Marégrafo de Cascais. Fotografia: Marco Oliveira Borges (2011).
Adquirido a 23 de Março de 1877, pela Direcção-Geral dos Trabalhos Geodésicos, Topográficos, Hidrográficos e Geológicos do Reino, pela quantia de 2.519 francos franceses a uma oficina de Paris, credenciada pela qualidade tecnológica dos seus relógios horizontais ou de edifício, o Marégrafo de Cascais (ou de Borrel) havia de ser instalado somente dois anos depois, no passeio D. Maria Pia, junto ao forte da Cidadela[1]. Após a sua instalação seguiu-se uma fase de montagem, construção da casa abrigo, para além da realização de variados testes, pelo que só veio a iniciar o seu funcionamento regular em 1882. Por esta altura, apenas três locais detinham semelhante equipamento: Brest (França), Aberdeen (Escócia) e Hoek Van Holland (Holanda).
A necessidade de aquisição deste marégrafo – da autoria do francês Amédée-Philippe Borrel (1818-1887) – obedece à lógica da conjuntura internacional da época, onde o desenvolvimento do conhecimento científico era uma constante. No caso português, surgiu da urgência de registar as alturas do nível do mar fora da barra de Lisboa e de definir o zero altimétrico para Portugal continental, necessário para a navegação e para os trabalhos de cartografia e hidrografia que se pretendiam realizar sobre portos e rios portugueses, sendo que a localização privilegiada da enseada de Cascais ditou o local escolhido para a sua colocação. Note-se que, até então, o nível do mar era medido através de marémetros ou réguas de maré, feitos de madeira ou de metal, mas que uma vez baseados na observação directa não permitiam um registo contínuo de dados. Todavia, face a problemas de funcionalidade verificados com o assoreamento no poço que fazia parte da estrutura inicial, e que não permitia a obtenção de dados fiáveis, o Marégrafo de Cascais veio a ser deslocado mais para Sul, a 50 metros de distância da primitiva instalação, onde se construiu uma nova casa abrigo e onde se encontra na actualidade (na área adjacente ao Clube Naval de Cascais, junto à Marina local), vindo apenas a iniciar actividade a 28 de Maio de 1895.
Fazendo o registo diário da evolução das marés e das correntes, este é o primeiro marégrafo analógico a surgir em Portugal – o de Lagos só iniciaria actividade em 1908 – e o único que ainda se encontra em actividade. Este mecanismo funciona com uma boía colocada num poço, em contacto directo com o mar, e cujo movimento é transmitido por um sistema de cabos e roldanas ligados a uma caneta que faz o registo das variações do nível da água numa folha de papel quadriculada, envolvida num tambor rotativo. Com efeito, essa caneta regista a amplitude consoante o movimento da maré, construindo assim um gráfico designado por maregrama. O marégrafo tem uma autonomia de quatro dias e a cada 24 horas o tambor dá uma volta completa, registando assim duas preia-mares e duas baixa-mares.
Há mais de 120 anos que os seus registos são enviados regularmente para o serviço internacional Permanent Service for Mean Sea Level (Reino Unido), organismo que disponibiliza, numa base de dados à escala mundial, estes e outros registos similares, utilizados em diversos programas científicos. De acordo com os dados obtidos entre 1882 e 2000, a tendência foi para uma subida do nível médio das águas do mar nesta região na ordem dos 1.3 mm/ano, cerca de 15 cm no total. Para além disso, é de salientar que o Marégrafo de Cascais veio a definir a referência do Datum Altimétrico, Zero Cartográfico, para o território continental através do cálculo da média dos níveis médios do mar realizado entre 1882 e 1938, tendo por denominação “Cascais, Helmert 1938”.
A 31 de Dezembro de 1997, foi classificado imovél de interesse público. Na actualidade, encontra-se sob tutela do Instituto Geográfico Português, entidade responsável pela recolha de informação dos valores do nível médio do mar e pela determinação do Datum Altimétrico Nacional. Embora exista, desde 2003, um marégrafo acústico e digital instalado na Marina de Cascais, mais preciso e sofisticado, o antigo marégrafo continua activo, sendo que em finais de 2005 o Instituto Geográfico Português celebrou um protocolo com a Câmara Municipal de Cascais visando a sua conservação e divulgação. Assim, o Marégrafo de Cascais passou a integrar o roteiro histórico desta vila associado à obra cientifica do rei D. Carlos, estando aberto ao público mediante marcação de visita.
Marco Oliveira Borges | 2020
Bibliografia: Marégrafo de Cascais, 1882, [s.l.], Instituto Geográfico Português, Março de 2007; Marégrafo de Cascais. Um Instrumento Centenário de Amédée-Philippe Borrel – 1877, [s.l.], Instituto Geográfico Português, 2009.
[1] Texto adaptado de Marco Oliveira Borges, “Marégrafo de Cascais”, in Dicionário de História Marítima, 2011 (em trânsito para uma nova plataforma online).
Aproveitei algum do meu tempo de quarentena para fazer este videoclipe instrumental sobre o “Mar de Cascais”. Para tal, usei imagens de arquivo que fui captando sobretudo ao longo dos últimos dois anos. Nada foi planeado, o cenário de quarentena é que levou a isto, pelo que fiquei limitado ao uso dessas imagens. Gostaria de ter enriquecido o videoclipe com mais imagens em movimento, assim como com outras imagens de actividades desenvolvidas nesta costa, pois há muito mais no mar de Cascais para ver, mas, perante a crise actual, terá de ficar para outras oportunidades.
Nestes tempos difíceis, em que todos devemos ficar em casa para evitar ainda mais a disseminação do vírus Covid-19, aqui fica um cheirinho do mar de Cascais. No videoclipe podemos ver várias perspectivas do mar, as cetárias romanas, pescadores, os apetrechos de pesca, Cascais medieval, os barcos, os acidentes marítimos, Cascais actual, a procissão a Nossa Senhora dos Navegantes, o lixo marítimo, etc.
Em breve, talvez também surja algo no mesmo contexto para a costa de Sintra. Até lá, vejam o vídeo (encurtador.com.br/eipL7), subscrevam o canal no Youtube e activem as notificações para ficarem a par das novidades.
Fig. 1 – Pescadores e varinas na praia da Ribeira em meados do século XX.
O documento histórico mais antigo que alude a Cascais remonta a 1282, resultando dos foros e privilégios concedidos pelo rei D. Dinis ao alcaide do mar e homens do mar de Tavira, conforme os que decorriam em Lisboa[1]. No que respeita ao caso casca(l)ense, alude a Martim Anes, que fora alcaide do mar em Lisboa e que, durante o desempenho do seu ofício, punha alcaides do mar em Cascais e Sesimbra. Estes alcaides eram como que capitães de porto nomeados pelo almirante, existentes nas principais cidades e vilas marítimas portuguesas, desempenhando funções de justiça e de organização[2]. No referido documento, é indicado que os alcaides do mar tinham a obrigação de prender os pescadores quando estes estavam em terra, quando se feriam ou faziam alguma coisa “sem guisa”[3].
Fig. 2 – Documento de 1282 que alude a “Cascays” e aos pescadores locais. Fonte: ANTT, Chancelaria de D. Dinis, liv. I, fl. 46v.
Embora a actividade piscatória casca(l)ense venha atestada na documentação histórica desde essa altura – ainda que de forma indirecta –, a pesca já era exercida neste território desde tempos ancestrais, sendo que no Período Romano chegou a existir uma fábrica de preparados piscícolas na área da actual Rua Marques Leal Pancada[4], junto àquele que hoje é o bar “Spicy”. Descoberta em 1992 e alvo de trabalhos arqueológicos nos anos seguintes, em breve uma das cetárias dessa fábrica ficará permanentemente visível ao público.
Fig. 3 – Uma das cetárias romanas da área portuária de Cascais. Fotografia cedida por Guilherme Cardoso.
Durante os últimos séculos da Idade Média, o peixe de Cascais era carregado para abastecer vários locais do Reino e, muito possivelmente, do exterior, embora neste último caso apenas se confirme uma cidade: Ceuta. As provisões eram constituídas por sardinhas – a espécie que ganha maior relevância na documentação preservada –, pescadas, congros e polvos. Posteriormente, o foral de Cascais (1514) também refere a existência de santolas, lagostas e outros tipos de marisco, atestando a riqueza deste mar. A fama do peixe de Cascais era tal que o mesmo chegou a ser elogiado pelo autor da História do Reino do Congo:
“Tem os rios, e crião em si grande quantidade de peixe do de Portugal: barbos, picões, bordalos, pardelhas, saramugas, esquilhões, peixe que se dá aos doentes, angolas, e outros muitos mui estranhos dos de cá; no mar corvinas, sardinhas, pescadas, mas não tão boas como as de Cascaes”[5].
