O Alto da Vigia no tempo dos romanos: uma interpretação alternativa sobre este sítio arqueológico

Fig. 1
Fig. 1 – Vista aérea da praia das Maçãs, Alto da Vigia e praia Pequena (ou da Vigia).

O Alto da Vigia é um pequeno outeiro que fica situado junto à praia das Maçãs, na margem esquerda da desembocadura do rio de Colares, curso de água que nasce a c. 14 km da sua foz, estando actualmente reduzido à condição de ribeira[1]. Em épocas passadas, um esteiro de mar invadia esta área permitindo a navegabilidade do vale de Colares, o acesso naval ao interior do território e ao porto local[2].

Em 2008, durante intervenções arqueológicas realizadas no Alto da Vigia que visavam averiguar a existência do santuário romano consagrado ao Sol, à Lua e ao Oceano que se sabia ter existido no litoral de Sintra, foram detectados importantes vestígios de diferentes cronologias, inicialmente associados a uma vigia[3], porquanto parte da sua estrutura ainda estava visível à superfície[4]. O decorrer dos trabalhos tem permitido confirmar que foi neste local que os romanos tiveram o dito santuário. No entanto, a grande surpresa arqueológica esteve na detecção parcial de estruturas muçulmanas que os arqueólogos locais têm vindo a interpretar como sendo pertencentes a um ribat[5].

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Fig. 2 – Mihrab presente numa das salas da edificação muçulmana. Fotografia: Marco Oliveira Borges (2016)

Os trabalhos arqueológicos ainda decorrem. Até ao momento, comprova-se a presença romana nesse sítio desde o século I d.C., altura em que terá sido fundado o famoso santuário consagrado ao Sol Eterno, à Lua e ao Oceano. A julgar pelos testemunhos epigráficos recolhidos nos últimos anos, terá sido muito provavelmente ainda na primeira metade do século I d.C., talvez durante o imperialato de Tibério[6]. Este espaço de culto, a dada altura, foi “integrado no âmbito do Culto Imperial, sendo os votos expressos – designadamente pela saúde do Imperador e eternidade do Império – colocados apenas por governadores da Lusitânia e legados imperiais, e não por devotos particulares, ou mesmo pelo senado de Olisipo, município em cujo território se localizava o santuário”[7].

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Fig. 3 – Outro pormenor da mesma edificação, observando-se melhor uma ara romana que foi usada como elemento pétreo na sua construção.  Fotografia: Marco Oliveira Borges (2016)

A alegada representação do santuário, que vinha indicado em epígrafes votivas[8] e que chegou a ser referido como podendo integrar um vicus local[9], viria a ser desenhada e descrita em texto corrido numa obra da autoria de Francisco de Holanda, publicada em 1571[10], se bem que a sua visita ao local tenha sido por volta de 1540 ou 1541[11]. Aquilo que Holanda apresenta no seu esboço não é propriamente um edifício, mas sim um alinhamento circular composto por 16 aras ou plintos, ainda que suscitando dúvidas[12] quanto à real configuração e até à sua existência. Quando Valentim Fernandes visitou o Alto da Vigia, em Agosto de 1505, no âmbito da recente descoberta de elementos arquitectónicos romanos, não referiu nenhum edifício naquele formato, somente a descoberta de três aras soterradas. Eis o que o humanista indicou ter sido encontrado nesse local:

“No ano do nascimento de Cristo de 1505, no dia 9 de Agosto, reinando D. Manuel, excelentíssimo rei de Portugal, quási no décimo ano do seu reinado, nas terras extremas dos confins da Espanha, para o lado do ocidente, na extremidade do promontório da Lua (Serra de Sintra) a que o vulgo chama Roca de Sintra [Cabo da Roca] à beira da praia do oceano, inesperadamente foram encontradas, debaixo de terra, três colunas de pedra, de forma quadrada, tendo gravados, desde tempos antigos, alguns caracteres romanos apenas em uma das faces, cuja base, mudada a ordem natural, se elevava como capitel e cujo capitel vimos fixado propositadamente, ao que parecia, como se fosse a base. Arrancadas a ferro e com cuidado, dentre os tijolos e pedras duras com que se fixavam por baixo as admiráveis colunas cima referidas, então notámos perfeitamente em uma delas, já voltada direitamente, estas figuras seguintes, não nos sendo possível decifrar com clareza as letras das outras porque, com a antiguidade do tempo e o desgaste do mar e das chuvas, estavam quási apagadas”[13].

Valentim Fernandes prossegue a sua descrição fornecendo a respectiva inscrição latina de uma das aras, se bem que dizendo que a leitura fora realizada pelo supremo secretário do rei, que, na presença do próprio D. Manuel I, fez o melhor que conseguiu para decifrá-la[14].

Em que área exacta do Alto da Vigia foram descobertos os elementos arquitectónicos romanos referidos por Valentim Fernandes? As três aras epigrafadas ali descobertas, que vieram a ser reaproveitadas na construção do suposto ribat[15], terão sido detectadas num espaço um pouco mais a Sul daquele que é indicado no esboço de Holanda. Ou seja, no sítio que desde 2008 está a ser alvo de intervenções arqueológicas, tendo a descoberta de 1505 coincidido com as obras de construção da vigia[16] acima referida ou apenas com trabalhos de reparação/reformulação após uma possível destruição causada pelos sismos que terão ocorrido em 1504-1505. Estes sismos terão provocado estragos na torre defensiva que D. João II mandou construir em Cascais, por volta de 1494, e nas muralhas medievais da vila, pelo que poderá muito bem ter acontecido o mesmo em edificações da área costeira de Sintra. Terá sido neste sentido que o monarca ordenou que se reunissem meios monetários para que essas estruturas cascalenses entrassem em reparação, coincidindo assim com a altura das informações escritas por Valentim Fernandes, sendo que o documento que o comprova é de 12 de Agosto de 1505[17], três dias depois do achado no Alto da Vigia. Outros sismos ocorridos em anos posteriores, 1512, 1527, 1528 e 1531[18], poderão ter levado a estragos na estrutura do Alto da Vigia e a consequentes reparos que tenham implicado reformulações e alterações.

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Fig. 4 – Esboço circular de Francisco de Holanda.

Está ainda por demonstrar arqueologicamente se o esboço de Francisco de Holanda era fidedigno e se, assim sendo, não teria resultado de uma elaboração circular quinhentista posterior à visita de Valentim Fernandes ao Alto da Vigia, inserindo-se no âmbito dos humanistas tentarem recuperar o passado clássico, podendo a alegada representação do santuário ter ganho forma através de outros exemplos construtivos da Romanidade, se bem que com alguns elementos pétreos desse tempo[19]. Por outro lado, um santuário nem sempre pressuponha a existência de uma construção, podendo tratar-se apenas de um local sacralizado. Em todo o caso, estando-se perante um “marcador natural” utilizado para fins cultuais, este podia anteceder a construção de um templo[20]. Mas um santuário também podia ser entendido como um espaço delimitado[21] no qual se integrava um conjunto de edifícios[22], o que poderá ter sido o caso do Alto da Vigia.

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Fig. 5 – Pormenor dos níveis estratigráficos observados no Alto da Vigia (2013). Fotografia: Marco Oliveira Borges

Para o caso específico deste sítio, a arqueologia tem vindo a comprovar a existência de estruturas romanas e de uma presença em larga diacronia com várias fases de ocupação, ainda que subsistindo diversas dúvidas sobre a sua caracterização. Evidências relacionadas com a fase alto-imperial romana estão documentadas através de um conjunto de estruturas negativas, algumas ulteriormente usadas na edificação de uma aedicula durante a segunda metade do século IV d.C.[23]. A dita aedicula, que se encontra em mau estado de preservação devido à remoção de elementos pétreos para a construção da estrutura islâmica[24], é um edifício que funcionava como pequeno templo[25]. Junto a esta estrutura, associada a materiais dos séculos III-IV e inícios do V d.C., foram recolhidas várias moedas e fragmentos de lucerna, ainda que em diferentes níveis estratigráficos e afectados por acções antrópicas[26]. Alguns elementos lapidares reutilizados na edificação da aedicula demonstram “que a continuidade em funcionamento do santuário em época tardia implicou a reformulação do espaço e das estruturas que o constituíam” [27]. Contudo, somente a continuidade dos trabalhos e a identificação e escavação de outros contextos romanos poderão ajudar a caracterizar a complexa dinâmica de ocupação romana deste local[28].

De qualquer forma, é muito provável que a área do Alto da Vigia e imediações, com larga extensão, tenham tido igualmente outras funcionalidades para além daquelas associadas ao santuário. Em tempos recuados, poderá mesmo ter havido uma extensão habitável. Essa situação seria facilitada por condições meteorológicas e oceanográficas mais aprazíveis à fixação costeira do que na actualidade, sendo na altura caracterizadas, nomeadamente, pela menor intensidade de vento e de agitação marítima. Isso deveu-se à fraca presença de upwelling no Ocidente ibérico[29], traduzindo-se esse factor, efectivamente, na parca intensidade da nortada e menor altura das ondas em relação ao que no presente se verifica[30], se bem que não se possa falar numa total ausência de vento[31]. Por outro lado, é possível que possa ter havido algum tipo de exploração económica romana nessa área, fosse ligada à terra ou ao mar. O mesmo se pode pensar nalgum tipo de edifício de apoio à navegação, talvez até um posto de controlo romano do acesso naval ao interior de Sintra. Recorde-se que em pleno século I d.C., altura em que os romanos terão construído o dito santuário, o esteiro de Colares era navegável, constituindo-se assim como um canal privilegiado de comunicação e ligação naval com o interior do território.

Marco Oliveira Borges | 2020

[1] Este artigo, embora com ligeiras modificações, foi adaptado de um estudo mais alargado: Marco Oliveira Borges, “Paisagem cultural marítima de Sintra: uma abordagem histórico-arqueológica”, in Pedro Fidalgo (coord.), Estudos de paisagem, vol. III, Lisboa, Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2017, pp. 250-255.

[2] Marco Oliveira Borges, “A defesa costeira do litoral de Sintra-Cascais durante o Garb al-Ândalus. I – Em torno do porto de Colares”, História. Revista da FLUP, IV: 2, 2012, pp. 116-128; idem, “Portos e ancoradouros do litoral de Sintra-Cascais. Da Antiguidade à Idade Moderna (I)”, Actas das Jornadas do Mar 2014. Mar: Uma onda de Progresso, Almada, Escola Naval, 2015, pp. 152-160; Maria Teresa Caetano, Colares, 2.ª ed., Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 2016, pp. 13-21; Marco Oliveira Borges, “Navegação comercial fluvio-marítima e povoamento no Ocidente do Municipium Olisiponense: em torno dos rios Lizandro (Mafra) e Colares (Sintra)”, in Carmen Soares, José Luís Brandão e Pedro C. Carvalho (coords.), História Antiga: relações interdisciplinares. Paisagens urbanas, rurais e sociais, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, pp. 233-236.

[3] Até recentemente, foi interpretada pelos arqueólogos como sendo a torre de um facho (cf. Patrícia Jordão, Pedro Mendes e Alexandre Gonçalves, Alto da Vigia (Colares, Sintra). Relatório dos Trabalhos Arqueológicos [de 2008], 2009, pp. 3-4 e 17 [policopiado]; Alexandre Marques Gonçalves, Alto da Vigia (Colares, Sintra). Relatório dos trabalhos arqueológicos de 2013, 2014, pp. 11-12 [policopiado]).

[4] Idem, Escavação arqueológica do Alto da Vigia (Colares-Sintra): relatório da intervenção realizada em 2015, 2016, p. 17 [policopiado].

[5] Idem, ibidem, pp. 7-9, 67 e 70-75.

[6] Idem, ibidem, pp. 7 e 70. Anteriormente, a cronologia de fundação do santuário era apontada para o século II d.C. (cf. José Cardim Ribeiro, “Soli aeterno Lvnae. Cultos astrais em época pré-romana e romana na área de influência da serra de Sintra: ¿um caso complexo de sincretismo?”, Sintria, III-IV, 1995-2007, pp. 607 e 609; idem, “Soli aeterno Lvnae: o santuário”, in Religiões da Lvsitânia. Loquuntur Saxã, Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia, 2000, pp. 236-237).

[7] Alexandre Gonçalves, op. cit., p. 7.

[8] José Cardim Ribeiro, “Estudos histórico-epigráficos em torno da figura de L. Iulius Maelo Caudicus”, Sintria, III: I, 1982-1983, p. 166.

[9] Jorge de Alarcão, O domínio romano em Portugal, 4.ª ed., [Lisboa], Publicações Europa-América, 2002, p. 80; Inês Nadal de Sousa Byrne, “A rede viária da zona Oeste do Município Olisiponense (Mafra e Sintra)”, sep. de Al-Madan, II: 2, 1993, 46.

[10] “Outra memória de basas digna de lembrar e de imitar dos fiéis, faziam os antigos e infiéis, como eu vi, quando me o Infante Dom Luís, vosso tio que Deus tem, levou a mostrar a Serra de Sintra, mandando-me para isso chamar a Lisboa, quando vim de Itália. E vimos em a foz do rio de Colares, prezado em outro tempo dos Romanos, sobre um pequeno outeiro junto do mar Oceano, um círculo ao redor cheio de cipos e memórias dos imperadores de Roma que vieram àquele lugar; e cada um punha um cipo com seu letreiro a Sol Eterno e à Lua, a quem aquele promontório foi dos gentios dedicado. O que nós, espiritualmente mudando, podemos converter em cipos os embasamentos dos pés das Cruzes que digo, em louvor e memória do verdadeiro Sol de justiça, Jesus Cristo, e da verdadeira e sempre cheia de graça Santa Maria Nossa Senhora, como se pode considerar deste desenho” (Francisco D’Holanda, Da fábrica que falece à cidade de Lisboa, introd., notas e coment. de José da Felicidade Alves, [Lisboa], Livros Horizonte, 1984, fl. 24v e 25r).

