestigandas. Destinos e itinerários antiquaristas nos campos olisiponenses ocidentais desde inícios a meados do século XVI”, in Gerard González Germain (coord.), Peregrinationes ad inscriptiones colligendas. Estudios sobre epigrafía de tradición manuscrita, Bellaterra, Universitat Autònoma de Barcelona, 2016, p. 140.

[9] Cf. Jaime D’Oliveira Lobo e Silva, Anais da vila da Ericeira. Registo cronológico de acontecimentos referentes à mesma vila, desde 1229 até 1943, 3.ª ed., Mafra, Câmara Municipal de Mafra, 2002, p. 24; Marco Oliveira Borges, “A torre defensiva que D. João II mandou construir em Cascais: novos elementos para o seu estudo”, História. Revista da FLUP, IV: 5, 2015, pp. 106-108.

[10] Idem, ibidem, p. 108.

[11] Cf., e.g., Marco Oliveira Borges, “A importância estratégica do conhecimento do território na formação de um sistema defensivo: o caso de Sintra (Portugal) durante o Período Islâmico”, Anuario de Historia Regional y de las Fronteras, vol. 22, n.º 2, Bucamaranga, 2017, pp. 26-27 (https://tinyurl.com/ya49odpb); idem, “Navegação comercial fluvio-marítima e povoamento no Ocidente do Municipium Olisiponense: em torno dos rios Lizandro (Mafra) e Colares (Sintra)”, in Carmen Soares, José Luís Brandão e Pedro C. Carvalho (coords.), História Antiga: relações interdisciplinares. Paisagens urbanas, rurais e sociais, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, pp. 219-255 (https://tinyurl.com/y9ugo9qe).

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