No plano religioso, a memória medieval casca(l)ense também se liga às actividades piscatórias, havendo uma referência ao aparecimento de uma imagem de Nossa Senhora (com o menino Jesus nos braços) nas redes dos pescadores locais. O acontecimento terá ocorrido em 1362, ou até mesmo antes, muito possivelmente resultante de uma figura de proa decorativa de um navio naufragado. Das várias versões existentes desta memória, seguem-se dois trechos distintos:
Fig. 4 – Pescadores ao largo da Guia.
“E foy que tendo na visinhança da villa de Cascaes lançado suas redes alguns pescadores no anno de 1362, quando as recolheram acharam nellas a melhor pesca que podiam desejar, que era huma pequena imagem da Virgem Sanctissima Senhora Nossa com o minino Jesu nos braços, lavrada em madeyra de cipreste, de rara belleza e fermosura. Alegres os pescadores com tam precioso achado, e desejando que fosse venerada com o culto e reverencia que lhe era devida, resolverem de a collocar na igreja de Sancto Agostinho”[6].
“O ano de 1362 […] ou alguns anos antes deste, segundo se colige de alguns autores, lançaram certos pescadores da Vila de Cascaes […] suas redes ao mar, em a Vigília da Assumpção de Nossa Senhora, com o animo de lhe oferecer tudo o que recolhessem naquele lanço: e como em outros que haviam feito antes, tiveram grande quantidade de pescado, pareceu-lhes seria aquele lanço mais copioso, pela devoção, e piedade com que o haviam oferecido à Virgem Nossa Senhora. Foram também afortunados em o lanço, que ao levantar das redes as acharam não só cheias de toda a variedade de peixes; mas presa pela parte de fora em uma malha, uma formosa Imagem d’aquela Senhora a quem haviam oferecido misteriosamente o lanço”[7].
A imagem haveria de ser crismada de Nossa Senhora da Graça e, curiosamente, em vez de ficar em Cascais ou até mesmo em Sintra – que na altura tinha jurisdição sobre Cascais –, foi transportada para o mosteiro dos Eremitas de Santo Agostinho de Lisboa sob solene procissão. Para A. H. de Oliveira Marques, esta situação deveu-se à não existência de uma igreja em Cascais suficientemente importante, nem sequer ermida que a pudesse receber[8].
Caracterizada durante largos séculos por ser, sobretudo, uma terra de pescadores, de camponeses e de pequenos e médios comerciantes, assim como por estar ligada às actividades de apoio à navegação com destino a Lisboa e à defesa costeira[9], sendo regida a nível local por condes e marqueses, somente em finais do século XIX é que Cascais começou a ser estancia dos monarcas portugueses, trazendo atrás de si os diversos fidalgos que integravam a Corte e que começaram a edificar grandes habitações na zona costeira, marcando ainda hoje a paisagem cultural marítima.
Fig. 5 – Porto e vila de Cascais numa gravura publicada por Georg Braun e Frans Hogenberg, Civitates Orbis Terrarum, vol. I, 1572 (ICGC).
O centro da vida portuária de Cascais sempre foi a praia da Ribeira, também conhecida por praia dos Pescadores e praia do Peixe, tendo assistido, ao longo da História, a diversos ataques de corsários e de piratas, assim como a invasões de inimigos que pretendiam conquistar Portugal. “Os conflitos de 1383-1385 que envolveram Portugal e Castela, bem como a invasão liderada pelo duque de Alba, em 1580, e os diversos actos de corso e pirataria documentados a partir do século XV, são exemplares no que respeita à importância estratégica de Cascais enquanto porta de entrada de forças inimigas vindas por mar”[10]. Daí que a costa cascalense tenha sido fortemente fortificada ao longo dos séculos.
Era, e ainda é, na praia da Ribeira que os pescadores desembarcavam quando vinham da faina, mas muitos, ao longo dos séculos, não lograram voltar a terra, tendo sido vítimas de acidentes no mar. Um desses acidentes ocorreu com o barco a motor “Ana Paula”, em Julho de 1962, ao largo do cabo Raso. Dos sete tripulantes que tinham saído durante a noite para pescar apenas um sobreviveu, tendo nadado para terra, acabando por ser recolhido por uma chata que transmitiu a informação em Cascais.
Fig. 6 – Notícia presente in A Nossa Terra, Julho de 1962.
No que diz respeito à tradição local, nos últimos trinta anos certos costumes/elementos foram desaparecendo de forma acelerada, enquanto que outros foram sendo esquecidos ou postos de lado. Quem cresceu na baía entre as décadas de 1980 e 1990, por exemplo, habituou-se à chegada, pela tarde, dos arrastões carregados de peixe para ser vendido na lota local. Entre eles, refira-se o “Brutimar”, o “Carlos Tiago”, o “Cruz de Malta” (fig. 7), o “Felizardo”, o “Marina Dulce”, o “Pedrito”, o “Pedro Manuel”, o “Raio de Luz”, o “Verita”, etc. Para a descarga, já na década de 1990, contava-se com o auxílio das chatas do Trinta e da chata do Manel, o Careca, fazendo a ligação entre os arrastões e o pontão de desembarque. Com o abate ou a venda dos arrastões locais terminou a pesca de arrasto com base no porto de Cascais, algo que durante várias décadas foi imagem de marca a nível local.
Fig. 7 – “Cruz de Malta” ancorado em Cascais (2004).Fig. 8 – Chatas na praia da Ribeira.
O mesmo se pode dizer das chatas, embarcações típicas de Cascais. No entanto, será que alguém se preocupa com o seu desaparecimento? No Verão de 2016, quando tive oportunidade de escrever um texto sobre o bairro dos Pescadores, contei apenas 3 chatas em frente à praia da Ribeira e de pequenas dimensões, isto quando em meados da década de 1990 chegavam a estar perto de 20 nas amarrações e na praia[11]. Quantas se podem ver hoje em dia? Ontem, ao final da tarde, apenas era visível uma, mas, curiosamente, até estava varada na praia, depois de ter sido feita a limpeza do casco (fig. 10). Longe vão os tempos em que inúmeras chatas, agitadas nas amarrações pelo vento de Norte, integravam a paisagem marítima casca(l)ense, servindo para a pesca ou de embarcações de apoio às actividades piscatórias e de transbordo.
Fig. 9 – Vara-se uma chata do Trinta para limpeza do fundo (2004). Na fotografia: Tó Simão (?), Armando e “Fininho”.Fig. 10 – Chata varada na praia para limpeza do casco (26/04/2019).
Quando era miúdo, lembro-me que chegava a haver um evento anual em que era simulada a chegada de Nicolau Coelho ao porto de Cascais, isto a propósito do regresso da primeira expedição marítima portuguesa à Índia (1497-1499). Várias escolas do concelho e de fora eram convidadas, havendo diversas actividades na praia da Ribeira associadas às profissões da época dos Descobrimentos, acabando o evento com comes e bebes, não faltando sardinhas e pão. Sendo Cascais uma vila cheia de História, seria importante retomar este tipo de iniciativas ligadas ao seu passado marítimo e de Portugal.
Outra memória recente, esta ainda mais fresca, diz respeito à época da construção da Marina de Cascais, que veio a tapar parte da praia de Santa Marta e a tapar por completo a pequena praia dos Tropas, também conhecida por praia dos Namorados. Mas antes disso, a discussão sobre a construção da Marina de Cascais prolongou-se bastante no tempo, chegando a existir um projecto que propunha a sua construção na Costa da Guia.
Em pleno Inverno de 1997, com a aproximação de um temporal de Sudoeste, três amigos (Bernardo, Fernando e Marco), antes do seu treino habitual de Hóquei de Sala, foram fotografados a passear no pontão de Cascais (fig. 11), altura em que ainda não existia a Marina, se bem já tivessem sido descarregadas toneladas de pedra para a construção do molhe.
Fig. 11 – Cascais durante a aproximação de um temporal de Sudoeste.
Nesse tempo, após as marés-vivas e tempestades oceânicas, era costume ver alguns pescadores da praia da Ribeira, à borda-d’água e durante a baixa-mar, a apanhar diversos objectos, sobretudo moedas provenientes de naufrágios ou perdidas na areia ao longo dos anos, ficando ali soterradas. Não usavam detectores de metais, apenas as mãos para escavar entre a areia e as pequenas pedras postas a descoberto pela baixa-mar. Entre as moedas que apanhei naquela praia, quase sempre de 100 escudos ou outras igualmente de décadas recentes, também encontrei uma mais antiga, de 1808, altura em que a Corte, devido às invasões francesas, rumou ao Brasil. Foi a moeda mais antiga que achei, e até cheguei a mostrá-la a uma professora de História que tive na escola preparatória, mas sabe-se de pescadores que, ao longo das décadas, encontraram exemplares muito mais antigos, até mesmo do Período Romano. A moeda mais antiga que se sabe ter sido apanhada naquela praia é do século I d.C.[12]. Depois da construção da Marina, este costume pouco conhecido – mas comum nas comunidades piscatórias – perdeu-se, sobretudo porque o mar deixou de entrar na praia da Ribeira com a força de outrora, deixando de trazer aqueles e outros objectos.