[11] José Cardim Ribeiro, “Ad Antiquitates Vestigandas. Destinos e itinerários antiquaristas nos campos olisiponenses ocidentais desde inícios a meados do século XVI”, in Gerard González Germain (coord.), Peregrinationes ad inscriptiones colligendas. Estudios sobre epigrafía de tradición manuscrita, Bellaterra, Universitat Autònoma de Barcelona, 2016, pp. 142 e 158; Alexandre Gonçalves, op. cit., pp. 5-6.

[12] Jorge de Alarcão, “Colares”, in Dicionário de Arqueologia Portuguesa, Porto, Figueirinhas, 2012, p. 118.

[13] A. Fontoura da Costa, ed., Cartas das ilhas de Cabo Verde de Valentim Fernandes (1506-1508), Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1939, pp. 87-88.

[14] Idem, ibidem, p. 88.

[15] Alexandre Gonçalves, op. cit., p. 5.

[16] Idem, ibidem, p. 10; José Cardim Ribeiro, op. cit., p. 140.

[17] Cf. Jaime D’Oliveira Lobo e Silva, Anais da vila da Ericeira. Registo cronológico de acontecimentos referentes à mesma vila, desde 1229 até 1943, 3.ª ed., Mafra, Câmara Municipal de Mafra, 2002, p. 24; Marco Oliveira Borges, “A torre defensiva que D. João II mandou construir em Cascais: novos elementos para o seu estudo”, História. Revista da FLUP, IV: 5, 2015, pp. 106-108.

[18] Idem, ibidem, p. 108.

[19] José Cardim Ribeiro, crendo que tenha existido a representação circular referida por Holanda e apoiado em Sylvie Deswarte-Rosa, embora admitindo que o humanista português deva ter procedido à multiplicação de elementos para conferir maior monumentalidade ao sítio, refere que poderá ter havido inspiração a partir de um exemplo bracarense que se vê numa gravura de 1594. Com efeito, o modelo seguido no Alto da Vigia teria tido inspiração na representação circular dos doze marcos miliários romanos dispostos em torno da ermida de Santa Ana, embora um deles surja tombado, tendo a disposição desses elementos sido executada por ordens de D. Diogo de Sousa em 1506 (cf. Sylvie Deswarte-Rosa, “Le voyage épigraphique de Mariangelo Accursio au Portugal, printemps 1527”, in Maria Berbara e Karl A. E. Enenkel (eds.), Portuguese Humanism and the Republic of Letters, Leiden-Boston, Brill, 2012, p. 78; José Cardim Ribeiro, op. cit., p. 143, n. 8).

[20] Pedro Albuquerque, Tartessos: a construção de identidades através do registo escrito e da documentação arqueológica. Um estudo comparativo. Dissertação de Doutoramento, vol. I, Universidade de Lisboa, 2014, p. 154.

[21] A partir de elementos naturais como, por exemplo, uma montanha, uma fonte, uma árvore, um bosque, um cabo, etc. (idem, ibidem, p. 154).

[22] Idem, ibidem, p. 154.

[23] Alexandre Gonçalves, op. cit., pp. 66-67.

[24] Idem, ibidem, pp. 68-70.

[25] “Edícula”, in Dicionário de Arqueologia Portuguesa, p. 141.

[26] Alexandre Gonçalves, op. cit., pp. 69-70.

[27] Idem, ibidem, p. 70.

[28] Idem, ibidem, p. 70.

[29] J. M. Alveirinho Dias, “A história da evolução do litoral português nos últimos vinte milénios”, in António Augusto Tavares, Maria José Ferro Tavares e João Luís Cardoso (eds.), Evolução geohistórica do litoral português e fenómenos correlativos. Geologia, História, Arqueologia e Climatologia. Actas do Colóquio. Lisboa, 3 e 4 de Junho de 2004, Lisboa, Universidade Aberta, 2004, pp. 165 e 167; António M. Monge Soares, “Identificação e caracterização de eventos climáticos na costa portuguesa, entre o final do Plistocénico e os tempos históricos – o papel do radiocarbono”, in Evolução geohistórica […], p. 194.

[30] Ana Margarida Arruda e Raquel Vilaça, “O Mar Grego-Romano antes de Gregos e Romanos: perspectivas a partir do Ocidente Peninsular”, in Francisco de Oliveira, Pascal Thiercy e Raquel Vilaça (coords.), Mar Greco-Latino, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, p. 35.

[31] Cf. Avieno, Orla Marítima, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica/Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 1992, pp. 22 e 47, n. 34.

Videoclipe o “Mar de Cascais”

 

Aproveitei algum do meu tempo de quarentena para fazer este videoclipe instrumental sobre o “Mar de Cascais”. Para tal, usei imagens de arquivo que fui captando sobretudo ao longo dos últimos dois anos. Nada foi planeado, o cenário de quarentena é que levou a isto, pelo que fiquei limitado ao uso dessas imagens. Gostaria de ter enriquecido o videoclipe com mais imagens em movimento, assim como com outras imagens de actividades desenvolvidas nesta costa, pois há muito mais no mar de Cascais para ver, mas, perante a crise actual, terá de ficar para outras oportunidades.

Nestes tempos difíceis, em que todos devemos ficar em casa para evitar ainda mais a disseminação do vírus Covid-19, aqui fica um cheirinho do mar de Cascais. No videoclipe podemos ver várias perspectivas do mar, as cetárias romanas, pescadores, os apetrechos de pesca, Cascais medieval, os barcos, os acidentes marítimos, Cascais actual, a procissão a Nossa Senhora dos Navegantes, o lixo marítimo, etc.

Em breve, talvez também surja algo no mesmo contexto para a costa de Sintra. Até lá, vejam o vídeo (encurtador.com.br/eipL7), subscrevam o canal no Youtube e activem as notificações para ficarem a par das novidades.

Marco Oliveira Borges | 2020

Apontamentos sobre a villa romana de Santo André de Almoçageme (Colares)

Ruínas da villa
Fig. 1 – Aspecto parcial das ruínas da villa romana de Santo André de Almoçageme. “Terreno B”, zona de peristilo.

Situada aproximadamente a 2 km da foz da ribeira de Colares, a villa romana de Santo André de Almoçageme é aquela que, até ao momento, foi identificada como estando na posição mais ocidental do mundo romano[1]. As primeiras recolhas conhecidas de materiais neste local remontam a 1905, altura em que se procedeu a trabalhos de exploração e levantamento parcial de um mosaico policromo que havia sido descoberto aquando das obras da Estrada do Rodízio[2], a qual permite o acesso às imediações da Praia Grande, Praia Pequena e Praia das Maçãs. Sabe-se que, em Dezembro desse ano, alguns materiais ali recuperados deram entrada no Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia. É de referir, por exemplo, 6 moedas romanas em bronze, diversos fragmentos de cerâmicas de construção, de armazenamento e de transporte, incluindo fragmentos de ânforas, 2 pondera de barro, 2 cossoiros, entre outros diversos materiais[3]. Entre 1977 e 1982 deram entrada no Museu Regional de Sintra três pondera e alguns fragmentos de dolia obtidos na villa romana de Santo André, isto em recolhas feitas à superfície[4].

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Fig. 2 – Estrada do Rodízio.

No entanto, somente na Primavera de 1985 tiveram início escavações arqueológicas de forma metódica, motivadas pela descoberta ocasional de estruturas in situ no terreno de exploração agrícola voltado a Sul (“Terreno A”)[5] e que abrange uma área aproximada de 1.200 m2. Após três campanhas de escavação arqueológica (1985, 1986 e 1987), concluiu-se estar perante um sector exterior ao espaço residencial da villa, sendo classificável como olaria de cerâmica de construção e que, em determinado momento, terá funcionado como lixeira, acabando assim por reunir materiais dos vários sectores desse habitat[6]. Entre todo o espólio recolhido nas três campanhas, destaca-se o elevado número de fragmentos cerâmicos (c. 87% do total das peças obtidas), sendo significativa a presença de cerâmica fina de importação[7]. Neste enquadramento, foram detectados materiais provenientes de quatro grandes centros exportadores no “Terreno A”:

1) Norte de África. O conjunto das cerâmicas terra sigillata africana (clara A, A/C, C e D) obtidas corresponde a um total de > 95% dos materiais recolhidos (1.378 fragmentos), constituindo esmagadoramente o centro exportador mais representado e quase que detendo a exclusividade da terra sigillata detectada neste sector da villa.

2) Hispânia. Representa apenas < 3% (= 36 fragmentos), percentagem que é dividida entre a terra sigillata hispânica (> 1% = 20 fragmentos) e a terra sigillata hispânica tardia (1% = 16 fragmentos)[8]. Esta última, detectada em poucas estações portuguesas, pelo menos até 1992, era cerâmica fina de importação produzida na região central do Norte da Península Ibérica, tendo “um circuito comercial essencialmente interior e fluvial”[9].

3) Sul da Gallia. Detém somente perto de > 1% (= 19 fragmentos)[10].

4) Mediterrâneo Oriental. Com a presença de Late Roman C Ware, detém < 1% (= 9 fragmentos) de toda a cerâmica fina registada no “Terreno A”[11].

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Fig. 3 – Planta geral da villa romana de Santo André de Almoçageme. A – “Terreno A”, olaria; B – “Terreno B”, zona do peristilo; C – “Terreno C”, designado popularmente por Quintal dos Tijolos.  Fonte: Sousa 1992a: 86.
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Fig. 4 – Cabeça de uma pequena estatueta encontrada em 1987. Datável de início do século III d. C., será uma representação da imperatriz Júlia Domna, mulher do imperador Septímio Severo. Fonte: https://www.facebook.com/museuarqueologicodesaomigueldeodrinhas/

Com base na presença de terra sigillata sud-gálica, Élvio Melim de Sousa remontou a construção e ocupação desta villa ao século II d.C., possivelmente à segunda metade. Contudo, foi ao longo do século III que os índices de ocupação aumentaram consideravelmente, registando o seu apogeu já na segunda metade dessa centúria e mantendo-se constantemente elevados por todo o século IV, conforme deixam perceber as altíssimas percentagens de terra sigillata clara C e D[12]. O conjunto de terra sigillata africana detectada (clara A, A/C, C e D) revela “uma forte e intensa relação entre Olisipo e o Norte de África na segunda metade do séc. III d.C. e durante o séc. IV, à qual não estarão alheios, certamente, a grandeza e a poderosa rede de difusão comercial das fábricas norte-africanas, bem como o relevante papel do porto de Olisipo na recepção dos respectivos produtos e posterior difusão dos mesmos pelo ocidente da Lusitânia, e desde logo pelos seus Agri[13].

A villa romana de Santo André de Almoçageme acabaria progressivamente por entrar em decadência, mas terá sido abandonada apenas em meados do século V d.C., ou até mesmo um pouco depois, a julgar pela detecção de cerâmica do tipo Late Roman C Ware e de terra sigillata hispânica tardia, sendo estes os materiais cerâmicos de cronologia mais recente que se encontraram até então[14]. Élvio Melim de Sousa acrescentou ainda que os resultados que se viessem a obter noutros sectores da villa, e através da análise de outros materiais, não modificariam substancialmente as conclusões que atrás foram avançadas. Os trabalhos mais recentes parecem confirmar isso mesmo.

A partir de 2007, uma equipa do Museu Arqueológico de São Miguel de Odrinhas iniciou um programa de recuperação e de valorização desta villa, prevendo-se colocar a descoberto, nos anos seguintes, todos os vestígios arqueológicos e fazer a sua musealização. Porém, as actividades viriam a cessar poucos anos depois, sem estarem concluídas.

Mosaícos
Fig. 5 – Aspecto de mosaico, triclinium. Fonte: http://museuarqueologicodeodrinhas.cm-sintra.pt/
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Fig. 6 – Placa toponímica alusiva à villa romana local.

Marco Oliveira Borges | 2020

Estudos

Borges, M. O. (2015), “Portos e ancoradouros do litoral de Sintra-Cascais. Da Antiguidade à Idade Moderna (I)”, Actas das Jornadas do Mar 2014. Mar: Uma onda de Progresso. Almada, Escola Naval: 152-164.

Borges, M. O. (2018), “Navegação comercial fluvio-marítima e povoamento no Ocidente do Municipium Olisiponense: em torno dos rios Lizandro (Mafra) e Colares (Sintra)”, in C. Soares, J. L. Brandão, P. C. Carvalho (coords.), História Antiga: relações interdisciplinares, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra: 219-255.

Caetano, M. T. (2011), “Mosaicos da finisterra ocidental: uilla de Santo André de Almoçageme”, in Actas do X Colóquio Internacional de Mosaico Greco-Romano, Coimbra, Museu Monográfico de Conímbriga, pp. 873–887.

Campos, M. J. (1906), “Acquisições do Museu Ethnologico Português”, O Archeologo Português, XI: 284-295.

Cortez, F. R. (1947), “Mosaicos romanos da Estremadura”, Estremadura. Boletim da Junta da Província, II, 14: 57-71.

Sousa, É. M. (1992a), “Ruínas Romanas de St.º André de Almoçageme”, Actas do Seminário O Espaço Rural na Lusitânia. Tomar e o seu Território, 17 a 19 de Março 1989. Tomar, Centro de Estudos de Arte e Arqueologia da Escola Superior de Tecnologia de Tomar: 85-91.

Sousa, É. M. (1992b), “Terra Sigillata Hispânica Tardia da Villa de Santo André de Almoçageme (Colares, Sintra)”, sep. de Artefactos, I: 16-21.

[1] Este artigo de divulgação histórica, ainda que sofrendo algumas modificações, foi adaptado de estudos mais alargados (Borges 2015: 153-154; Borges 2018: 219-255), no quais tínhamos feito uma síntese do sítio arqueológico com base em alguns estudos a que tivemos acesso. Sobre o programa de recuperação e de valorização desta villa, cf. http://ensina.rtp.pt/artigo/villa-romana-santo-andre-almocageme/.

[2] Campos 1906: 288; Sousa 1992a: 85; Caetano, 2011: 874.

[3] Campos 1906: 288-289; Cortez 1947: 62. Por compreender ficou a tipologia dos fragmentos de ânforas recolhidos, algo que também parece não ter sido referido pelos investigadores posteriores.

[4] Sousa 1992a: 85.

[5] Sousa 1992a: 85-86.

[6] Sousa 1992a: 85-86.

[7] Sousa 1992a: 86.

[8] Sousa 1992a: 90.

[9] Sousa 1992b: 16.

[10] Sousa 1992a: 90.

[11] Sousa 1992a: 90.

[12] Sousa 1992a: 90.

[13] Sousa 1992a: 90.

[14] Sousa 1992a: 90; Sousa 1992b: 17.

A navegabilidade do esteiro de Colares (Sintra) e o povoamento local durante o Período Romano

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Fig. 1 – Área costeira entre a Ericeira e Lisboa. A costa de Colares surge ao centro. Fonte: João Teixeira, 1648 (MM).

A área ocidental dos agri olisiponenses que envolve os rios Lizandro (Mafra) e Colares (Sintra)[1], situados a c. 14 km de distância um do outro[2], tem revelado uma riqueza destacada de sítios arqueológicos e diversos achados dispersos pelo território, atestando bem a importância do povoamento romano neste espaço. Estácio da Veiga, numa obra publicada em 1879, já havia chamado a atenção para a existência de diversos dados que indiciavam a presença de antigas povoações com relações familiares próximas da área costeira entre Colares e o concelho de Mafra, mais precisamente até Paço de Ilhas[3]. No entanto, não estabeleceu qualquer ligação com a actividade naval romana nos cursos de água envolventes, apenas com as vias terrestres.

Olhemos o caso de Colares. O rio local, actualmente reduzido à condição de ribeira, situa-se no concelho de Sintra, a Sul do rio Lizandro e um pouco a Norte do promontório de Ofiússa (cabo da Roca)[4]. Nasce a c. 14 km da sua foz[5], a actual praia das Maçãs, sendo que terá sido navegável pelo menos até ao século XII, altura em que a frota de Sigurd terá subido este rio quando atacou Sintra (1109)[6]. O que permitia navegar nesta área, na verdade, era o braço de mar que antigamente inundava o vale de Colares, possivelmente apenas em períodos de preia-mar[7], possibilitando o acesso ao interior do território sintrense e ao porto local, o qual estaria situado na área da várzea, ou seja, a c. 4 km da praia das Maçãs[8]. Contudo, a tradição refere que antigamente o mar chegaria mais para montante, até Galamares[9] (fig. 6), povoação situada a c. 8 km da foz do curso de água em análise[10], sendo esta uma das localidades sintrenses onde foram assinalados vestígios epigráficos romanos[11].

Muito embora seja possível que, à semelhança da hipótese colocada para o caso do rio Lizandro, tenham existido outros focos portuários ao longo do rio de Colares, é preciso ver com algumas reservas a ideia de se ter podido navegar até Galamares[12]. Aliás, somente através de estudos paleoambientais e paleogeográficos se poderá compreender melhor até que ponto o mar inundava o vale de Colares em tempos históricos, permitindo a sua navegabilidade, bem como os fenómenos de assoreamento que progressivamente impossibilitaram a entrada de navios a partir da praia das Maçãs.

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Fig. 2 – Praia das Maçãs com água do mar acumulada no interior, formando uma lagoa (início do século XX).
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Fig. 3 – Mais uma fotografia antiga da praia das Maçãs.

Depois de Maria Teresa Caetano ter recolhido e sistematizado as informações históricas dispersas sobre o rio, esteiro e porto de Colares, aduzindo ainda outros elementos toponímicos diversos e dados de ordem geomorfológica que permitem pensar na navegabilidade daquela área em épocas recuadas[13], estudos posteriores possibilitaram aprofundar questões e trazer novas interpretações, sobretudo para o Período Romano e Período Islâmico[14]. De facto, embora a ideia da existência de um porto interior em Colares remeta-nos para a Idade Média, é muito provável que o esteiro de Colares já fosse navegado durante o Período Romano ou até mesmo antes[15]. Existem importantes evidências arqueológicas romanas dispersas pela área da actual ribeira de Colares e arredores que, uma vez relacionadas com a navegabilidade do esteiro local e com o povoamento nessa área, permitem explorar diversas hipóteses.

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Fig. 4 – Aspecto do sítio arqueológico do Alto da Vigia.

Em pleno século I d.C., altura em que os romanos terão construído um santuário dedicado ao Sol, à Lua e ao Oceano no Alto da Vigia[16], outeiro imediatamente situado a Sul e sobranceiro ao rio colarense, este curso de água teria uma foz ampla por onde entrava o mar, constituindo-se assim como um canal privilegiado de comunicação e de ligação naval com o interior do território[17]. No entanto, é muito provável que o esteiro local já tivesse alguma importância nesse âmbito durante a Idade do Ferro[18] e até mesmo no contexto comercial regional do Bronze Final[19]. Contudo, por agora exploraremos apenas as cronologias romanas.

Evidências que não podem deixar de ser exploradas em ligação com a ideia de navegabilidade do esteiro de Colares, e assim com a entrada de mercadorias através desta área, prendem-se com os materiais arqueológicos detectados na villa romana de Santo André de Almoçageme (fig. 5), nomeadamente os de importação marítima.

Situada actualmente a c. 3 km da foz da ribeira de Colares, esta villa é aquela que, até ao momento, foi identificada como estando na posição mais ocidental do mundo romano. Apesar das primeiras recolhas conhecidas de materiais neste local remontarem a 1905, somente na Primavera de 1985 tiveram início escavações arqueológicas de forma metódica, motivadas pela descoberta ocasional de estruturas in situ no terreno de exploração agrícola voltado a Sul (“Terreno A”)[20] e que abrange uma área aproximada de 1.200 m2. Após três campanhas de escavação arqueológica (1985, 1986 e 1987), concluiu-se estar perante um sector exterior ao espaço residencial da villa, sendo classificável como olaria de cerâmica de construção e que, em determinado momento, terá funcionado como lixeira, acabando assim por reunir materiais dos vários sectores desse habitat[21]. Entre todo o espólio recolhido nas três campanhas, destaca-se o elevado número de fragmentos cerâmicos (c. 87% do total das peças obtidas), sendo significativa a presença de cerâmica fina de importação[22]. Neste enquadramento, foram detectados materiais provenientes de quatro grandes centros exportadores no “Terreno A”:

1) Norte de África. O conjunto das cerâmicas terra sigillata africana (clara A, A/C, C e D) obtidas corresponde a um total de > 95% dos materiais recolhidos (1.378 fragmentos), constituindo esmagadoramente o centro exportador mais representado e quase que detendo a exclusividade da terra sigillata detectada neste sector da villa.

2) Hispânia. Representa apenas < 3% (= 36 fragmentos), percentagem que é dividida entre a terra sigillata hispânica (> 1% = 20 fragmentos) e a terra sigillata hispânica tardia (1% = 16 fragmentos)[23]. Esta última, detectada em poucas estações portuguesas, pelo menos até 1992, era cerâmica fina de importação produzida na região central do Norte da Península Ibérica, tendo “um circuito comercial essencialmente interior e fluvial”[24].

3) Sul da Gallia. Detém somente perto de > 1% (= 19 fragmentos)[25].

4) Mediterrâneo Oriental. Com a presença de Late Roman C Ware, detém < 1% (= 9 fragmentos) de toda a cerâmica fina registada no “Terreno A”[26].

Com base na presença de terra sigillata sud-gálica, Élvio Melim de Sousa remontou a construção e ocupação desta villa ao século II d.C., possivelmente à segunda metade. Contudo, foi ao longo do século III que os índices de ocupação aumentaram consideravelmente, registando o seu apogeu já na segunda metade dessa centúria e mantendo-se constantemente elevados por todo o século IV, conforme deixam perceber as altíssimas percentagens de terra sigillata clara C e D[27]. O conjunto de terra sigillata africana detectada (clara A, A/C, C e D) revela “uma forte e intensa relação entre Olisipo e o Norte de África na segunda metade do séc. III d.C. e durante o séc. IV, à qual não estarão alheios, certamente, a grandeza e a poderosa rede de difusão comercial das fábricas norte-africanas, bem como o relevante papel do porto de Olisipo na recepção dos respectivos produtos e posterior difusão dos mesmos pelo ocidente da Lusitânia, e desde logo pelos seus Agri[28].

Ruínas da villa
Fig. 5 – Aspecto de parte das ruínas da villa romana de Santo André de Almoçageme.

A villa romana de Santo André de Almoçageme acabaria progressivamente por entrar em decadência, mas terá sido abandonada apenas em meados do século V d.C., ou até mesmo um pouco depois, a julgar pela detecção de cerâmica do tipo Late Roman C Ware e de terra sigillata hispânica tardia, sendo estes os materiais cerâmicos de cronologia mais recente que se encontraram até então[29]. Élvio Melim de Sousa acrescentou ainda que os resultados que se viessem a obter noutros sectores da villa, e através da análise de outros materiais, não modificariam substancialmente as conclusões que atrás foram avançadas. Os trabalhos mais recentes parecem confirmar isso mesmo.

Por Almoçageme passaria uma via secundária que fazia ligação com outros povoados da região, incluindo o Mucifal, e que também permitiria o acesso à área portuária local.

Outros dados arqueológicos importantes que podem ajudar a compreender melhor a presença romana em Colares e a fortalecer a ideia de navegabilidade do esteiro local durante o Período Romano estão nas ânforas que foram encontradas nas imediações daquele curso de água. Num estudo publicado há pouco mais de trinta anos, Frederico Coelho Pimenta deu a conhecer a seriação dos materiais anfóricos entrados até finais do primeiro semestre de 1983 no Museu Regional de Sintra, todos provenientes de estações arqueológicas daquele concelho. Esses materiais reportam-se a 37 exemplares de ânforas, abarcando uma cronologia datável entre os séculos II-I a.C. e IV-V d.C., ainda que para o caso de 6 diversos fragmentos de ânfora não tenha sido possível atribuir com segurança tais balizas temporais. Os materiais derivam, na sua esmagadora maioria, de recolhas de superfície, de achados fortuitos ou de antigas escavações. Neste sentido, é de salientar a ausência de dados estratigráficos sobre os materiais recolhidos, exceptuando para uma das ânforas encontradas no Faião, tal como para grande parte dos fragmentos provenientes dos trabalhos realizados nas ruínas de Cabanas (S. Marcos)[30].

Como é sabido, o estudo das ânforas é vital para a compreensão da economia antiga, das dinâmicas e das rotas comerciais, dos ritmos de consumo e dos hábitos alimentares, para além de ser fundamental para a obtenção de indicadores cronológicos[31]. Não sendo possível explorar todos os dados apresentados por Coelho Pimenta, focaremos, por agora, apenas aqueles que tiveram proveniência de locais situados nas imediações da ribeira de Colares.

No caso do Mucifal (fig. 6), aldeia situada na margem direita da referida ribeira, foram descobertos alguns exemplares completos ou pouco fragmentados de ânforas romanas. A descoberta deu-se na década de 1950 durante a exploração de um areal localizado à saída Norte do Mucifal[32]. No total foram descobertos entre 5 a 7 exemplares, embora no seu estudo o referido autor apenas tenha tido oportunidade de apresentar duas das ânforas ali encontradas, as quais deram entrada no Museu Regional de Sintra em 1981. Uma ou duas, na altura da descoberta, tiveram como destino o Museu Nacional de Arqueologia, enquanto que duas ou três dispersaram-se por colecções particulares[33]. As duas ânforas provenientes do Mucifal que Coelho Pimenta teve oportunidade de estudar são do tipo Dressel 14 (fabricadas no Vale do Sado), datáveis dos séculos I-II d.C., e estavam vocacionadas para o transporte de pasta de peixe (garum). Tinham capacidade para 32-33 litros[34].

Embora aparentemente encontradas sem contexto, é muito provável que as ânforas do Mucifal, podendo fazer parte de um número maior do que aquele que foi referido, estivessem associadas ao abastecimento de um habitat que terá existido nesta área. Se bem que não se tenha relacionado, já em Agosto e Setembro de 1905, no âmbito de algumas peças arqueológicas que deram entrada no Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia, também foi referida uma lista de objectos provenientes do Mucifal: 3 mós de pedra, 1 mediano romano de bronze, metade de um cossoiro, 9 machados de pedra, 64 pondera de barro e 1 capitel de calcário[35]. Ao que parece, embora não sendo certo, a descoberta destes materiais terá estado associada à realização de obras públicas, sendo que as evidências detectadas na altura terão levado a uma “exploração archeologica”[36]. Seja como for, estes materiais indiciam claramente a existência de um habitat romano na área do Mucifal (provavelmente uma villa[37]), que, devido à proximidade, poderia estar associado ao porto local. Acrescente-se que o topónimo Mucifal poderá derivar do árabe mussaffa, ou seja, “baixada”, “vale inundado”[38], dando assim sentido à ideia de que toda a área da várzea de Colares e arredores era inundada pelo mar e acessível à navegação.

Fig. 8
Fig. 6 – Vista parcial de Sintra com indicação dos princípais locais em estudo.

Numa outra hipótese, referida oralmente por José Cardim Ribeiro, foi sugerido que as ânforas do Mucifal poderão estar associadas à produção local de preparados piscícolas e à existência de cetárias. À semelhança do que poderá ter acontecido no vale do Lizandro, é possível que nas margens do antigo rio de Colares tenham existido cetárias, até mesmo a jusante do Mucifal. Faltam trabalhos de prospecção arqueológica ao longo desta área antigamente invadida pelo mar, sendo que a densa acumulação de areia e vegetação, estendendo-se a montante da praia das Maçãs, poderá estar a ocultar importantes vestígios arqueológicos.

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Fig. 7 – Vista para a praia das Maçãs.

Por sua vez, no Lugar do Marcador, próximo do Mucifal, uma recolha de superfície feita em 1977 permitiu identificar um fragmento de asa de ânfora como sendo do tipo Dressel 20. Com origem na Bética, algures entre os séculos I-II d.C., este tipo de vasilha/contentor destinava-se ao transporte de azeite[39].