Fig. 12 – Praia da Ribeira durante um temporal (meados do século XX).
E as festas do mar? Outra tradição que foi perdendo identidade é a realização, precisamente, das festas do mar, antigamente viradas verdadeiramente para o mar, para a praia e para os pescadores, com diversos eventos na areia e na água: corridas de cocos e de chatas, corridas na areia, competição de cordas, garraiada, etc. Contudo, desde há vários anos que se tornaram, como alguns referem, exclusivamente num género de festival de música de Verão.
Fig. 13 – Cartaz das Festas do Mar de 1997. Atente-se nas diversas actividades que estavam presentes.
O tempo não volta atrás, mas é sempre possível recuperar, preservar memórias e as tradições e passá-las às gerações vindouras. Cascais não pode viver sem isso, tal como não pode fugir ao progresso e à inovação. O que não se quer é que seja somente uma atracção baseada em programas virados para a vida turística, para quem vem de fora. É sempre possível conciliar os vários aspectos, mas há que privilegiar as raízes piscatórias e a cultura local. Quem quiser conhecer ou relembrar um pouco do passado recente e as gentes locais, este vídeo de 1996 é um bom ponto de partida: Cascais: o Fim da Linha (https://arquivos.rtp.pt/conteudos/cascais-o-fim-da-linha/). Muito fica por dizer e conhecer, sendo que nunca é demais relembrar que, historicamente falando, Cascais, antes de mais, é terra de pescadores!
Fig. 14 – José Marques, mais conhecido por Zé Rabuça, antigo pescador local.
Marco Oliveira Borges | 2019
[1] ANTT, Chancelaria de D. Dinis, liv. I, fl. 46v.
[2] A. H. de Oliveira MARQUES, “A arte da guerra”, in Nova História de Portugal, vol. IV – Portugal na Crise dos séculos XIV e XV, Lisboa, Editorial Presença, 1986, p. 362.
[3] ANTT, Chancelaria de D. Dinis, liv. I, fl. 46v.
[4] João CABRAL e Guilherme CARDOSO, “Escavações arqueológicas junto à torre-porta do Castelo de Cascais”, in Arquivo Cultural de Cascais. Boletim Cultural do Município, 12 (1996), pp. 127-145; Guilherme CARDOSO, “As cetárias da área urbana de Cascais”, Setúbal Arqueológica, 13 (2006), pp. 145-150.
[5]História do Reino do Congo (Ms. 8080 da Biblioteca Nacional de Lisboa). Pref. e notas de António Brásio, Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos, 1969, p. 31.
[6]História dos Mosteiros, Conventos e Casas Religiosas de Lisboa […], t. I, Lisboa, Nas Oficinas da Gráfica Santelmo, 1950, cap. IV, pp. 113 e 123.
[7] Fr. Agostinho de STA. MARIA, Santuário Mariano, 2.ª ed., 1.º liv., Lisboa, Miscelânea, 1933, pp. 93-94.
[8] A. H. de Oliveira MARQUES, “Sintra e Cascais na Idade Média”, in Novos Ensaios de História Medieval Portuguesa, Lisboa, Editorial Presença, 1988, p. 150.
[9] Marco Oliveira BORGES, O porto de Cascais durante a Expansão Quatrocentista. Apoio à navegação e defesa costeira. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 2012.
[10] Idem, “Povoamento, estruturas e navegação na costa de Cascais entre a Idade do Ferro e o Período Islâmico” (no prelo).
Fig. 1 – Pormenor da vila e porto de Cascais presente na gravura publicada por Braun e Hogenberg, Civitates Orbis Terrarum, vol. I, 1572 (ICGC).
Embora durante muito tempo a historiografia tenha indicado, de uma forma geral, que o Restelo foi a sua primeira escala continental[1], Cristóvão Colombo (ou Colon) aportou em Cascais (1493) no decorrer da torna-viagem da primeira expedição feita ao serviço dos Reis Católicos[2]. Regressando das suas descobertas a Ocidente, Colombo partiu da ilha do Haiti na caravela Niña e em companhia da Pinta – que foi ter a Baiona –, seguindo em diagonal até à latitude dos Açores, no intuito de aproveitar os ventos favoráveis de Oeste. Depois de vários dias no mar daquele arquipélago, onde veio a ter problemas com os locais, nomeadamente em Santa Maria, Colombo largou de vez a 24 de Fevereiro.
A 3 de Março, já depois do pôr-do-sol e após sessenta milhas feitas, a Niña apanhou um turbilhão tão violento que arrancou todas as velas da caravela, colocando a tripulação em grande perigo. Daí em diante, seguiu “com os mastros nus” e sob forte tempestade, até que, finalmente, surgiram sinais de que se estava próximo de terra. Foi então que, “na falta de outro meio para navegar um pouco e apesar do grande perigo que havia de aguentar o mar”, Colombo mandou içar o papa-figos[3] do grande mastro “para ver se havia um porto ou qualquer outro lugar onde pudesse abrigar-se”[4].
Pela latitude a que Colombo se dirigia para a costa portuguesa, dois portos ficavam mais próximos: Ericeira e Cascais. Como o primeiro estava bastante exposto a temporais, era Cascais que oferecia um abrigo mais seguro. Este porto destacava-se no apoio à navegação e como refugio habitual de navios que pretendiam fugir a tempestades, funcionando ainda como anteporto oceânico de Lisboa, sendo que a entrada no Tejo não era feita de forma directa, esperando-se no porto cascalense por maré e vento favorável para se entrar na barra. Era também em Cascais que residiam os pilotos práticos que conheciam bem as condicionantes geográficas desta área e que ajudavam a colocar os navios pelos perigosos canais de navegação do Tejo, tentando evitar encalhes e naufrágios. Procurando um porto de abrigo, decerto que Colombo já teria a ideia definida de se refugiar em Cascais, local de apoio a toda a navegação com destino a Lisboa e também de auxílio frequente aos navios que circulavam entre o Mediterrâneo e o Norte da Europa[5].
Fig. 2 – “Réplica” da Niña. Caravela que fez parte da armada de 3 navios que integrou a 1.ª viagem de Cristóvão Colombo ao serviço de Castela.Fig. 3 – Rotas de ida e volta seguidas por Cristóvão Colombo nas duas primeiras viagens ao serviço de Castela. Fonte: Jesus Varela Marcos e M.ª Montserrat León Guerrero, El Itinerario de Cristóbal Colón (1451-1506), Valladolid, Diputacíón de Valladolid et al., 2003.
A 4 de Março, ainda sob forte temporal, a Niña fez a aproximação à costa portuguesa junto ao cabo da Roca, tendo aportado em Cascais, onde esteve algumas horas:
“Ao amanhecer, o almirante reconheceu a terra. Era o rochedo de Sintra que fica muito perto do rio de Lisboa, no qual decidiu entrar porque não podia fazer outra coisa, tão terrível era a tempestade que se abatia sobre a cidade de Cascais, situada na embocadura. Os da cidade, disse, ficaram toda essa tarde em oração por eles, e, quando em seguida ficaram no porto, toda a gente veio vê-los, maravilhados por terem escapado. Foi assim que à terceira hora o almirante passou para o Restelo, no interior do rio de Lisboa, onde a gente do mar lhe disse que nunca se tivera um Inverno tão fértil em tempestades, que vinte e cinco navios se tinham perdido nas Flandres e que outros estavam lá há quatro meses sem poderem sair”[6].
Conforme se pode ver pelo trecho citado, antes de demandar a barra do Tejo e chegar ao Restelo, a Niña – pilotada por Sancho Ruíz de Gama e Pedro Alonso Niño – teve de se abrigar em Cascais. Contrariamente ao que por vezes é dito[7], Cristóvão Colombo e as outras pessoas que vinham a bordo da Niña, ao chegarem a Cascais, não terão visto a torre defensiva que D. João II mandou construir naquele porto, pois essa só terá começado a ser edificada no ano seguinte[8].
Depois de passada a tempestade e de feitos os devidos consertos na aparelhagem da caravela, em vez rumar a Castela, onde se tinha organizado a expedição, a Niña veio, horas mais tarde, a entrar no Tejo, acabando por ancorar no Restelo. Poucos dias depois deu-se o célebre encontro entre Colombo e D. João II em Vale do Paraíso, localidade situada a nove léguas de Lisboa.
O que se torna mais problemático é tentar saber se Colombo, ao dirigir-se a Cascais e, posteriormente ao Restelo, ia apenas com a intenção de procurar abrigo ou também de falar pessoalmente com D. João II, como veio a acontecer. Recorde-se que Colombo vinha de uma primeira expedição marítima ao serviço dos Reis Católicos. Seja como for, qualquer um dos motivos indicados colocava Colombo na rota de Cascais.
Marco Oliveira Borges | 2019
[1] Cf., e.g., Damião PERES, História dos Descobrimentos Portugueses, 4.ª ed., Porto, Vertente, 1992, p. 271; Luís Adão da FONSECA, D. João II, [Lisboa], Círculo de Leitores, 2005, p. 120.
[2] Este pequeno artigo de divulgação histórica, ainda que tendo sido sujeito a pequenas modificações, foi retirado de um estudo mais alargado: Marco Oliveira BORGES, O porto de Cascais durante a Expansão Quatrocentista. Apoio à navegação e defesa costeira. Dissertação de Mestrado em História Marítima, Universidade de Lisboa, 2012, pp. 74-76. Voltaremos à passagem de Cristóvão Colombo por Cascais num outro lugar.
[3] Sobre os diferentes tipos de papa-figos, cf. Humberto LEITÃO, “Papafigos”, in Dicionário da Linguagem de Marinha Antiga e Actual. Com a colab. do Comandante José Vicente Lopes, 2.ª ed., Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos da Junta de Investigações Cientificas do Ultramar, 1974, p. 392; António Marques ESPARTEIRO, “Papa-figos”, in Dicionário Ilustrado de Marinha, 2.ª ed., rev. e actualizada pelo Comandante J. Martins e Silva, Lisboa, Clássica Editora, 2001, p. 409. O papa-figos de correr, por exemplo, era uma vela de menor superfície que as usuais, sendo usada especialmente em casos de mau tempo.
[4] Cristóvão COLOMBO, A Descoberta da América. Diário de bordo da 1.ª viagem, 1492-1493. Pref. de Luís de Albuquerque, Mem Martins, Publicações Europa América, [1990], p. 184.
[5] Sobre este assunto, cf. Marco Oliveira BORGES, op. cit., pp. 61-81, 102-113 e passim.
[7] Carlos CALADO, “Cascais, abrigo de Cristóvão Colon”, in Arquivo de Cascais. História, Memória, Património, 14 (2015), p. 35.
[8] Marco Oliveira BORGES, “A torre defensiva que D. João II mandou construir em Cascais: novos elementos para o seu estudo”, in História. Revista da FLUP, IV: 5 (2015), pp. 104-106 e 114. Em breve, na nossa dissertação de Doutoramento, iremos apresentar novos dados sobre a torre de Cascais.
Fig. 1 – Mapa do al-Ândalus e parte do Norte de África, c. 868 (simplificado).
Entre os séculos VIII e XII, o território dos actuais concelhos de Sintra e Cascais terá tido um papel importante no sistema de defesa costeira do Garb al-Ândalus[1]. Integrado na área ocidental marítima do distrito (kura) de Lisboa, este espaço estratégico, na rota das navegações para al-Ushbuna e para o mar Mediterrâneo, estaria dotado de estruturas defensivas e de alerta envolvidas num sistema que começaria a ganhar forma algures a partir do litoral de Sintra, ao mesmo tempo que os portos e ancoradouros locais permitiam apoiar as actividades marítimas e militares.
Terá sido o desencadear dos ataques vikings ao Ocidente Ibérico, com início em 844, alcançando Lisboa e chegando a estender-se ao mar Mediterrâneo, que despoletou uma maior atenção defensiva por parte das autoridades muçulmanas, reforçando-se o aparelho militar e o sistema de defesa costeira ao longo do litoral atlântico e do mar Interior. Sabe-se que o governo omíada reforçou a estrutura defensiva com a edificação de torres de vigia (buruj, pl. de burj) e a utilização de sítios elevados e estratégicos que funcionavam como atalaias[2] (tali’a, pl. de at-talai’a), bem como de diversas fortificações onde se incluíam castelos (husun, pl. de hisn) e conventos-fortificados (rubut, pl. de ribat). Acresce que foram tomadas medidas para a formação de uma marinha de guerra ampla e bem provida de projécteis incendiários, tendo-se recrutado marinheiros e mercenários de várias partes, alguns deles especializados no lançamento de fogo-grego[3]. Se os acontecimentos de 844 também levaram, poucos anos depois, à edificação de estaleiros de construção naval em Sevilha, é muito provável que o mesmo tenha ocorrido noutros pontos do al-Ândalus, inclusive na área ocidental.
Fig. 2 – Complexo defensivo no Baixo Vale do Tejo durante o Período Islâmico.
Para além das estruturas que estariam dispostas ao longo da costa de Sintra e Cascais, existiriam postos militares edificados mais para o interior. Al-Himyari (século XIII), para a região entre Lisboa e Sintra, refere a existência de uma montanha usada antigamente como reduto fortificado[4], o que poderia, à partida, sugerir algum local elevado no actual concelho de Cascais ou nas suas imediações. No entanto, em 1985, José Manuel Vargas colocou a hipótese de o local em causa ser o Monte Suímo, estando situado a Norte de Belas[5]. Este sítio costuma ser identificado como sendo Ossumo[6], uma das vilas do senhorio de Lisboa referidas por al-Razi (século X)[7].
Situado na serra da Carregueira, numa área em que hoje em dia se encontra uma instalação militar do Exército Português, o Monte Suímo é uma colina de forma arredondada de 291 m de altura, constituindo o maior relevo do conjunto de elevações desta serra. A sua localização privilegiada permite obter uma visão de quase 360º dos arredores, com vistas para Lisboa, estuário do Tejo, para toda a Península de Setúbal até à serra da Arrábida e para o Atlântico, sendo apenas interrompidas pelo perfil dominante da serra de Sintra[8].
O Monte Suímo é famoso pelas suas pedras, sobretudo jacintos, granadas e, em menor escala, esmeraldas. As referências a este local e à exploração do mesmo remontarão ao século I d.C., altura em que Plínio, o Velho, referiu que no território de Lisboa se recolhiam carbúnculos e gemas de intenso brilho e de grande qualidade. Outros autores romanos viriam a mencionar este local, denominando-o por Mons Summus, “monte máximo”[9].
Fig. 3 – Representação da mina de Monte Suímo. Fonte: Archivo Pitoresco, 1863.
Durante o Período Islâmico alguns autores voltaram a aludir ao Munt Shiyun ou Monte Sião, bem como à exploração de minas e à existência de pedras preciosas num monte (ou montanha) das proximidades de Lisboa[10], embora sem ligarem as ditas pedras ao referido local. Em relação ao reduto fortificado atrás referido, parece que apenas al-Himyari – decerto baseado em al-Bakri, discípulo de al-Udhri – refere a sua existência. Neste sentido, a informação sobre o local fortificado já viria do século XI.
Se tivermos em conta a forte possibilidade de que esse reduto fortificado estaria mesmo edificado no Monte Suímo, até pela situação geográfica atrás descrita, capacidade de visualização e de comunicação a longa distância com outros locais importantes integrados na óptica do sistema defensivo que temos vindo a referir, quando é que teria sido erguido? Qual a sua tipologia? Até quando terá estado em funcionamento? Embora ainda não existam possíveis repostas para estas questões, observações efectuadas por Vítor Rafael Sousa e Rui Oliveira no Monte Suímo permitiram verificar a existência de fragmentos de telhas e outras cerâmicas cronologicamente enquadráveis no período alto-medieval/islâmico, bem como a existência de estruturas que poderão corresponder às ruínas de uma antiga fortificação (figs. 4 e 5)[11]. Porém, são necessários trabalhos arqueológicos para que se possa compreender realmente qual a realidade estrutural que subsistiu naquele local e se, de facto, os vestígios dizem respeito a uma antiga fortificação muçulmana.
Fig. 4 – Ruínas de estruturas pétreas observáveis no Monte Suímo (foto: Vítor Rafael Sousa).Fig. 5 – Fragmentos de telhas alto-medievais/islâmicas no Monte Suímo (foto: Vítor Rafael Sousa).
Marco Oliveira Borges | 2019
[1] Este pequeno artigo de divulgação histórica, ainda que tendo sido sujeito a ligeiras modificações, foi adaptado de estudos mais alargados: Marco Oliveira BORGES, “A defesa costeira no distrito de Lisboa durante o período islâmico. I – A área a ocidente da cidade de Lisboa”, in João Luís Inglês Fontes et al. (coords.), Lisboa Medieval: Gentes, Espaços e Poderes. Textos seleccionados do III Colóquio Internacional “A Nova Lisboa Medieval” (Lisboa, FCSH/UNL, 20-22 de Novembro de 2013), Lisboa, Instituto de Estudos Medievais, 2017, pp. 67-104; idem, “Aspectos de militarização e defesa costeira no Garb al-Ândalus: o caso de Cascais”, in Revista Universitaria de Historia Militar, 6:11 (2017), pp. 172-196.