Marco Oliveira Borges | 2020

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[1] Este artigo de divulgação histórica, ainda que sofrendo algumas modificações, foi adaptado de um estudo mais alargado: Borges 2018: 219-255.

[2] Se traçarmos uma linha recta a partir da foz do Lizandro até à foz do rio de Colares.

[3] Veiga 1879: 31 e 51-52.

[4] Avieno 1992: 22 e 47, n. 33. Também conhecido por Promontorium Lunae e Promontorium Magno.

[5] Cf. Boléo 1940: 85-87; Azevedo 1988: 102; Caetano 2000: 18-19.

[6] Caetano 2000: 41; Borges 2012a: 124-125; Borges 2012b: 167-168; Pires 2014: 183; Borges 2015b: 160.

[7] João de Barros, aludindo a um suposto acontecimento algo fantasiado ocorrido no rio de Colares durante o Período Islâmico, no local onde refere que existia um porto interior, dá a entender que esse curso de água só seria navegável durante a preia-mar: “porque a maré a este tempo vazava, ficaram algumas naus tão baixas na mãe do rio, e a terra tão alcantilada, que toda ficou igual com o bordo da nau” (Barros 1953: 78).

[8] Contrariamente a Daveau, 1980: 26; Mattoso, Daveau e Belo 2013: 472, o porto não estava situado na foz da ribeira de Colares, mas, como referimos, na área da várzea. É possível que, enquanto o esteiro de Colares foi navegável, a enseada da praia das Maçãs e imediações tenham chegado a funcionar como ancoradouro, até mesmo em períodos de baixa-mar e em que possivelmente não se poderia penetrar no interior do território, mas essa área só terá sido um ancoradouro activo quando o assoreamento costeiro impediu definitivamente a subida do esteiro de mar.

[9] Cf. Santa Anna 1751: 84 [sic], i. é, 86.

[10] Seguindo o trecho da actual ribeira de Colares.

[11] Juromenha 1989-1990: 198-199; Ribeiro 1982-1983: 158-159.

[12] Contrariamente ao que referimos em Borges 2015b: 158.

[13] Caetano 2000: 13-23, 33-34, 40 e passim.

[14] Borges 2012a: 109-128; Borges 2015b: 152-158; Borges 2017: 17-48; Borges 2018: 219-255.

[15] Cf. Boléo 1940: 40.

[16] A julgar pelos testemunhos epigráficos recolhidos nos últimos anos, terá sido muito provavelmente ainda na primeira metade do século I d.C. (Gonçalves 2016: 7 e 70). Anteriormente, a cronologia de fundação do santuário era apontada para o século II d.C. (Ribeiro 1995-2007: 607 e 609; Ribeiro 2000: 236-237). Na mesma área, inclusive com alguns elementos arquitectónicos romanos, foi construída uma estrutura islâmica que os arqueólogos locais têm indicado ser um ribat, assim como uma vigia que tem sido associada ao reinado de D. Manuel I (Gonçalves 2016: 10; Ribeiro 2016: 140). É possível que as descobertas que Valentim Fernandes observou durante a sua visita ao Alto da Vigia (Agosto de 1505), ou seja, três colunas de pedra de forma quadrada com caracteres romanos encontradas debaixo de terra (Costa 1939: 87-88), tenham sido detectadas devido a obras de construção dessa vigia (Gonçalves 2016: 10; Ribeiro 2016: 140) – que até recentemente foi interpretada como sendo a torre de um facho (Jordão, Mendes e Gonçalves 2009: 3-4 e 17; Gonçalves 2014: 11-12) – ou apenas a trabalhos de reparação/reformulação após uma possível destruição causada pelos sismos que terão ocorrido em 1504-1505. Estes sismos terão provocado estragos na torre defensiva que D. João II mandou construir em Cascais (c. 1494) e nas muralhas medievais da vila, pelo que poderá ter acontecido o mesmo em edificações do litoral de Sintra. Terá sido neste sentido que o monarca ordenou que se reunissem meios para que essas estruturas cascalenses entrassem em reparação, coincidindo assim com a altura das informações escritas por Valentim Fernandes, sendo que o documento que o comprova é de 12 de Agosto de 1505 (cf. Borges 2015a: 106-108). Outros sismos ocorridos em anos posteriores, 1512, 1527, 1528 e 1531 (Borges 2015a: 108), poderão ter levado a estragos na estrutura do Alto da Vigia e a consequentes reparos que tenham implicado reformulações.

[17] Em conjugação com as indicações de Boléo 1940: 40 e passim; Azevedo 1988: 105; Caetano 2000: 14-23; Ribeiro 1995-2007: 607; Ribeiro 2000: 236; Gonçalves 2011: 19; Borges 2012a: 118-119; Borges 2012b: 37-38; Borges 2015b: 152-158.

[18] Cf. Boléo 1940: 40.

[19] Cf. Cardoso e Sousa 2014: 366.

[20] Sousa 1992a: 85-86.

[21] Sousa 1992a: 85-86.

[22] Sousa 1992a: 86.

[23] Sousa 1992a: 90.

[24] Cf. Sousa 1992b: 16.

[25] Sousa 1992a: 90.

[26] Sousa 1992a: 90.

[27] Sousa 1992a: 90.

[28] Sousa 1992a: 90.

[29] Sousa 1992a: 90; Sousa 1992b: 17.

[30] Pimenta 1982-1983: 117-119.

[31] Filipe 2008: 302.

[32] Pimenta 1982-1983: 135-137.

[33] Pimenta 1982-1983: 137.

[34] Pimenta 1982-1983: 135-138 e 145-147. De uma forma geral, as ânforas Dressel 14 eram contentores largamente produzidos nas olarias da Lusitânia, mais concretamente no Algarve, nos vales do rio Tejo e do rio Sado, bem como em Peniche, entre meados do século I e inícios do século III d.C. Destinavam-se ao transporte dos preparados de peixe produzidos na Lusitânia, sendo estes contentores uma criação local que posteriormente seria imitada nos centros de produção bética (Filipe 2008: 321).

[35] Campos 1906: 284, 287 e 289.

[36] Campos 1906: 284 e 287.

[37] Sousa e Sepúlveda 1999: 64.

[38] Alves 2013: 664.

[39] Pimenta 1982-1983: 135 e 145. Para além deste fragmento, o arqueólogo indica outros três fragmentos de exemplares de ânfora Dressel 20 recolhidos no concelho de Sintra: Cabanas-São Marcos, Ermidas-Assafora e S. Miguel de Odrinhas (cf. Pimenta 1982-1983: 122, 130 e 138). Mais recentemente, detectaram-se também destes exemplares no Casal do Rebolo, no Telhal e, novamente, em S. Miguel de Odrinhas.

Cascais, antes de mais, é terra de pescadores!

Pescadores
Fig. 1 – Pescadores e varinas na praia da Ribeira em meados do século XX.

O documento histórico mais antigo que alude a Cascais remonta a 1282, resultando dos foros e privilégios concedidos pelo rei D. Dinis ao alcaide do mar e homens do mar de Tavira, conforme os que decorriam em Lisboa[1]. No que respeita ao caso casca(l)ense, alude a Martim Anes, que fora alcaide do mar em Lisboa e que, durante o desempenho do seu ofício, punha alcaides do mar em Cascais e Sesimbra. Estes alcaides eram como que capitães de porto nomeados pelo almirante, existentes nas principais cidades e vilas marítimas portuguesas, desempenhando funções de justiça e de organização[2]. No referido documento, é indicado que os alcaides do mar tinham a obrigação de prender os pescadores quando estes estavam em terra, quando se feriam ou faziam alguma coisa “sem guisa”[3].

1282
Fig. 2 – Documento de 1282 que alude a “Cascays” e aos pescadores locais.
Fonte: ANTT, Chancelaria de D. Dinis, liv. I, fl. 46v.

Embora a actividade piscatória casca(l)ense venha atestada na documentação histórica desde essa altura – ainda que de forma indirecta –, a pesca já era exercida neste território desde tempos ancestrais, sendo que no Período Romano chegou a existir uma fábrica de preparados piscícolas na área da actual Rua Marques Leal Pancada[4], junto àquele que hoje é o bar “Spicy”. Descoberta em 1992 e alvo de trabalhos arqueológicos nos anos seguintes, em breve uma das cetárias dessa fábrica ficará permanentemente visível ao público.

11 - Cetária romana
Fig. 3 – Uma das cetárias romanas da área portuária de Cascais. Fotografia cedida por Guilherme Cardoso.

Durante os últimos séculos da Idade Média, o peixe de Cascais era carregado para abastecer vários locais do Reino e, muito possivelmente, do exterior, embora neste último caso apenas se confirme uma cidade: Ceuta. As provisões eram constituídas por sardinhas – a espécie que ganha maior relevância na documentação preservada –, pescadas, congros e polvos. Posteriormente, o foral de Cascais (1514) também refere a existência de santolas, lagostas e outros tipos de marisco, atestando a riqueza deste mar. A fama do peixe de Cascais era tal que o mesmo chegou a ser elogiado pelo autor da História do Reino do Congo:

“Tem os rios, e crião em si grande quantidade de peixe do de Portugal: barbos, picões, bordalos, pardelhas, saramugas, esquilhões, peixe que se dá aos doentes, angolas, e outros muitos mui estranhos dos de cá; no mar corvinas, sardinhas, pescadas, mas não tão boas como as de Cascaes”[5].

No plano religioso, a memória medieval casca(l)ense também se liga às actividades piscatórias, havendo uma referência ao aparecimento de uma imagem de Nossa Senhora (com o menino Jesus nos braços) nas redes dos pescadores locais. O acontecimento terá ocorrido em 1362, ou até mesmo antes, muito possivelmente resultante de uma figura de proa decorativa de um navio naufragado. Das várias versões existentes desta memória, seguem-se dois trechos distintos:

Guia - pescadores
Fig. 4 – Pescadores ao largo da Guia.

“E foy que tendo na visinhança da villa de Cascaes lançado suas redes alguns pescadores no anno de 1362, quando as recolheram acharam nellas a melhor pesca que podiam desejar, que era huma pequena imagem da Virgem Sanctissima Senhora Nossa com o minino Jesu nos braços, lavrada em madeyra de cipreste, de rara belleza e fermosura. Alegres os pescadores com tam precioso achado, e desejando que fosse venerada com o culto e reverencia que lhe era devida, resolverem de a collocar na igreja de Sancto Agostinho”[6].

“O ano de 1362 […] ou alguns anos antes deste, segundo se colige de alguns autores, lançaram certos pescadores da Vila de Cascaes […] suas redes ao mar, em a Vigília da Assumpção de Nossa Senhora, com o animo de lhe oferecer tudo o que recolhessem naquele lanço: e como em outros que haviam feito antes, tiveram grande quantidade de pescado, pareceu-lhes seria aquele lanço mais copioso, pela devoção, e piedade com que o haviam oferecido à Virgem Nossa Senhora. Foram também afortunados em o lanço, que ao levantar das redes as acharam não só cheias de toda a variedade de peixes; mas presa pela parte de fora em uma malha, uma formosa Imagem d’aquela Senhora a quem haviam oferecido misteriosamente o lanço”[7].

A imagem haveria de ser crismada de Nossa Senhora da Graça e, curiosamente, em vez de ficar em Cascais ou até mesmo em Sintra – que na altura tinha jurisdição sobre Cascais –, foi transportada para o mosteiro dos Eremitas de Santo Agostinho de Lisboa sob solene procissão. Para A. H. de Oliveira Marques, esta situação deveu-se à não existência de uma igreja em Cascais suficientemente importante, nem sequer ermida que a pudesse receber[8].

Caracterizada durante largos séculos por ser, sobretudo, uma terra de pescadores, de camponeses e de pequenos e médios comerciantes, assim como por estar ligada às actividades de apoio à navegação com destino a Lisboa e à defesa costeira[9], sendo regida a nível local por condes e marqueses, somente em finais do século XIX é que Cascais começou a ser estancia dos monarcas portugueses, trazendo atrás de si os diversos fidalgos que integravam a Corte e que começaram a edificar grandes habitações na zona costeira, marcando ainda hoje a paisagem cultural marítima.

Fig. 2
Fig. 5 – Porto e vila de Cascais numa gravura publicada por Georg Braun 
e Frans Hogenberg, Civitates Orbis Terrarum, vol. I, 1572 (ICGC).

O centro da vida portuária de Cascais sempre foi a praia da Ribeira, também conhecida por praia dos Pescadores e praia do Peixe, tendo assistido, ao longo da História, a diversos ataques de corsários e de piratas, assim como a invasões de inimigos que pretendiam conquistar Portugal. “Os conflitos de 1383-1385 que envolveram Portugal e Castela, bem como a invasão liderada pelo duque de Alba, em 1580, e os diversos actos de corso e pirataria documentados a partir do século XV, são exemplares no que respeita à importância estratégica de Cascais enquanto porta de entrada de forças inimigas vindas por mar”[10]. Daí que a costa cascalense tenha sido fortemente fortificada ao longo dos séculos.

Era, e ainda é, na praia da Ribeira que os pescadores desembarcavam quando vinham da faina, mas muitos, ao longo dos séculos, não lograram voltar a terra, tendo sido vítimas de acidentes no mar. Um desses acidentes ocorreu com o barco a motor “Ana Paula”, em Julho de 1962, ao largo do cabo Raso. Dos sete tripulantes que tinham saído durante a noite para pescar apenas um sobreviveu, tendo nadado para terra, acabando por ser recolhido por uma chata que transmitiu a informação em Cascais.

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Fig. 6 – Notícia presente in A Nossa Terra, Julho de 1962.