[2] As atalaias podiam ser estruturas arquitectónicas (normalmente turriformes) ou simples locais destacados na paisagem de onde se exercia a vigilância e alertava para a chegada de inimigos (cf. Mário BARROCA, “Atalaia”, in Jorge de Alarcão e Mário Barroca (coord.), Dicionário de Arqueologia Portuguesa, Porto, Figueirinhas, 2012, pp. 48-49).
[3] Sobre todas estas medidas, cf. ABENALCOTÍA, Historia de la conquista de España de Abenalcotía el Cordobés. Seguida de fragmentos históricos de Abencotaiba, etc., trad. de Ribera, Don Julián, Madrid, Tipografía de la Revista de Archivos, 1926, p. 53; António Borges COELHO, Portugal na Espanha Árabe, 3.ª ed. rev., Lisboa, Editorial Caminho, 2008, pp. 169 e 173; Jorge LIROLA DELGADO, El poder naval de al-Andalus en la época del califato omeya (siglo IV hégira/X era cristiana). Tesis doctoral, vol. I., Universidad de Granada, 1991, pp. 122-125; Christophe PICARD, La mer et les Musulmans d’occident au Moyen Age (VIIIe – XIIIe siècle), Paris, Presses Universitaires de France, 1997, pp. 148 e 156; Helena CATARINO, “Breve sinopse sobre topónimos Arrábida na costa portuguesa”, in Francisco Franco Sánchez (ed.), La Rábita en el Islam. Estudios Interdisciplinares. Congressos Internacionals de Sant Carles de la Ràpita (1989, 1997), Sant Carles de la Ràpita/Alacant, Ajuntament de Sant Carles de la Ràpita/Universitat d’Alacant, 2004, pp. 263-267; Fernando Branco CORREIA, “A acção do poder político nas actividades portuárias e na navegação no ocidente islâmico. Alguns tópicos”, in Jesús Angel Solórzano Telechea e Mário Viana (eds.), Economia e Instituições na Idade Média. Novas Abordagens, Ponta Delgada, Centro de Estudos Gaspar Frutuoso, 2013, pp. 14-38.
[4] AL-HIMYARI, Kitab ar–Rawd al–Mi’tar, Valencia, Anubar, 1963, p. 17; António Borges COELHO, op. cit., p. 47.
[5] Cf. José Manuel VARGAS, “Presença árabe em terras de Sintra”, in Jornal Agualva-Cacém, n.º 1, 1985, p. 10; Eva-Maria VON KEMNITZ, “Sintra islâmica – reminiscências históricas, literárias e artísticas”, in Contributos para a História Medieval de Sintra. Actas do I Curso de Sintra (28 de Março – 2 de Junho de 2007), Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 2008, p. 59, n. 12.
[6] Cf. Gustavo MARQUES, Inscrição românica de Odivelas, Odivelas, Junta de Freguesia de Odivelas, 1986, p. 14; Sérgio Luís CARVALHO, “Acerca das minas do Suímo (Belas), sua identificação com Ossumo e respectiva exploração pela Coroa na Idade Média”, in Arqueologia do Estado. 1.as Jornadas sobre formas de organização e exercício dos poderes na Europa do Sul, séculos XIII-XVIII, Lisboa, História e Crítica, 1988, pp. 465-473; José Cardim Ribeiro, “Felicitas Ivlia Olisipo. Algumas considerações em torno do catálogo Lisboa Subterrânea”, sep. de Al-Madan, II: 3 (1994), p. 82. Outras possíveis localizações foram aduzidas por Adel SIDARUS e António REI, “Lisboa e seu termo segundo os geografos árabes”, in Arqueologia Medieval, 7 (2001), pp. 41-42, 48 e 54; António REI, “Ocupação humana no alfoz de Lisboa durante o período islâmico (714‐1147)”, in A Nova Lisboa Medieval. Actas do I Encontro, Lisboa, Edições Colibri, 2001, p. 31; Jorge de Alarcão, “Notas de Arqueologia, epigrafia e toponímia – V”, in Revista Portuguesa de Arqueologia, Lisboa, 11: 1 (2008), pp. 115-116; André de OLIVEIRA-LEITÃO, O Povoamento no Baixo Vale do Tejo: entre a territorialização e a militarização (meados do século IX‐início do século XIV). Dissertação de Mestrado, Universidade de Lisboa, 2011, p. 31; António REI, O Gharb al-Andalus al-Aqsa na Geografia Arabe (seculos III h. / IX d.C. – XI h. / XVII d.C.), Lisboa, Instituto de Estudos Medievais, 2012, pp. 149 e 192.
[8] M. CACHÃO, P. E. FONSECA, R. Galopim de CARVALHO, C. Neto de CARVALHO, R. OLIVEIRA, M. M. FONSECA e J. MATA, “A mina de granadas do Monte Suímo: de Plínio-o-Velho e Paul Choffat à actualidade”, in E-Terra. Revista Electrónica de Ciências da Terra, 18: 20 (2010), p. 2.
[9] Cf. Sérgio Luís CARVALHO, op. cit., pp. 466-468.
[10] Cf. António REI, op. cit., pp. 123, 125, 144, 149 e 192.
[11] Agradecemos a Rui Oliveira e a Vítor Rafael Sousa pelas indicações e contributo fotográfico.
Fig. 1 – Porto e vila de Cascais numa gravura publicada por Georg Braun e Frans Hogenberg, Civitates Orbis Terrarum, vol. I, 1572 (ICGC).
“Costeando dali para o interior, na direcção do norte, depara-se com a fortaleza de Cascais, onde os navios de carga, ancorados em porto amplo e abrigado, esperam a maré e a monção”.
Damião de Góis, Descrição da cidade de Lisboa, 1554.
Situando-se a uma distância de apenas 5 léguas da cidade de Lisboa, e tendo o último porto marítimo antes da entrada na barra do Tejo, desde sempre que Cascais esteve na rota das navegações com destino àquele centro urbano[1]. Acresce que esta área apresenta condicionantes geográficas muito específicas que dificultavam seriamente a navegação e a entrada naval no Tejo – que não era feita a tempo inteiro –, factores que faziam com que o porto local acolhesse todo o movimento marítimo com destino à capital portuguesa, sendo a última escala de apoio[2], tal como abrigava e abastecia embarcações em trânsito entre o Mediterrâneo e o Norte da Europa. Assim, o espaço portuário cascalense, ganhando forma numa baía voltada a Sul e com uma larga extensão de ancoragem, era como que um anteporto de Lisboa, sendo ainda caracterizado por ter os pilotos conhecedores das particularidades da navegação neste trecho costeiro e cujo auxílio era fundamental para se tentar evitar possíveis naufrágios nos perigosos canais da barra[3].
Fig. 2 – Enquadramento geográfico da área observada. Fonte: Jorge Freire, Àvista da costa: a paisagem cultural marítima de Cascais, Universidade Nova de Lisboa, 2012, p. 22.
“Porto”[4], marítimo ou fluvial, de origem natural ou resultado da acção humana, é um termo que acarreta uma multiplicidade de significados como, por exemplo, ancoradouro, local de abrigo e de escala de navios, de apoio logístico, de carga e descarga de mercadorias, etc.[5]. Neste sentido, existem portos com funções de apoio à navegação, comerciais, pesqueiras e militares, sendo que muitos englobam todas estas características e ainda outras, permitindo variadas possibilidades de análise ao investigador[6]. Face ao exposto, os portos são autênticos locais de novidade e de troca de ideias, entrepostos económicos, pontos estratégicos que importa organizar, proteger e controlar[7]. Para além disso, e como espaços sujeitos a transformações de ordem geomorfológica e antrópica, os portos são locais em constante transformação natural e tecnológica que se impõe compreender.
Seria lícito pensar na existência de um cais de atracagem em Cascais que facilitasse a entrada e a saída de pessoas, bem como a carga e a descarga de mercadorias e de animais dos navios, mas a verdade é que as fontes históricas e a arqueologia nada revelaram sobre isso. De facto, são inúmeras as descrições que aludem a Cascais como ancoradouro ou fundeadouro[8], mas nunca mostram a existência de estruturas de atracagem no seu porto. As próprias plantas desta vila de finais do século XVI[9], que permitem corrigir e superar omissões na célebre gravura de Georg Braun e Franz Hogenberg (1572), cujo arquétipo poderá remontar a finais do século XV ou a inícios do seguinte[10], não indicam qualquer estrutura junto à praia da Ribeira, que era o foco portuário.
A ausência de referências a tais estruturas – em pedra ou até mesmo em madeira – poderia parecer estranha, uma vez que Cascais era, não só, um porto de abrigo, pesqueiro, comercial e militar, mas também porque acolhia todo o movimento marítimo destinado a Lisboa – incluindo a carreira da Índia[11] –, tornando-o bastante activo no apoio aos navios em trânsito, pelo que seria de pensar que necessitasse de estruturas desse tipo tal como surgiram noutros portos reinóis. No entanto, como veremos adiante, essa condição não era uma regra, uma obrigatoriedade nem um factor decisivo para se definir um sítio enquanto espaço portuário.
Embora fosse de considerar que nos séculos XV-XVI, face ao crescimento do tráfego comercial e a outras necessidades resultantes do envolvimento de Portugal na empresa expansionista, os monarcas tivessem sido obrigados a adoptar uma política de desenvolvimento portuário que contemplasse a melhoraria dos acessos aos portos – tanto marítimos como fluviais –, a construção ou melhoramento das infra-estruturas de apoio à navegação, a substituição das que se tornavam rudimentares, etc.[12], a verdade é que durante este período, pelo menos no que diz respeito ao Noroeste português entre Caminha e Aveiro, este processo não foi tão rápido como seria de supor[13]. Acresce que a maioria dos trabalhos técnicos efectuados nos portos dessa área geográfica foram financiados e executados pelas autoridades locais.
Para o caso de Cascais, não se conhece qualquer iniciativa régia que indique a construção de estruturas materiais de apoio à navegação, nem mesmo de diligências levadas a cabo pelos senhores locais, por pescadores ou pelas confrarias marítimas. O facto de a vila de Cascais ter sido senhoriada por algumas figuras históricas importantes poderia levar a pensar que, para usufruírem desse espaço e poderem tirar um melhor proveito económico, tivessem mandado melhorar as infra-estruturas locais para facilitar a carga e a descarga de mercadorias vindas do hinterland, do umland[14] e do exterior. Sabe-se que D. Álvaro de Castro, senhor de Cascais entre 1440 e 1471, teve alguns navios com importantes ligações marítimas. São conhecidas pelo menos duas naus (Bretoa e Ingresa) de que era proprietário e que foram fretadas para o comércio com o Norte da Europa entre 1441-1443, tal como uma barca que levava mantimentos e soldados para Ceuta na década de 1450[15], bem como uma caravela que chegou a estar envolvida numa viagem de exploração pela costa ocidental africana em 1445[16]. No passado chegou a ser dado como garantido que Cascais havia lucrado muito através das transacções comerciais de D. Álvaro de Castro com Ceuta, mas a verdade é que essas pretensas ligações diriam apenas respeito ao frete dos navios deste fidalgo, que partiam de Lisboa carregados com mercadorias de diversas origens, não havendo ligações mercantis específicas entre os dois locais. No entanto, é possível que o porto cascalense pudesse ter servido de base aos seus navios e de apoio aos negócios, que poderão ter sido mais diversificados e envolvido mais embarcações[17].
Se algumas medidas foram tomadas pelos senhores de Cascais ou pela Coroa, no que respeita a infra-estruturas portuárias ou a qualquer outro tipo de intervenção no território adjacente que visasse melhorar aquele espaço para apoio à navegação e acostagem de navios, a verdade é que as fontes nada referem quanto a isso[18]. Contudo, é preciso ter em conta que os documentos medievais cascalenses e alguns da Idade Moderna terão desaparecido com as invasões inimigas e incêndios, perdendo-se informações que poderiam ajudar a responder a muitas das questões para as quais não temos respostas[19].
Em todo o caso, é sabido que certos locais com funções portuárias nunca estiveram dotados de estruturas materiais como, por exemplo, cais, docas ou rampas de varadouro[20], o que terá sido o caso de Cascais durante largo tempo[21]. Daí que a existência de estruturas para carga e descarga, bem como de pessoal e de instituições dedicadas à prestação de serviços portuários, não sejam factores essenciais para a definição de um porto[22]. Esta é uma ideia que pode gerar alguma confusão e até levar a observações algo anacrónicas, apoiadas na ideia de que um porto tinha obrigatoriamente de ter tal tipo de estruturas de apoio, mas é preciso sublinhar que alguns espaços portuários podiam funcionar apenas como ancoradouros, desembarcadouros e varadouros naturais, sendo o caso de Cascais[23]. Por isso mesmo, quando se trata de estudar e classificar um porto, importa ter sempre em conta a distinção clássica entre um porto natural e um porto artificial[24]. De qualquer forma, não é de excluir que algures durante a Idade Média, ou até mesmo na Antiguidade, no espaço geográfico em estudo, possa ter existido um passadiço, um cais ou outro tipo de estrutura de atracagem, fosse em pedra ou madeira.
Seguindo a perspectiva de ancoradouro/fundeadouro, e para se gerir com maior eficiência o espaço portuário, é possível que em tempos antigos Cascais contasse com algumas poitas submersas fixas a um cabo e a uma bóia flutuante para amarração das cordas dos navios, ou de pedras furadas com função de poitas de fundear, elementos arcaicos e, por vezes, utilizados com continuidade ao longo dos séculos[25]. Se estamos apenas perante uma hipótese, sabe-se, em concreto, que na praia da Ribeira, em meados do século XX, eram usadas estacas presas na areia e ligadas a um cabo que ia até à borda d’água e que se amarrava à proa ou à popa das embarcações dos pescadores. Ao mesmo tempo, havia ainda um cabo preso numa das extremidades das embarcações, estando ligado a uma poita submersa e que não permitia a mobilidade das mesmas. É possível que este sistema, ou algo semelhante, já fosse usado em Cascais desde tempos recuados.
Não estando dotado de um cais ou de qualquer outro tipo de plataforma para carga/descarga, o porto de Cascais teria de ter necessariamente um sistema de vaivém activo e especializado com o serviço de barcas, batéis[26] ou de outras pequenas embarcações – como sugere a gravura de 1572 – que fizessem a ligação com o areal e vice-versa, carregando e desembarcando mercadorias[27], pessoas e animais, se bem que alguns navios também pudessem ser varados na praia da Ribeira e nas seguintes. Aliás, o próprio Vicenzo Casale, na legenda da sua planta de Cascais (1590), refere a praia da Ribeira como local onde “se varão os Barquos” dos pescadores da vila. Acresce que outrora esta praia tinha maior extensão[28], prolongando-se para Norte, porque não era limitada pela muralha que ganhava forma entre dois baluartes e que foi erguida no reinado de D. João IV[29].
Fig. 3 – Espaço portuário de Cascais a funcionar como ancoradouro (início do século XX). Serra de Sintra ao fundo e vento a soprar de Sul [PT/CMCSC-AHMCSC/AFTG/CAM/A/00546].Fig. 4 – Embarcação varada na praia da Ribeira para limpeza do casco (década de 1940). Fotografia cedida por Guilherme Cardoso.
Na verdade, a fisionomia desta parte costeira cascalense, com várias praias a Nascente da praia da Ribeira, proporcionava condições para servirem igualmente de varadouro, como aconteceu até muito recentemente[30], se bem que os navios de menores dimensões estivessem melhor capacitados para isso. Seriam, igualmente, as pessoas locais que recorreriam com maior frequência ao varamento de navios na praia. Por fotografias de finais do século XIX até meados do seguinte vemos que eram usadas juntas de bois para puxarem as redes dos pescadores e as embarcações para terra (fig. 5). É muito provável que já fosse assim em Cascais durante a Idade Média ou até mesmo antes, visto que estes são procedimentos comuns nas comunidades piscatórias e com séculos de tradição.
Fig. 5 – Duas juntas de bois puxam um carro com redes de pesca para terra. Praia da Ribeira, 1900 [PT/CMCSC-AHMCSC/AFTG/CAM/A/00858].
A permanência de embarcações nos areais de Cascais podia prolongar-se, sobretudo quando chegava a altura de invernar. Para o caso da praia da Ribeira, existiam mesmo disposições municipais obrigatórias e coimas para quem não procedesse de acordo com a legislação. Conforme revela o tit. 20.º do livro de posturas da Câmara da vila de Cascais, com disposições que vão de 1587 a 1837, as barcas e os barcos locais acabavam por invernar junto à ponte da vila, por baixo da qual corria o rio de Cascais, curso de água actualmente conhecido por ribeira das Vinhas: “Toda a Barqua ou Barquo, que invernar, por nao der pera ir ao mar, ou por algum outro respeito, estarao da parte da fós pera a ponte athe ao junqual com pena de quinhentos reais pera o concelho, e acusador”[31].