No que diz respeito à tradição local, nos últimos trinta anos certos costumes/elementos foram desaparecendo de forma acelerada, enquanto que outros foram sendo esquecidos ou postos de lado. Quem cresceu na baía entre as décadas de 1980 e 1990, por exemplo, habituou-se à chegada, pela tarde, dos arrastões carregados de peixe para ser vendido na lota local. Entre eles, refira-se o “Brutimar”, o “Carlos Tiago”, o “Cruz de Malta” (fig. 7), o “Felizardo”, o “Marina Dulce”, o “Pedrito”, o “Pedro Manuel”, o “Raio de Luz”, o “Verita”, etc. Para a descarga, já na década de 1990, contava-se com o auxílio das chatas do Trinta e da chata do Manel, o Careca, fazendo a ligação entre os arrastões e o pontão de desembarque. Com o abate ou a venda dos arrastões locais terminou a pesca de arrasto com base no porto de Cascais, algo que durante várias décadas foi imagem de marca a nível local.

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Fig. 7 – “Cruz de Malta” ancorado em Cascais (2004).
Década de 1980
Fig. 8 – Chatas na praia da Ribeira.

O mesmo se pode dizer das chatas, embarcações típicas de Cascais. No entanto, será que alguém se preocupa com o seu desaparecimento? No Verão de 2016, quando tive oportunidade de escrever um texto sobre o bairro dos Pescadores, contei apenas 3 chatas em frente à praia da Ribeira e de pequenas dimensões, isto quando em meados da década de 1990 chegavam a estar perto de 20 nas amarrações e na praia[11]. Quantas se podem ver hoje em dia? Ontem, ao final da tarde, apenas era visível uma, mas, curiosamente, até estava varada na praia, depois de ter sido feita a limpeza do casco (fig. 10). Longe vão os tempos em que inúmeras chatas, agitadas nas amarrações pelo vento de Norte, integravam a paisagem marítima casca(l)ense, servindo para a pesca ou de embarcações de apoio às actividades piscatórias e de transbordo.

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Fig. 9 – Vara-se uma chata do Trinta para limpeza do fundo (2004). Na fotografia: Tó Simão (?), Armando e “Fininho”.
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Fig. 10 – Chata varada na praia para limpeza do casco (26/04/2019).

Quando era miúdo, lembro-me que chegava a haver um evento anual em que era simulada a chegada de Nicolau Coelho ao porto de Cascais, isto a propósito do regresso da primeira expedição marítima portuguesa à Índia (1497-1499). Várias escolas do concelho e de fora eram convidadas, havendo diversas actividades na praia da Ribeira associadas às profissões da época dos Descobrimentos, acabando o evento com comes e bebes, não faltando sardinhas e pão. Sendo Cascais uma vila cheia de História, seria importante retomar este tipo de iniciativas ligadas ao seu passado marítimo e de Portugal.

Outra memória recente, esta ainda mais fresca, diz respeito à época da construção da Marina de Cascais, que veio a tapar parte da praia de Santa Marta e a tapar por completo a pequena praia dos Tropas, também conhecida por praia dos Namorados. Mas antes disso, a discussão sobre a construção da Marina de Cascais prolongou-se bastante no tempo, chegando a existir um projecto que propunha a sua construção na Costa da Guia.

Em pleno Inverno de 1997, com a aproximação de um temporal de Sudoeste, três amigos (Bernardo, Fernando e Marco), antes do seu treino habitual de Hóquei de Sala, foram fotografados a passear no pontão de Cascais (fig. 11), altura em que ainda não existia a Marina, se bem já tivessem sido descarregadas toneladas de pedra para a construção do molhe.

Inverno de 2007
Fig. 11 – Cascais durante a aproximação de um temporal de Sudoeste.

Nesse tempo, após as marés-vivas e tempestades oceânicas, era costume ver alguns pescadores da praia da Ribeira, à borda-d’água e durante a baixa-mar, a apanhar diversos objectos, sobretudo moedas provenientes de naufrágios ou perdidas na areia ao longo dos anos, ficando ali soterradas. Não usavam detectores de metais, apenas as mãos para escavar entre a areia e as pequenas pedras postas a descoberto pela baixa-mar. Entre as moedas que apanhei naquela praia, quase sempre de 100 escudos ou outras igualmente de décadas recentes, também encontrei uma mais antiga, de 1808, altura em que a Corte, devido às invasões francesas, rumou ao Brasil. Foi a moeda mais antiga que achei, e até cheguei a mostrá-la a uma professora de História que tive na escola preparatória, mas sabe-se de pescadores que, ao longo das décadas, encontraram exemplares muito mais antigos, até mesmo do Período Romano. A moeda mais antiga que se sabe ter sido apanhada naquela praia é do século I d.C.[12]. Depois da construção da Marina, este costume pouco conhecido – mas comum nas comunidades piscatórias – perdeu-se, sobretudo porque o mar deixou de entrar na praia da Ribeira com a força de outrora, deixando de trazer aqueles e outros objectos.

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Fig. 12 – Praia da Ribeira durante um temporal (meados do século XX).

E as festas do mar? Outra tradição que foi perdendo identidade é a realização, precisamente, das festas do mar, antigamente viradas verdadeiramente para o mar, para a praia e para os pescadores, com diversos eventos na areia e na água: corridas de cocos e de chatas, corridas na areia, competição de cordas, garraiada, etc. Contudo, desde há vários anos que se tornaram, como alguns referem, exclusivamente num género de festival de música de Verão.

Festas do Mar
Fig. 13 – Cartaz das Festas do Mar de 1997. Atente-se nas diversas actividades que estavam presentes.

O tempo não volta atrás, mas é sempre possível recuperar, preservar memórias e as tradições e passá-las às gerações vindouras. Cascais não pode viver sem isso, tal como não pode fugir ao progresso e à inovação. O que não se quer é que seja somente uma atracção baseada em programas virados para a vida turística, para quem vem de fora. É sempre possível conciliar os vários aspectos, mas há que privilegiar as raízes piscatórias e a cultura local.  Quem quiser conhecer ou relembrar um pouco do passado recente e as gentes locais, este vídeo de 1996 é um bom ponto de partida: Cascais: o Fim da Linha (https://arquivos.rtp.pt/conteudos/cascais-o-fim-da-linha/). Muito fica por dizer e conhecer, sendo que nunca é demais relembrar que, historicamente falando, Cascais, antes de mais, é terra de pescadores!

Rabuça
Fig. 14 – José Marques, mais conhecido por Zé Rabuça, antigo pescador local.

Marco Oliveira Borges | 2019

[1] ANTT, Chancelaria de D. Dinis, liv. I, fl. 46v.

[2] A. H. de Oliveira MARQUES, “A arte da guerra”, in Nova História de Portugal, vol. IV – Portugal na Crise dos séculos XIV e XV, Lisboa, Editorial Presença, 1986, p. 362.

[3] ANTT, Chancelaria de D. Dinis, liv. I, fl. 46v.

[4] João CABRAL e Guilherme CARDOSO, “Escavações arqueológicas junto à torre-porta do Castelo de Cascais”, in Arquivo Cultural de Cascais. Boletim Cultural do Município, 12 (1996), pp. 127-145; Guilherme CARDOSO, “As cetárias da área urbana de Cascais”, Setúbal Arqueológica, 13 (2006), pp. 145-150.

[5] História do Reino do Congo (Ms. 8080 da Biblioteca Nacional de Lisboa). Pref. e notas de António Brásio, Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1969, p. 31.

[6] História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas de Lisboa […], t. I, Lisboa, Nas Oficinas da Gráfica Santelmo, 1950, cap. IV, pp. 113 e 123.

[7] Fr. Agostinho de STA. MARIA, Santuário Mariano, 2.ª ed., 1.º liv., Lisboa, Miscelânea, 1933, pp. 93-94.

[8] A. H. de Oliveira MARQUES, “Sintra e Cascais na Idade Média”, in Novos Ensaios de História Medieval Portuguesa, Lisboa, Editorial Presença, 1988, p. 150.

[9] Marco Oliveira BORGES, O porto de Cascais durante a Expansão Quatrocentista. Apoio à navegação e defesa costeira. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2012.

[10] Idem, “Povoamento, estruturas e navegação na costa de Cascais entre a Idade do Ferro e o Período Islâmico” (no prelo).

[11] Idem, “Uma visita ao bairro dos Pescadores (Cascais): em busca de vestígios de actividade piscatória recente”, 2016 (https://sintraecascais.wordpress.com/2016/08/29/uma-visita-ao-bairro-dos-pescadores-cascais-em-busca-de-vestigios-de-actividade-piscatoria-recente/).

[12] Guilherme CARDOSO, Carta arqueológica do concelho de Cascais, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1991, p. 57.

Uma possível fortificação muçulmana no Monte Suímo (Sintra)

Fig. 7
Fig. 1 – Mapa do al-Ândalus e parte do Norte de África, c. 868 (simplificado).

Entre os séculos VIII e XII, o território dos actuais concelhos de Sintra e Cascais terá tido um papel importante no sistema de defesa costeira do Garb al-Ândalus[1]. Integrado na área ocidental marítima do distrito (kura) de Lisboa, este espaço estratégico, na rota das navegações para al-Ushbuna e para o mar Mediterrâneo, estaria dotado de estruturas defensivas e de alerta envolvidas num sistema que começaria a ganhar forma algures a partir do litoral de Sintra, ao mesmo tempo que os portos e ancoradouros locais permitiam apoiar as actividades marítimas e militares.

Terá sido o desencadear dos ataques vikings ao Ocidente Ibérico, com início em 844, alcançando Lisboa e chegando a estender-se ao mar Mediterrâneo, que despoletou uma maior atenção defensiva por parte das autoridades muçulmanas, reforçando-se o aparelho militar e o sistema de defesa costeira ao longo do litoral atlântico e do mar Interior. Sabe-se que o governo omíada reforçou a estrutura defensiva com a edificação de torres de vigia (buruj, pl. de burj) e a utilização de sítios elevados e estratégicos que funcionavam como atalaias[2] (tali’a, pl. de at-talai’a), bem como de diversas fortificações onde se incluíam castelos (husun, pl. de hisn) e conventos-fortificados (rubut, pl. de ribat). Acresce que foram tomadas medidas para a formação de uma marinha de guerra ampla e bem provida de projécteis incendiários, tendo-se recrutado marinheiros e mercenários de várias partes, alguns deles especializados no lançamento de fogo-grego[3]. Se os acontecimentos de 844 também levaram, poucos anos depois, à edificação de estaleiros de construção naval em Sevilha, é muito provável que o mesmo tenha ocorrido noutros pontos do al-Ândalus, inclusive na área ocidental.

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Fig. 2 – Complexo defensivo no Baixo Vale do Tejo durante o Período Islâmico.

Para além das estruturas que estariam dispostas ao longo da costa de Sintra e Cascais, existiriam postos militares edificados mais para o interior. Al-Himyari (século XIII), para a região entre Lisboa e Sintra, refere a existência de uma montanha usada antigamente como reduto fortificado[4], o que poderia, à partida, sugerir algum local elevado no actual concelho de Cascais ou nas suas imediações. No entanto, em 1985, José Manuel Vargas colocou a hipótese de o local em causa ser o Monte Suímo, estando situado a Norte de Belas[5]. Este sítio costuma ser identificado como sendo Ossumo[6], uma das vilas do senhorio de Lisboa referidas por al-Razi (século X)[7].

Situado na serra da Carregueira, numa área em que hoje em dia se encontra uma instalação militar do Exército Português, o Monte Suímo é uma colina de forma arredondada de 291 m de altura, constituindo o maior relevo do conjunto de elevações desta serra. A sua localização privilegiada permite obter uma visão de quase 360º dos arredores, com vistas para Lisboa, estuário do Tejo, para toda a Península de Setúbal até à serra da Arrábida e para o Atlântico, sendo apenas interrompidas pelo perfil dominante da serra de Sintra[8].

O Monte Suímo é famoso pelas suas pedras, sobretudo jacintos, granadas e, em menor escala, esmeraldas. As referências a este local e à exploração do mesmo remontarão ao século I d.C., altura em que Plínio, o Velho, referiu que no território de Lisboa se recolhiam carbúnculos e gemas de intenso brilho e de grande qualidade. Outros autores romanos viriam a mencionar este local, denominando-o por Mons Summus, “monte máximo”[9].

Mina do Suimo, Belas. 1863 - GC
Fig. 3 – Representação da mina de Monte Suímo. Fonte: Archivo Pitoresco, 1863.

Durante o Período Islâmico alguns autores voltaram a aludir ao Munt Shiyun ou Monte Sião, bem como à exploração de minas e à existência de pedras preciosas num monte (ou montanha) das proximidades de Lisboa[10], embora sem ligarem as ditas pedras ao referido local. Em relação ao reduto fortificado atrás referido, parece que apenas al-Himyari – decerto baseado em al-Bakri, discípulo de al-Udhri – refere a sua existência. Neste sentido, a informação sobre o local fortificado já viria do século XI.

Se tivermos em conta a forte possibilidade de que esse reduto fortificado estaria mesmo edificado no Monte Suímo, até pela situação geográfica atrás descrita, capacidade de visualização e de comunicação a longa distância com outros locais importantes integrados na óptica do sistema defensivo que temos vindo a referir, quando é que teria sido erguido? Qual a sua tipologia? Até quando terá estado em funcionamento? Embora ainda não existam possíveis repostas para estas questões, observações efectuadas por Vítor Rafael Sousa e Rui Oliveira no Monte Suímo permitiram verificar a existência de fragmentos de telhas e outras cerâmicas cronologicamente enquadráveis no período alto-medieval/islâmico, bem como a existência de estruturas que poderão corresponder às ruínas de uma antiga fortificação (figs. 4 e 5)[11]. Porém, são necessários trabalhos arqueológicos para que se possa compreender realmente qual a realidade estrutural que subsistiu naquele local e se, de facto, os vestígios dizem respeito a uma antiga fortificação muçulmana.

Fig. 5
Fig. 4 – Ruínas de estruturas pétreas observáveis no Monte Suímo (foto: Vítor Rafael Sousa).
Fig. 6
Fig. 5 – Fragmentos de telhas alto-medievais/islâmicas no Monte Suímo (foto: Vítor Rafael Sousa).

Marco Oliveira Borges | 2019

[1] Este pequeno artigo de divulgação histórica, ainda que tendo sido sujeito a ligeiras modificações, foi adaptado de estudos mais alargados: Marco Oliveira BORGES, “A defesa costeira no distrito de Lisboa durante o período islâmico. I – A área a ocidente da cidade de Lisboa”, in João Luís Inglês Fontes et al. (coords.), Lisboa Medieval: Gentes, Espaços e Poderes. Textos seleccionados do III Colóquio Internacional “A Nova Lisboa Medieval” (Lisboa, FCSH/UNL, 20-22 de Novembro de 2013), Lisboa, Instituto de Estudos Medievais, 2017, pp. 67-104; idem, “Aspectos de militarização e defesa costeira no Garb al-Ândalus: o caso de Cascais”, in Revista Universitaria de Historia Militar, 6:11 (2017), pp. 172-196.

[2] As atalaias podiam ser estruturas arquitectónicas (normalmente turriformes) ou simples locais destacados na paisagem de onde se exercia a vigilância e alertava para a chegada de inimigos (cf. Mário BARROCA, “Atalaia”, in Jorge de Alarcão e Mário Barroca (coord.), Dicionário de Arqueologia Portuguesa, Porto, Figueirinhas, 2012, pp. 48-49).

[3] Sobre todas estas medidas, cf. ABENALCOTÍA, Historia de la conquista de España de Abenalcotía el Cordobés. Seguida de fragmentos históricos de Abencotaiba, etc., trad. de Ribera, Don Julián, Madrid, Tipografía de la Revista de Archivos, 1926, p. 53; António Borges COELHO, Portugal na Espanha Árabe, 3.ª ed. rev., Lisboa, Editorial Caminho, 2008, pp. 169 e 173; Jorge LIROLA DELGADO, El poder naval de al-Andalus en la época del califato omeya (siglo IV hégira/X era cristiana). Tesis doctoral, vol. I., Universidad de Granada, 1991, pp. 122-125; Christophe PICARD, La mer et les Musulmans d’occident au Moyen Age (VIIIe – XIIIe siècle), Paris, Presses Universitaires de France, 1997, pp. 148 e 156; Helena CATARINO, “Breve sinopse sobre topónimos Arrábida na costa portuguesa”, in Francisco Franco Sánchez (ed.), La Rábita en el Islam. Estudios Interdisciplinares. Congressos Internacionals de Sant Carles de la Ràpita (1989, 1997), Sant Carles de la Ràpita/Alacant, Ajuntament de Sant Carles de la Ràpita/Universitat d’Alacant, 2004, pp. 263-267; Fernando Branco CORREIA, “A acção do poder político nas actividades portuárias e na navegação no ocidente islâmico. Alguns tópicos”, in Jesús Angel Solórzano Telechea e Mário Viana (eds.), Economia e Instituições na Idade Média. Novas Abordagens, Ponta Delgada, Centro de Estudos Gaspar Frutuoso, 2013, pp. 14-38.

[4] AL-HIMYARI, Kitab arRawd alMi’tar, Valencia, Anubar, 1963, p. 17; António Borges COELHO, op. cit., p. 47.

[5] Cf. José Manuel VARGAS, “Presença árabe em terras de Sintra”, in Jornal Agualva-Cacém, n.º 1, 1985, p. 10; Eva-Maria VON KEMNITZ, “Sintra islâmica – reminiscências históricas, literárias e artísticas”, in Contributos para a História Medieval de Sintra. Actas do I Curso de Sintra (28 de Março – 2 de Junho de 2007), Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 2008, p. 59, n. 12.

[6] Cf. Gustavo MARQUES, Inscrição românica de Odivelas, Odivelas, Junta de Freguesia de Odivelas, 1986, p. 14; Sérgio Luís CARVALHO, “Acerca das minas do Suímo (Belas), sua identificação com Ossumo e respectiva exploração pela Coroa na Idade Média”, in Arqueologia do Estado. 1.as Jornadas sobre formas de organização e exercício dos poderes na Europa do Sul, séculos XIII-XVIII, Lisboa, História e Crítica, 1988, pp. 465-473; José Cardim Ribeiro, “Felicitas Ivlia Olisipo. Algumas considerações em torno do catálogo Lisboa Subterrânea”, sep. de Al-Madan, II: 3 (1994), p. 82. Outras possíveis localizações foram aduzidas por Adel SIDARUS e António REI, “Lisboa e seu termo segundo os geografos árabes”, in Arqueologia Medieval, 7 (2001), pp. 41-42, 48 e 54; António REI, “Ocupação humana no alfoz de Lisboa durante o período islâmico (714‐1147)”, in A Nova Lisboa Medieval. Actas do I Encontro, Lisboa, Edições Colibri, 2001, p. 31; Jorge de Alarcão, “Notas de Arqueologia, epigrafia e toponímia – V”, in Revista Portuguesa de Arqueologia, Lisboa, 11: 1 (2008), pp. 115-116; André de OLIVEIRA-LEITÃO, O Povoamento no Baixo Vale do Tejo: entre a territorialização e a militarização (meados do século IXinício do século XIV). Dissertação de Mestrado, Universidade de Lisboa, 2011, p. 31; António REI, O Gharb al-Andalus al-Aqsa na Geografia Arabe (seculos III h. / IX d.C. – XI h. / XVII d.C.), Lisboa, Instituto de Estudos Medievais, 2012, pp. 149 e 192.

[7] António Borges COELHO, op. cit., p. 37.

[8] M. CACHÃO, P. E. FONSECA, R. Galopim de CARVALHO, C. Neto de CARVALHO, R. OLIVEIRA, M. M. FONSECA e J. MATA, “A mina de granadas do Monte Suímo: de Plínio-o-Velho e Paul Choffat à actualidade”, in E-Terra. Revista Electrónica de Ciências da Terra, 18: 20 (2010), p. 2.

[9] Cf. Sérgio Luís CARVALHO, op. cit., pp. 466-468.

[10] Cf. António REI, op. cit., pp. 123, 125, 144, 149 e 192.

[11] Agradecemos a Rui Oliveira e a Vítor Rafael Sousa pelas indicações e contributo fotográfico.

Descobertas arqueológicas romanas do Mucifal (Sintra)

Mucifal - 1926
Aldeia do Mucifal em 1926 (postal).

Na aldeia do Mucifal, situada na margem direita do rio de Colares, esteiro de mar outrora navegável[1], foram descobertos alguns exemplares completos ou pouco fragmentados de ânforas romanas[2]. A descoberta deu-se na década de 1950, durante a exploração de um areal localizado na saída Norte do Mucifal[3]. No total foram descobertos entre 5 a 7 exemplares, embora só tenham sido estudadas duas das ânforas ali encontradas, as quais deram entrada no Museu Regional de Sintra em 1981. Uma ou duas, na altura da descoberta, tiveram como destino o Museu Nacional de Arqueologia, enquanto que duas ou três dispersaram-se por colecções particulares[4]. As duas ânforas provenientes do Mucifal, estudadas por Frederico Coelho Pimenta, são do tipo Dressel 14 (fabricadas no Vale do Sado), datáveis dos séculos I-II d.C., e estavam vocacionadas para o transporte de pasta de peixe (garum). Tinham capacidade para 32-33 litros[5].

Mucifal
Ânfora encontrada no Mucifal. Fonte: Frederico Coelho Pimenta, “Subsídios para o estudo do material anfórico conservado no Museu Regional de Sintra”, in Sintria, I-II: I, 1982-1983, p. 136.

Embora aparentemente encontradas sem contexto, é muito provável que as ânforas do Mucifal, podendo fazer parte de um número maior do que aquele que foi referido, estivessem associadas ao abastecimento de um habitat que terá existido nesta área. Se bem que não se tenha relacionado, já em Agosto e Setembro de 1905, no âmbito de algumas peças arqueológicas que deram entrada no Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia, também foi referida uma lista de objectos provenientes do Mucifal: 3 mós de pedra, 1 mediano romano de bronze, metade de um cossoiro, 9 machados de pedra, 64 pondera de barro e 1 capitel de calcário[6]. Ao que parece, embora não sendo certo, a descoberta destes materiais terá estado associada à realização de obras públicas, sendo que as evidências detectadas na altura terão levado a uma “exploração archeologica”[7].

Seja como for, estes materiais indiciam claramente a existência de um habitat romano na área do Mucifal (provavelmente uma villa[8]), que, à semelhança de outros locais de Sintra, Cascais e Mafra que têm vindo a ser estudados, estariam inseridos numa rede de trocas regional em ligação com Olisipo, onde as mercadorias em circulação teriam essencialmente um transporte naval[9].

Fig. 8
Vista parcial de Sintra com destaque, a vermelho, para alguns dos
locais onde foram detectados vestígios romanos.

Numa outra hipótese, referida oralmente por José Cardim Ribeiro, foi sugerido que as ânforas do Mucifal poderão estar associadas à produção local de preparados piscícolas e à existência de cetárias. À semelhança do que poderá ter acontecido no vale do Lizandro, é possível que nas margens do antigo rio de Colares tenham existido cetárias. Faltam trabalhos de prospecção arqueológica ao longo desta área antigamente invadida pelo mar, sendo que a densa acumulação de areia e vegetação presentes nas margens, um pouco a montante da praia das Maçãs, poderão estar a ocultar importantes vestígios arqueológicos.

Mucifal
A caminho dos pinhais do Mucifal (postal).

Marco Oliveira Borges | 2018

[1] Marco Oliveira BORGES, “Portos e ancoradouros do litoral de Sintra-Cascais. Da Antiguidade à Idade Moderna (I)”, in Jornadas do Mar 2014. Mar: uma onda de progresso, Almada, Escola Naval, 2015, pp. 154-155; Maria Teresa CAETANO, Colares, 2.ª ed., Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 2016, pp. 13-24; Marco Oliveira BORGES, “Paisagem cultural marítima de Sintra: uma abordagem histórico-arqueológica”, in Pedro Fidalgo (coord.), Estudos de paisagem, vol. III, Lisboa, Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2017, pp. 255-262.

[2] Este pequeno artigo de divulgação histórica, ainda que tendo sido sujeito a pequenas modificações, foi retirado de um estudo mais alargado: Marco Oliveira BORGES, “Navegação comercial fluvio-marítima e povoamento no Ocidente do Municipium Olisiponense: em torno dos rios Lizandro (Mafra) e Colares (Sintra)”, in Carmen Soares, José Luís Brandão e Pedro C. Carvalho (coords.), História Antiga: relações interdisciplinares. Paisagens urbanas, rurais e sociais, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2018, pp. 238-240.

[3] Frederico Coelho PIMENTA, op. cit., pp. 135-137.

[4] Idem, ibidem, p. 137.

[5] Idem, ibidem, pp. 135-138 e 145-147. De uma forma geral, as ânforas Dressel 14 eram contentores largamente produzidos nas olarias da Lusitânia, mais concretamente no Algarve, nos vales do rio Tejo e do rio Sado, bem como em Peniche, entre meados do século I e inícios do século III d.C. Destinavam-se ao transporte dos preparados de peixe produzidos na Lusitânia, sendo estes contentores uma criação local que posteriormente seria imitada nos centros de produção bética (Victor FILIPE, “Importação e exportação de produtos alimentares em Olisipo: as ânforas romanas da Rua dos Bacalhoeiros”, in Revista Portuguesa de Arqueologia, 11: 2, 2008, p. 321).

[6] M. J. CAMPOS, “Acquisições do Museu Ethnologico Português”, in O Archeologo Português, XI, 1906, pp. 284, 287 e 289.

[7] Idem, ibidem, pp. 284 e 287.

[8] Élvio Melim de SOUSA e Eurico SEPÚLVEDA, “Artefactos romanos de seis estações arqueológicas do concelho de Mafra”, in Boletim Cultural 98, Mafra, Câmara Municipal de Mafra, 1999, p. 64.

[9] Maria José de ALMEIDA e Ana Catarina Bravo SOUSA, “O povoamento rural romano no concelho de Mafra”, in Boletim Cultural 95, Mafra, Câmara Municipal de Mafra, 1996, pp. 213-214; Marco Oliveira BORGES, “Portos e ancoradouros do litoral de Sintra-Cascais […]”, pp. 153-158; idem, “A importância do porto do Touro e do sítio arqueológico do Espigão das Ruivas (Cascais) entre a Idade do Ferro e a Idade Moderna”, in História. Revista da FLUP, IV: 6, 2016, pp. 178-179; idem, “Paisagem cultural marítima de Sintra […]”, pp. 250-255; idem, “Povoamento, estruturas e navegação na costa de Cascais entre a Idade do Ferro e o Período Islâmico” (no prelo).

Uma visita a Sines: o colóquio, a terra, o museu e o mar

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Entre os dias 7 e 9 de Setembro de 2017 teve lugar, no centro de Artes de Sines, o colóquio “Sines, o Porto e o Mar. História e Património” (http://sines.pt/pages/1094). O evento contou com a presença de vários investigadores portugueses e estrangeiros, tendo sido debatido o papel do porto de Sines na história, mas também temas relacionados com as rotas marítimas, com o comércio intercontinental, com a escravatura e o património portuário português. No final do segundo dia de trabalhos foram apresentadas duas obras sobre a história siniense:   Sines na Idade Média. Da fundação do concelho ao foral manuelino, da autoria de Maria Alegria Fernandes Marques, e Sines, a terra e o mar, elaborada em co-autoria por Paula Pereira e Sandra Patrício.

No dia 9, depois de um almoço em São Torpes, teve lugar uma visita guiada ao Museu de Sines. Situado dentro das muralhas do castelo local, ali alguns dos participantes do colóquio puderam observar variadas preciosidades do património cultural siniense. Antes da visita ao museu já tínhamos observado as obras que estão a ser realizadas para musealização de algumas das cetárias romanas que se encontram junto ao castelo de Sines, sendo este um exemplo que deveria ser seguido em outras áreas geográficas. Para quem queira visitar Sines ou que tenha interesse nas comunicações proferidas no colóquio, aqui ficam algumas imagens do evento, da terra e do espólio arqueológico que poderão encontrar no museu.