Como se procedia em relação aos navios de maior tonelagem? Em condições normais, caravelas, galeões, naus, galés e outros tipos de navios vindos de fora ficariam ancorados em frente à praia da Ribeira ou mais ao largo, muito embora houvessem excepções que poderiam fazer com que alguns fossem varados nessa praia ou noutra das imediações. Isso poderia ocorrer durante temporais, se bem que colocar a salvo nas praias de Cascais uma embarcação maior do que uma caravela latina e transportá-la um pouco mais para o interior talvez fosse uma tarefa algo difícil. Assim, e embora a baía de Cascais seja bastante famosa por oferecer abrigo aos navios que se protegiam da nortada, o mesmo não acontecia quando havia mau tempo de SE, S e SW, pelo que quando se aproximavam temporais com estas orientações as embarcações de menor tonelagem deveriam ser prontamente varadas na praia e levadas mais para o interior do território, enquanto que as restantes provavelmente rumariam a Lisboa, tal como aconteceu até muito recentemente[32]. Os navios que não conseguissem partir a tempo de evitar um temporal ficavam sujeitos à fúria do mar, a um possível naufrágio ou encalhe perigoso, tal como aconteceu em Setembro de 1606 com a nau Salvação, que vinda da Índia acabou por varar nas imediações[33]. O varamento podia acontecer ainda quando se queria limpar o casco dos navios (fig. 4) ou proceder ao seu reparo, sendo que, nestes casos, embarcações de maior porte do que uma caravela até poderiam ser encalhadas à borda-d’água, esperando-se depois novamente pela preia-mar para que pudessem desencalhar. Há que ter em conta ainda acontecimentos fortuitos, como nos casos em que alguns pilotos chegavam a varar navios nas praias para fugirem a perseguições de corsários e piratas. Por outro lado, sabe-se que as praias de Cascais, na década de 1480, estando na rota estratégica de salteadores estrangeiros[34], chegaram a ser usadas para se encalhar navios comerciais apresados e “filhar” as suas mercadorias[35].
Apesar destas potencialidades baseadas nas condições naturais da baía de Cascais, a verdade é que as características geomorfológicas da praia da Ribeira também terão causado problemas e condicionantes ao longo dos séculos. Embora actualmente não existam, tendo sido dinamitados e removidos, no passado dois agrupamentos rochosos – pelo menos – destacavam-se na paisagem local durante a baixa-mar, representando grande perigo para a navegação, nomeadamente quando se caminhava para a vazante e para quem não conhecesse bem aquele espaço[36]. Numa representação da costa de Cascais, atribuída a finais do século XVI, parece mesmo vir representado um desses agrupamentos de rochas[37].
Marco Oliveira Borges | 2017
[1] Este artigo de divulgação histórica foi adaptado de um estudo mais alargado: Marco Oliveira BORGES, “Caracterização e funcionalidade de um porto atlântico em finais da Idade Média: o exemplo de Cascais”, in Adelaide Millán da Costa, Amélia Aguiar Andrade e Catarina Tente (eds.), O papel das pequenas cidades na construção da Europa medieval, Lisboa, Instituto de Estudos Medievais/Câmara Municipal de Castelo de Vide, 2017, pp. 287-315. Disponível para consulta e descarregamento em goo.gl/RV79dL.
[2] Sobre as condicionantes geográficas do estuário do Tejo e da costa de Cascais que faziam do porto local um sítio fulcral no apoio a toda a navegação com destino a Lisboa, cf. António FIALHO e Jorge FREIRE, Cascais na rota dos naufrágios. Museu do Mar – Rei D. Carlos. Exposição. Catálogo, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 2006, pp. 3-6; Marco Oliveira BORGES, O porto de Cascais durante a Expansão Quatrocentista. Apoio à navegação e defesa costeira. Dissertação de Mestrado em História Marítima, Universidade de Lisboa, 2012, pp. 61-81, 102-114 e 117-125; Jorge FREIRE, Àvista da costa: a paisagem cultural marítima de Cascais. Dissertação de Mestrado em Arqueologia, Universidade Nova de Lisboa, 2012, passim; Marco Oliveira BORGES, “Em torno da preparação do cerco de Lisboa (1147) e de uma possível estratégia marítima pensada por D. Afonso Henriques”, in História. Revista da FLUP, IV: 3 (2013), pp. 126-129; idem, “A defesa costeira do litoral de Sintra-Cascais durante a Época Islâmica. II – Em torno do porto de Cascais”, in Ana Cunha, Olímpia Pinto e Raquel de Oliveira Martins (coord.), Paisagens ePoderes no Medievo Ibérico. Actas do I Encontro Ibérico de Jovens Investigadores em HistóriaMedieval. Arqueologia, História e Património, Braga, Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória», Universidade do Minho, 2014, p. 425.
[3] Face às dificuldades de entrada na barra do Tejo, é provável que no século XV Cascais já prestasse o serviço de pilotos que, mais tarde, viria a assumir enorme relevância no contexto da carreira da Índia, se bem que na centúria quatrocentista ainda não devesse estar institucionalizado (cf. Marco Oliveira BORGES, O porto de Cascais […], pp. 62-67).
[4] Sobre os diferentes significados deste termo, incluindo os que nada têm a ver com a actividade naval, cf. Sebastian de COBARRUVIAS OROZCO, “Pverto”, in Tesoro de la Lengva Castellana, oEspañola, Madrid, Por Luiz Sanchez, 1611, p. 599; Fr. Joaquim de Santa Rosa de VITERBO, “Porto e portela”, in Elucidario das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usaram […]. 2.ª ed., rev., correcta e copiosamente addicionada de novos vocábulos […], t. II, Lisboa, Em Casa do Editor A. J. Fernandes Lopes, 1865, p. 156; José Pedro MACHADO, “Porto”, in Dicionário etimológico da língua portuguesa com a mais antiga documentação escrita e conhecida de muitos dos vocábulos estudados, 3.ª ed., vol. IV, Lisboa, Livros Horizonte, 1977, p. 406.
[5] Cf. Maria Luísa BLOT, Os portos na origem dos centros urbanos. Contributo para a arqueologia das cidades marítimas e flúvio-marítimas em Portugal, Lisboa, Instituto Português de Arqueologia, 2003, pp. 54-58, 88, 107, 130, 132, 137 e passim.
[6] Agustín GUIMERÁ RAVINA, “Puertos y ciudades portuarias (Ss. XVI-XVIII): una aproximación metodológica”, in Inês Amorim, Amélia Polónia e Helena Osswald (coords.), O litoral em perspectiva histórica (sécs. XVI-XVIII). Um ponto da situação historiográfica, Porto, Instituto de História Moderna/Centro Leonardo Coimbra, 2002, pp. 287, 290-291 e 298-299. Sobre os 6 diferentes tipos de ancoradouros naturais, cf. Maria Luísa BLOT, op. cit., pp. 47-49. Para uma definição de termos e captação de hierarquias portuárias, cf. Amélia POLÓNIA, “Les petits ports dans le système portuaire européen a l’âge moderne (XVIe-XVIIIe siècles)”, in Revista da Faculdade de Letras. História, III: 9 (2008), pp. 27-51, com especial relevância para o modelo de construção portuária da p. 32.
[7] Amândio Jorge Morais BARROS, Porto. A construção de um espaço marítimo no início dos tempos modernos, Lisboa, Academia de Marinha, 2016, p. 26.
[8] Em finais do século XVIII, por exemplo, referia-se que em frente à povoação cascalense havia um bom fundeadouro desde as 8 às 20 braças, todo limpo com excepção de algumas âncoras perdidas que podiam roçar nos cabos (cf. Vicente Tofiño de SAN MIGUEL, Derrotero de las costas España en el Océano Atlântico, y de las islas Azores ó terceras, para inteligencia y uso de las cartas esféricas […], Madrid, Por la viuda de Ibarra, Hijos y Compañia, 1789, p. 85).
[9] Cf. Guilherme CARDOSO e João Pedro CABRAL, “Apontamentos sobre os vestígios do antigo castelo de Cascais”, in Arquivo de Cascais. Boletim Cultural do Município, 7 (1988), pp. 77-92; Margarida de Magalhães RAMALHO, “As fortificações marítimas do porto e da nobre vila de Cascais”, in Joaquim Manuel Ferreira Boiça, Maria de Fátima Rombouts de Barros e Margarida de Magalhães Ramalho, As fortificações marítimas da costa de Cascais, Cascais, Quetzal, 2001, pp. 39-44.
[10] João J. Alves DIAS, “Cascais e o seu termo na primeira metade do século XVI – aspectos demográficos”, in Arquivo de Cascais. Boletim Cultural do Município, 6 (1987), p. 67; idem, “Lisboa medieval na iconografia do século XVI”, in Ensaios de História Moderna, Lisboa, Editorial Presença, 1988, p. 120. Contrariamente, Nuno José Varela RUBIM, A defesa costeira dos estuários do Tejo e do Sado desde D. João II até 1640, Lisboa, Prefácio, 2011, p. 49, acredita que a imagem, caso tenha sido desenhada pelo pintor flamengo Hoefnagel, isso terá ocorrido entre 1563 e 1567. Por sua vez, Joaquim M. F. BOIÇA, “Cascais no sistema defensivo do porto de Lisboa”, in Monumentos. Cidades. Património. Reabilitação, 31 (2011), p. 30, atribui a gravura “aos anos trinta do século XVI”, enquanto que Rafael MOREIRA, “Leonardo Turriano en Portugal”, in Alicia Cámara, Rafael Moreira y Marino Viganò, Leonardo Turriano, ingeniero del rey, [Madrid], Fundación Juanelo Turriano, 2010, p. 130, refere c. 1550.