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Praia Vasco da Gama.
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Castelo de Sines. À esquerda, a estátua de Vasco da Gama, natural de Sines e descobridor do caminho marítimo para a Índia.
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Pormenor do castelo.
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Vasco da Gama (1469-1524).
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Comunicação de Paula Alves Pereira e Sónia Ferro, “A Necrópole S. Salvador, Sines: dados bioarqueológicos”.
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Comunicação de Sónia Bombico, “O porto de Sines em Época Romana: um enclave costeiro na fachada atlântica da Lusitânia”.
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Comunicação de Augusto Salgado, “A guerra submarina na costa alentejana e algarvia durante a Grande Guerra”.
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Obras em andamento para musealização de algumas das cetárias romanas que se encontram junto ao castelo de Sines.
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Ânforas romanas (Museu de Sines).
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Púcaro, jarrinha e urna funerária de incineração.
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Lucerna romana com representação de Hélio ou Mitra. Baixo Império.
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Capitel e base de coluna romana.
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Cepos de âncora romanos.
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Figura em terracota de cronologia e origem incerta.  Poderá ser proveniente do Egipto Fatimida (séculos XI-XII) ou do Próximo Oriente Seljucida.
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Ilha do Pessegueiro.
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Ruínas da fortificação da ilha do Pessegueiro.
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São Torpes.

Marco Oliveira Borges | 2017

 

O porto do Touro (Cascais) e o sítio arqueológico do Espigão das Ruivas (Sintra) entre a Antiguidade e a Idade Moderna

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Fig. 1 – Porto do Touro e sítio arqueológico do Espigão das Ruivas.

O local[1] conhecido como “porto do Touro”[2] situa-se próximo da Biscaia, no limite costeiro Noroeste do concelho de Cascais, um pouco a Sudeste do cabo da Roca, tendo sido utilizado até muito recentemente como porto de apoio à pesca. É ladeado a poente pelo sítio arqueológico habitualmente denominado “Espigão das Ruivas” (rochedo alto, sobranceiro ao mar, de acesso extremamente difícil e perigoso[3]), o qual tem vindo, desde a década de 1880 até aos nossos dias, a ser referido como pertencendo ao concelho de Cascais. No entanto, o assunto levanta dúvidas, parecendo que integra já a parte costeira de Sintra. A arqueologia mostrou que estes locais tiveram uma utilização/ocupação que remonta à Idade do Ferro, com continuação durante o Período Romano e Idade Média, se bem que ainda não esteja devidamente esclarecido qual o tipo de aproveitamento e funcionalidade dos mesmos em períodos tão recuados. Na verdade, existem diversas dúvidas e diferentes interpretações sobre a presença humana nestes locais.

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Fig. 2  – Pormenor da costa de Cascais entre o cabo Raso e o porto do Touro (circundado).

O sítio arqueológico acima referido foi identificado na década de 1880 por Francisco de Paula e Oliveira[4], capitão de artilharia, antropólogo e funcionário da Direcção dos Trabalhos Geológicos entre 1886 e 1888, ano do seu falecimento[5]. Por esta altura, o investigador desenvolveu um importante trabalho de prospecção sistemática no concelho de Cascais, embora o seu falecimento repentino não tenha permitido o estudo da totalidade dos arqueossítios e materiais por si identificados. O relatório das suas observações acabaria por ser publicado postumamente sem que estivesse terminado[6]. Relativamente ao Espigão das Ruivas, ao que parece erradamente colocado pelo autor em território de Cascais, Paula e Oliveira descreveu-o como sendo um rochedo muito escarpado e que, ao avançar para o mar, formava uma pequena península de acesso extremamente difícil, se bem que reconhecendo que aquela configuração provavelmente nem sempre teria sido assim. Nesse rochedo, o investigador referiu que havia identificado alicerces de edifícios, fragmentos de telhas e de cerâmicas, indícios que mostravam que o local havia sido habitado. Não tendo tido tempo para estudar aquelas ruínas, ou talvez se tenha furtado a isso pelo pouco interesse despertado, já que o investigador se importou mais com estações arqueológicas de carácter funerário[7], tornou-se difícil a Paula e Oliveira avançar com a sua possível funcionalidade e idade, ainda que o próprio não tenha tido dúvida quanto a uma antiguidade remota que recuava pelo menos até ao Período Romano[8]. Aliás, o investigador chegou a interrogar-se sobre a possibilidade desse arqueossítio ser o local onde havia sido erguido o templo (ou santuário) romano dedicado ao Sol e à Lua que se sabia ter existido no litoral de Sintra. Muito embora pelas indicações de Francisco de Holanda[9] e outros autores posteriores fosse perceptível que o dito templo havia sido construído no Alto da Vigia (Colares)[10], a hipótese de Paula e Oliveira viria a ser retomada e mantida até recentemente.

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Fig. 3 – Indicação do sítio arqueológico do Espigão das Ruivas, ladeado pela praia do porto do Touro.

Durante muito tempo os investigadores posteriores a Paula e Oliveira não conseguiram localizar o Espigão das Ruivas, até porque o autor não apresentou nenhum mapa com a localização do sítio. Somente em 1991, mais de cem anos depois das averiguações de Paula e Oliveira pelo concelho de Cascais, é que este local veio a ser (re)descoberto, por intermédio de Guilherme Cardoso, vindo a sofrer uma intervenção arqueológica parcial nesse mesmo ano. A partir de então, passou a ser divulgado que o dito rochedo ficava ladeado do porto do Touro[11].

Os trabalhos arqueológicos decorreram entre 29 de Março e 10 de Abril. Naquele rochedo foi escavada uma estrutura pétrea rectangular de pequenas dimensões, com porta a Nordeste e já bastante danificada, situação que não permitiu aos arqueólogos determinar a sua utilidade. Para além disso, e dado o remeximento que toda a superfície do rochedo foi sofrendo ao longo do tempo, não foi possível destrinçar níveis estratigráficos[12]. Ainda que as evidências detectadas não tenham correspondido às expectativas geradas pelas averiguações de Paula e Oliveira e à possibilidade de ali poder ter existido o dito templo, foi dada a conhecer a descoberta de importantes materiais arqueológicos da Idade do Ferro que consistem em cerâmica de pasta fina de cor cinzenta e castanha, correspondendo a fragmentos de pequenas taças e ânforas[13].

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Fig. 4 – A difícil e perigosa subida ao Espigão das Ruivas (Julho de 2015).

Relativamente ao Período Romano, ficou referida a recolha de dois fragmentos de uma pequena taça em terra sigillata sudgálica (forma Drag. 24/25), da segunda metade do século I d.C., um cossoiro, fragmentos de telhas grossas (ímbrices), um anel (?) em fita de cobre, etc.[14]. Refira-se, igualmente, que ficou em aberto a possibilidade de este sítio arqueológico ainda ter estado em actividade durante a Idade Média.

Embora não se tenha conseguido compreender a utilidade da estrutura pétrea em causa, Guilherme Cardoso, trazendo o topónimo “Touro” à questão e a ligação com o mar, colocou a hipótese de ali ter existido “um antigo templo com imagem de um touro[15], animal que simbolizava o desenvolvimento da violência sem contenção e que se encontrava associado ao culto de Poseidon, deus grego do mar a que os Romanos chamaram Neptuno”. Outra hipótese, segundo o mesmo investigador, era “sugerida pela existência do culto lunar na Serra de Sintra e em toda a região desde a Pré-História”, permitindo assim “ligar o touro à Lua, símbolo da luz que, na noite escura, servia de guia aos navegantes”[16].

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Fig. 5 – Vista do Espigão das Ruivas para o Guincho e mar envolvente.
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Fig. 6 – Vista do Espigão das Ruivas para a praia do porto do Touro.

Inicialmente interpretado como um possível local de culto, posteriormente surgiu uma hipótese divergente e que coloca as ruínas da estrutura detectada naquele rochedo como sendo o que restou de um antigo farol usado já no tempo dos fenícios e com continuação pelo Período Romano[17]. Este tipo de estruturas, edificadas em pontos estratégicos da costa, serviam para indicar pontos de referência para orientação marítima e evitar naufrágios, permitindo que os navios mantivessem a necessária distância e prudência em relação a terra[18]. Foi salientado que a possível estrutura de sinalização não teria as características das torres de Cádis e da Corunha (“Torre de Hércules”) que serviram de farol, ou até mesmo da que poderá ter existido no estuário do Sado (Outão)[19] durante o Período Romano, se bem que estivesse próxima do Cabo da Roca, acidente geográfico merecedor de sinalização[20].

Uma outra hipótese sugere que as ruínas da estrutura existente no Espigão das Ruivas, rochedo na cota dos trinta metros, são o que restou de “uma pequena casa”[21]. Face aos “grandes recipientes de cerâmica ali descobertos, nomeadamente ânforas”, foi referido não haver dúvida de que o acesso ao sítio “se fazia por mar, visto que, por terra, seria difícil”[22]. Uma nova interpretação dos materiais arqueológicos ali exumados permitiu enquadrar alguns fragmentos de telha no Período Islâmico[23], sendo ainda apontada a presença visigótica no local[24].

No entanto, falta que se faça o estudo desenvolvido da estrutura, dos materiais arqueológicos ali detectados e a sua publicação integral. Aliás, sabe-se que os materiais da Antiguidade Tardia ali exumados foram apresentados num congresso no Verão de 2016 e que estão em fase de estudo mais aprofundado para publicação, pelo que em breve teremos novidades sobre o assunto. O mesmo virá a ocorrer, futuramente, com os materiais da Idade do Ferro. Espera-se que se possa vir a compreender de forma mais detalhada a cronologia de ocupação inicial do sítio, a integração dos materiais nos circuitos comerciais antigos e estabelecer possíveis paralelos com outros sítios arqueológicos da região.

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Fig. 7 – Barrotes de madeira no interior da estrutura pétrea.

Não havendo um consenso sobre a funcionalidade da estrutura detectada no Espigão das Ruivas, existem outros aspectos que precisam de ser aduzidos à discussão: será que a dita estrutura teve a mesma funcionalidade entre a Idade do Ferro e o Período Islâmico? Será que não sofreu modificações ao longo do tempo? Já vimos que as sucessivas fases de ocupação do sítio foram afectando os níveis arqueológicos anteriores, sendo que a isso podemos acrescentar uma presença humana em tempos mais recentes. Nas ocasiões que visitámos o Espigão das Ruivas constatámos que existem barrotes de madeira no interior das ruínas da estrutura pétrea visível à superfície e que a mesma apresenta, hoje em dia, um formato circular (fig. 8), situações que mostram que o local foi frequentado até muito recentemente e que sofreu novas alterações de ordem antrópica após as escavações de 1991.

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Fig. 8 – Ruínas de estrutura pétrea, hoje em dia de formato circular.

Contudo, as telhas do Período Romano e Islâmico ali detectadas sugerem que se estava perante um pequeno edifício que deverá ter funcionado como casa-abrigo, decerto ligado à navegação. Quanto aos fragmentos de ânforas e de terra sigillata exumados, poderiam estar associados a acções de desvio e descaminho de mercadorias vindas de Olisipo. Note-se que o porto do Touro e toda aquela costa também estavam na rota de uma linha comercial à escala regional que unia as villae do Ocidente do Municipium Olisiponense e Olisipo, sendo que alguns esteiros de mar outrora navegáveis serviam de ligação entre os dois pólos. É o caso do rio Lizandro (Mafra) e do rio de Colares (Sintra) – que no passado beneficiavam da entrada de um braço de mar para o interior dos seus territórios –, por onde teriam fluido navios e mercadorias envolvidas numa rede de ligações comerciais com Olisipo que teria estado activa sobretudo entre os séculos I-II e V d.C., havendo ainda elementos arqueológicos que permitem pensar numa maior antiguidade desses contactos navais[25]. É possível, inclusive, que a área do rio de Colares já tivesse alguma importância quanto à entrada e saída de mercadorias no âmbito do comércio regional do Bronze Final[26].

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Fig. 9 – Pormenor da área costeira entre Sintra e Lisboa com alguns arqueossítios da Idade do Ferro.

Um dos aspectos que desperta a atenção quando se visita o porto do Touro reside no facto de haver uma porção territorial útil mais alargada para o interior imediato e mais abrigada do que o exíguo sítio arqueológico escavado, sendo que entre a praia daquele porto e esse interior existem ruínas de edifícios e outros diversos vestígios de presença humana. Não teria havido já na Idade do Ferro, durante o Período Romano e Idade Média uma relação com esse interior imediato ao porto? Não teriam sido construídas habitações ou outro tipo de estruturas? Ademais, e apesar de apenas terem sido detectados vestígios arqueológicos da Antiguidade e Idade Média naquela área, não teria o local sido ocupado posteriormente, durante a Idade Moderna? É muito provável que tenha havido uma ocupação humana espacialmente mais alargada daquela área durante a Antiguidade e a Idade Média, sobretudo onde actualmente ainda se encontram ruínas de barracas e de algumas habitações geralmente referidas como tendo sido construídas por pescadores em tempos mais recentes, marcando a paisagem cultural marítima local. Talvez tenham existido ali grupos de pessoas que prestavam apoio à navegação, fazendo a ligação entre terra e o mar através de pequenas embarcações quando fosse necessário, e que já se dedicavam a usar o local como porto de apoio à pesca, algo que se deverá ter mantido ao longo de vários séculos. Essas pessoas, se seguirmos estas hipóteses, estariam igualmente associadas à funcionalidade da estrutura detectada no Espigão das Ruivas, que também poderá ter funcionado como vigia e local de sinalização do porto do Touro aos navegantes.

Tendo a área confinante ao dito porto um elevado potencial do ponto de vista arqueológico, era importante desenvolver trabalhos de prospecção nas imediações e possíveis escavações que pudessem trazer novidades e compreender melhor qual o tipo de ocupação humana desde tempos antigos. Do mesmo modo, e havendo a possibilidade de que outras enseadas das proximidades também tenham tido algum tipo de actividade, é essencial que se proceda à prospecção geofísica daquela área costeira. De uma forma geral, futuros trabalhos arqueológicos (em terra e mar) poderão levar a descobertas que permitam perceber melhor a ligação de todo aquele espaço com a actividade naval em épocas recuadas.

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Fig. 10 – Ruínas de habitações no território adjacente ao porto do Touro.
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Fig. 11 – Praia do porto do Touro.

Contrariamente ao que se possa pensar, quando falamos do porto do Touro estamos a indicar um local exíguo, com uma praia pequena, de seixos, sem areia e bastante rochosa, que não é acessível a navios de médias e grandes dimensões. Os navios que quisessem largar ferro naquela área tinham de ficar um pouco adiante da pequena praia para evitar o contacto com os rochedos, sendo aquelas imediações extremamente perigosas. A ligação com terra era feita através de pequenas embarcações que podiam varar, mas com maior segurança em períodos de preia-mar. O acesso à praia é bastante estreito, feito entre rochedos, sendo que ao mínimo desvio as embarcações a remos podiam chocar. Do mesmo modo, as embarcações que estivessem em terra – tal como aconteceu até recentemente – podiam ir para o mar, fosse para pescar ou para estabelecer contacto com navios, mas mais seguramente em períodos de preia-mar, mantendo-se os perigos.

Outro dos aspectos que também não pode ser posto de lado quando analisamos a importância do porto do Touro diz respeito ao seu enquadramento perante a presença humana desta região. O povoado das imediações que salta mais à vista, embora não esquecendo a villa romana de Miroiços (Malveira da Serra), é Casais Velhos (Areia), sítio que abrange uma área sobranceira às dunas do Guincho e que, segundo Guilherme Sarmento, poderá ter sido ocupado pelos romanos ainda no século I d.C.

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Fig. 12 – Vista das imediações do povoado romano/visigótico de Casais Velhos para a área do porto do Touro.

Durante a Idade Média o sítio arqueológico do Espigão das Ruivas ainda esteve em actividade, sendo que, de momento, é possível remontar a presença humana naquele local ao Período Visigótico e ao Período Islâmico[27]. É muito provável que, à semelhança de outros locais da costa de Sintra-Cascais que têm vindo a ser estudados, o porto do Touro tenha sido algo importante para a navegação muçulmana. Posteriormente, o local terá mantido ocupação ou, pelo menos, servido de apoio marítimo. Datam de 1253 (“portu Tauri”[28]) e 1370 documentos que aludem ao porto do Touro, indiciando assim a sua contínua utilização, ainda que os mesmos estejam inseridos no âmbito de delimitações territoriais, não referindo qualquer actividade portuária no local. Note-se, porém, que anteriormente a 1370 este sítio estava integrado no território de Sintra, sendo bastante curioso que o termo de Cascais, uma vez traçado, tivesse início precisamente nesse local.

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Fig. 13 – Pormenor da carta régia de 1370 que criou o senhorio de Cascais e concedeu-lhe um termo geográfico, começando pelo “porto do Touro” (ANTT, Chancelaria de D. Fernando, liv. I, fól. 56, 1.ª col.).

Para uma cronologia compreendida entre os séculos XVI-XVII o porto do Touro terá mantido alguma importância. Nos tempos iniciais da Monarquia Hispânica, um tal de Rodrigo dos Santos, mestre de uma caravela oriundo de Cascais, havia sido contratado por Dom P.º Negro (embaixador do Congo) para transportá-lo secretamente a França. Com ele iriam outros companheiros partidários de D. António, prior do Crato, tendo o embarque sido acordado para aquele porto. Depois de reunidos no mosteiro de Colares, local indicado pelo mestre, que ali tinha um sobrinho como frade, descer-se-ia a serra de Sintra até ao dito porto para se embarcar pela noite. Porém, o súbito aparecimento de um homem chamado Diogo Cardoso, que não estava incluído no grupo inicial que faria a viagem secreta e que pedia que o levassem consigo, levantou forte desconfiança. Ao que parece, tendo sido rejeitada a sua inclusão no grupo, o intruso quis retornar a Lisboa já durante a noite, pelo que alguns “sospejtaram mal dele, e o qujzeram matar”, enquanto que outros se opuseram a tal desfecho[29]. Não se sentido à vontade com tal situação, e estando descoberto o segredo e a embarcação que os levaria até à caravela, a qual estaria frente ao porto do Touro, o grupo inicial acabou por abandonar o empreendimento e fugir.

Deste caso podemos reter alguns dados importantes. Em primeiro lugar, confirma-se que neste sítio havia uma ligação entre terra e o mar que era feita através de uma pequena embarcação e um navio de maiores dimensões, sendo esta uma actividade conhecida em Cascais, pelo menos no caso de Rodrigo dos Santos, mas que deveria estender-se a outros mareantes locais e ter alguma tradição. Neste sentido, não era por acaso que o porto do Touro estava a ser usado por esta altura, sendo muito provável que ocorressem outros tipos de ligações para além deste género de embarques. É muito provável que, nesta altura, já existissem estruturas naquele local e que pudessem, inclusive, ser reaproveitamentos de épocas mais antigas, servindo para apoio a quem usava o porto e a pequenos desembarques.

Para além do caso da tentativa de embarque na dita caravela, e que comprova a importância daquele local durante a Idade Moderna, existem referências cartográficas (séculos XVII-XIX) a um porto situado na fronteira entre a costa de Sintra e Cascais e que correspondem ao porto do Touro. O primeiro exemplar cartográfico conhecido, da autoria de Pedro Teixeira (1634), alude claramente ao “Porto do Guincho” (fig. 14), naquilo que será uma alusão ao porto do Touro, até porque o local, ainda hoje, é igualmente conhecido por Guincho Velho. Posteriormente, temos mapas dos arredores de Lisboa com alusões ao “porto do Guinel”, evidente corruptela de Guincho, e ainda outros, mais tardios, grafados com o topónimo “porto do Sinchel”, correspondendo todos ao porto do Touro.

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Fig. 14 – Faixa costeira entre o cabo da Roca e S. Pedro do Estoril. Destaque para o porto do Guincho e os dois navios ao seu largo (Pedro Teixeira, 1634). Note-se que a representação da costa de Cascais, nomeadamente a parte ocidental, surge algo fantasiada.

Tudo isto permite pensar, de facto, que este local teve certa importância durante a Idade Moderna, inclusive em séculos posteriores, e que ainda haveria uma ocupação humana do local. Pela sua posição abrigada e até estratégica, é muito provável que a costa de mar onde se encontra este local tenha servido de apoio a corsários e a piratas que esperavam nas imediações pela passagem de navios. Sabemos de diversos casos de corso e pirataria ocorridos no litoral de Sintra e Cascais entre finais da Idade Média e a Idade Moderna, pelo que o porto do Touro e arredores poderão ter sido usados nesse contexto. Na verdade, sabe-se que o cabo da Roca e a enseada de Assentiz, sítios muito próximos do referido local, foram estratégicos para este tipo de actividades[30].

Marco Oliveira Borges | 2017

[1] Este artigo de divulgação histórica, ainda que tendo sido sujeito a pequenas revisões e acrescentos, foi adaptado de um trabalho mais alargado: Marco Oliveira BORGES, “A importância do porto do Touro e do sítio arqueológico do Espigão das Ruivas (Cascais) entre a Idade do Ferro e a Idade Moderna”, in História. Revista da FLUP, IV: 6 (2016), pp. 161-182. Disponível para consulta e descarregamento gratuito através do seguintes links: https://tinyurl.com/y5s3q774; https://tinyurl.com/y5mbyxub.

[2] Tal como vem referido na documentação medieval e moderna em português. Actualmente, também é conhecido por Porto Touro, Guincho Velho, Porto de Pescadores ou Secret.

[3] Na subida final requer mesmo escalada, existindo, actualmente, uma corda que pode ajudar a esse efeito. Em 1991, aquando das escavações arqueológicas no Espigão das Ruivas, essa corda ainda não estava no local. Agradecemos esta e outras diversas indicações fornecidas por Guilherme Cardoso.

[4] Francisco de Paula e OLIVEIRA, “Antiquités Préhistoriques et Romaines des Environs de Cascaes”, extrait des Communicações da Commissão dos Trabalhos Geológicos, II: I (1888-1892), pp. 10-11.

[5] João Luís CARDOSO e José Manuel ROLÃO, “Prospecções e escavações nos concheiros mesolíticos de Muge e de Magos (Salvaterra de Magos): contribuição para a história dos trabalhos arqueológicos efectuados”, in Estudos Arqueológicos de Oeiras, 8 (1999-2000), pp. 84 e 91.

[6] Francisco de Paula e OLIVEIRA, op. cit., pp. 1-27.

[7] Carlos FABIÃO, “100 anos de investigação arqueológica no concelho de Cascais”, in Arquivo de Cascais, 6 (1987), p. 45.

[8] Francisco de Paula e OLIVEIRA, op. cit., p. 11.

[9] Francisco da HOLANDA, Da fábrica que falece à cidade de Lisboa. Introd., notas e coment. de José da Felicidade Alves, [Lisboa], Livros Horizonte, 1984, pp. 90-92 e fl. 24v e 25.

[10] José Cardim RIBEIRO, “Estudos histórico-epigráficos em torno da figura de L. Iulius Maelo Caudicus”, in Sintria, III: I (1982-1983), p. 166; idem, “Felicitas Ivlia Olisipo. Algumas considerações em torno do catálogo Lisboa Subterrânea”, sep. de Al-Madan, II: 3 (1994), pp. 86-87; idem, “Soli aeterno Lvnae. Cultos astrais em época pré-romana e romana na área de influência da serra de Sintra: ¿um caso complexo de sincretismo?”, in Sintria, III-IV (1995-2007), pp. 596, 599-608 e 614-616; idem, “Soli aeterno Lvnae: o santuário”, in Religiões da Lvsitânia. Loquuntur Saxã, Lisboa, Museu Nacional de Arqueologia, 2000, pp. 235-239.

[11] Guilherme CARDOSO, Carta arqueológica do concelho de Cascais, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1991, p. 20.

[12] Idem e José D’ENCARNAÇÃO, “Sondagem no Espigão das Ruivas (Alcabideche, Cascais)”, in Al-Madan, II: 2 (1993), p. 150.

[13] Cf. Guilherme CARDOSO, op. cit., p. 31.

[14] Idem, ibidem, p. 31; idem e José D’ENCARNAÇÃO, op. cit., p. 150.

[15] Embora sendo apenas uma hipótese, uma imprecisão levou a que fosse dito que na estrutura pétrea havia sido detectada “uma gravura representando um touro” (cf. Ricardo SOARES, “Tartessos, um povo do mar. Génese da navegação, técnicas de construção e embarcações mediterrâneas e pré-romanas” (2008), (disponível em http://light-cyclops.blogspot.pt/2010/10/farol-de-pharos.html – consultada em 1/05/2015).

[16] Guilherme CARDOSO, op. cit., p. 20.

[17] Ana Margarida ARRUDA, Fenícios e Mundo Indígena no Centro e Sul de Portugal (séculos VIII-VI a.C.). Dissertação de Doutoramento em Arqueologia, Universidade de Lisboa, 2000, 3-17 e 3-18; idem, Los Fenicios en Portugal. Fenicios y mundo indígena en el centro y sur de Portugal (siglos VIII-VI a.C.), Barcelona, Universidad Pompeu Fabra de Barcelona, 2002, p. 29; idem e Raquel VILAÇA, “O Mar Grego-Romano antes de Gregos e Romanos: perspectivas a partir do Ocidente Peninsular”, in Francisco de Oliveira, Pascal Thiercy e Raquel Vilaça (coords.), Mar Greco-Latino, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2006, p. 44; Carlos FABIÃO, “A Dimensão Atlântica da Lusitânia: Periferia ou Charneira no Império Romano?”, in Lusitânia Romana. Entre o Mito e a Realidade. Actas da VI Mesa Redonda Internacional sobre a Lusitânia Romana, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 2009, p. 66.

[18] Ana Margarida ARRUDA, Fenícios e Mundo Indígena, 3-17 e 3-18; idem, Los Fenicios en Portugal, p. 29; idem e Raquel VILAÇA, op. cit., p. 44.

[19] Ou, inversamente, no cabo Espichel (cf. Maria Luísa BLOT, Os Portos na Origem dos Centros Urbanos. Contributo para a Arqueologia das Cidades Marítimas e Flúvio-marítimas em Portugal, Lisboa, Instituto Português de Arqueologia, 2003, p. 60; Jorge de ALARCÃO, “Notas de Arqueologia, epigrafia e toponímia – I”, in Revista Portuguesa de Arqueologia, 7: 1 (2004), pp. 317-319 e 324).

[20] Carlos FABIÃO, op. cit., p. 66.

[21] Guilherme CARDOSO, Jorge MIRANDA e Carlos A. TEIXEIRA, Registo fotográfico de Alcabideche e alguns apontamentos historicoadministrativos, Alcabideche, Junta de Freguesia de Alcabideche, 2009, p. 393.

[22] Idem, ibidem, p. 30.

[23] Idem, ibidem, p. 35.

[24] Idem, ibidem, p. 38.

[25] Marco Oliveira BORGES, “Portos e ancoradouros do litoral de Sintra-Cascais. Da Antiguidade à Idade Moderna (I)”, in Actas das Jornadas do Mar 2014. Mar: Uma onda de Progresso, Almada, Escola Naval, 2015, pp. 152, 157 e 164.

[26] João Luís CARDOSO e Maria João SOUSA, “O Bronze Final na Serra de Sintra”, in Estudos Arqueológicos de Oeiras, 21 (2014), p. 366.

[27] Guilherme CARDOSO, Jorge MIRANDA e Carlos A. TEIXEIRA, op. cit., pp. 35 e 38.

[28] Pub. por Francisco COSTA, Estudos Sintrenses, I, Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 2000, p. 97.

[29] Pedro de FRIAS, Crónica Del-Rei D. António. Estudo e leitura de Mário Alberto Nunes Costa, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1955, pp. 345-346.

[30] Marco Oliveira BORGES, “Portos e ancoradouros do litoral de Sintra-Cascais”, pp. 162-164.