[11] Marco Oliveira BORGES, “Aspetos do quotidiano e vivência feminina nos navios da carreira da Índia durante o século XVI: primeiras mulheres, buscas e sexualidade a bordo”, in Revista Portuguesa de História, 47 (2016), p. 199.
[12] Manuel António Fernandes MOREIRA, O porto de Viana do Castelo na época dos Descobrimentos, Viana do Castelo, Câmara Municipal de Viana do Castelo, 1984, p. 13.
[13] Amélia POLÓNIA e Sara PINTO, “Harbour construction policies and funding agency in Early Modern Portugal (1400-1800)”, in Amélia Polónia y Ana María Rivera Medina, La gobernanza de los puertos atlânticos, siglos XIV-XX. Políticas y estructuras portuárias, Madrid, Casa de Velázquez, 2016, p. 10.
[14] Sobre a aplicação destes conceitos operatórios, cf. Marco Oliveira BORGES, “Hinterland” e “Umland”, in José Vicente Serrão, Márcia Motta e Susana Münch Miranda (dir.), E-Dicionário da terra e doterritório no Império Português, Lisboa, CEHC-IUL, 2016 [consultado 07.07.2016]. Disponível em: https://edittip.net/category/hinterland/ e https://edittip.net/category/umland/.
[15] Marco Oliveira BORGES, “D. Álvaro de Castro (1.º conde de Monsanto) perante os desafios da expansão portuguesa do século XV”, in Revista de História da Sociedade e da Cultura, 14 (2014), pp. 112-118; idem, “D. Álvaro de Castro (senhor de Cascais) em Ceuta: serviço militar e abastecimento durante as décadas de 1440 e de 1450”, in Ceuta e a Expansão Portuguesa. Actas do XIV Simpósio de História Marítima. 10 a 12 de Novembro de 2015, Lisboa, Academia de Marinha, 2016, pp. 423-426.
[16] Gomes Eanes de AZURARA, Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné. Introd., act. de texto e notas de Reis Brasil, [s.l.], Publicações Europa-América, [s.d.], cap. XXXI, p. 110, cap. LXXI, pp. 192-195.
[17] Marco Oliveira BORGES, “D. Álvaro de Castro (1.º conde de Monsanto)”, pp. 113-115; idem, “D. Álvaro de Castro (senhor de Cascais)”, pp. 425 e 427-430.
[18] Na verdade, D. João II até ordenou a construção de uma torre defensiva em Cascais, que, estando dotada de bombardas que disparavam rente à água, impedia a aproximação de piratas e corsários, proporcionando um ancoradouro seguro aos navios que ali chegavam. Contudo, esse aspecto inclui-se no plano defensivo, algo que já foi tratado noutros estudos.
[19] Em 1758, o P.e Manuel Marçal da Silveira dizia que “no seculo passado de 1600 houve hu grande incendio nas cazas do Senado, ardeu todo o Archivo, e todos os seus papeis de major parte” (cf. Ferreira de ANDRADE, Cascais – Vila da Corte. Oito séculos de História, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1964, p. XVII, doc. 2).
[20] “Os vestígios materiais de tipo portuário, ou seja, construções especializadas tais como cais, docas, rampas de varadouro […], poderão efectivamente nunca ter existido em locais com funções portuárias, na medida em que essas funções se verificavam muitas vezes na total ausência de estruturas, mesmo em épocas muito recentes” (Maria Luísa BLOT, op. cit., pp. 22, 107 e 137). Sobre este assunto, cf. igualmente Jesús Ángel SOLÓRZANO TELECHEA y Javier AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, “Infraestructuras e instalaciones portuarias, fluviales e hídricas en las villas del Norte peninsular a finales de la Edad Media: las obras públicas como instrumentos del poder”, in M.ª Isabel del Val Valdivieso y Olatz Villanueva Zubizarreta (coords.), Musulmanes y cristianos frente al agua en las ciudades medievales, Santander, PUblican, Ediciones de la Universidad de Castilla – La Mancha, 2008, pp. 277-280.
[21] A 6 de Setembro de 1877, por intermédio “de um elogioso abaixo-assinado de vários munícipes acerca da actuação dos edis” locais, nomeadamente de Júlio César Pereira de Melo, presidente da Câmara Municipal, revela-se um certo exagero quanto aos melhoramentos de que foi responsável na vila de Cascais. Nesse documento, é referido que, “como remate e coroa de todas as suas obras” realizadas, o presidente estava a trabalhar para realizar alguns melhoramentos que deixariam o “seu nome gloriosamente vinculado aos anais deste município, sendo um deles a construção de um cais” que facilitasse o embarque e desembarque até então “dificílimo” na praia da Ribeira (cf. João Miguel HENRIQUES, História da freguesia de Cascais: 1870 – 1908 (Uma proposta de estudo), Lisboa, Edições Colibri/Câmara Municipal de Cascais, 2004, pp. 148-149).
[22] Cf. Amélia POLÓNIA, “Portos”, in Francisco Contente Domingues (dir.), Dicionário da Expansão Portuguesa. 1415-1600, vol. II, Lisboa, Círculo de Leitores, 2016, p. 873.
[23] Cf. Marco Oliveira BORGES, O porto de Cascais […], p. 47.
[24] Sebastian de COBARRUVIAS OROZCO, op. cit., p. 599; Amélia POLÓNIA, op. cit., p. 873.
[26] Tal como acontecia, por exemplo, em vários portos medievais das Astúrias (cf. Jesús Ángel SOLÓRZANO TELECHEA y Javier AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, op. cit., pp. 279-280).
[27] Em 1452, por exemplo, 4 galés venezianas ancoraram em Cascais quando se dirigiam para a Flandres. Ali mesmo, foi ordenado um abastecimento para ser dividido pelos quatro navios: 2.000 pães, 16 vacas, 40 carneiros, 75 balas de fruta (constituídas por 8 gigas grandes), 400 quintais de biscoito e c. 7.200 litros de vinho (cf. Marco Oliveira BORGES, O porto de Cascais […], pp. 106-108).
[28] De acordo com Guilherme Cardoso, toda a baixa de Cascais está assente em areia, sendo que o mar ali chegou até perto do século XIV (Natália VALE, “Guilherme Cardoso fala da sondagem arqueológica no antigo edifício das Finanças”, in Jornal da Costa do Sol, 1015 (1987), p. 9).
[29] Após a edificação desta muralha, já existente em 1645, a circulação de pessoas, mercadorias e de embarcações entre o porto e o interior do território fazia-se através de dois arcos abertos nessa estrutura (cf. João da Cruz VIEGAS, O comércio quinhentista na vila e no porto de Cascais, Cascais, Museu Biblioteca do Conde Castro de Guimarães, 1940, p. 13; D. Manuel de CASTELLO BRANCO, Embarcações e artes de pesca, Lisboa, Lisnave, 1981, pp. 17-21).
[30] Esta foi, na verdade, uma característica de marca na vida piscatória de Cascais até muito recentemente. Por fotografias de finais do século XIX até meados do século XX vemos que os barcos dos pescadores continuavam a ser varados na praia, bem como que eram levados vila adentro para reparo ou para aí se manterem durante o período de invernada (cf., por exemplo, D. Manuel de CASTELLO BRANCO, op. cit., pp. 13 e 16).
[31] AHMC/AADL/CMC/B-A/005/001-cx.1. O tit. 205.º volta a aludir a esta questão. Segundo indicação do P.e António de Beja, a ponte de Cascais havia ruído com as cheias de 23 de Janeiro de 1518 (cf. Visconde de JUROMENHA, Sintra pinturesca, ou memória descritiva da vila de Sintra, Colares e seus arredores, Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 1989-1990, p. 123). Assim, a ponte que o livro de posturas refere teria sido a que lhe substituiu, ainda que o terramoto de 1531 e o consequente tsunami devam ter causado estragos. João da Cruz Viegas supõe que o juncal que o dito documento refere “seria aquém da ponte, visto que os três arcos da ponte e as pedras altas do «passadouro» deviam dificultar ou impedir a passagem de barcos grandes” (João da Cruz VIEGAS, op. cit., p. 46). Esta já era uma referência à ponte de pedra seiscentista.
[32] D. Manuel de CASTELLO BRANCO, op. cit., pp. 14-16.
[33]Relação das náos e armadas da India com os successos dellas que se puderam saber, para noticia e instrucção dos curiozos, e amantes da história da India. Leit. e anot. de Maria Hermínia Maldonado, Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, 1985, pp. 111 e 113.
[34] Marco Oliveira BORGES, “Corsários no litoral português”, in Visão História, 37 (2016), pp. 74-75.
[35] Idem, O porto de Cascais […], pp. 171-174 e 203-204.
[36] O agrupamento rochoso existente mais a Sul, conhecido entre os locais por “Laje” e que chegou a provocar acidentes e o afundamento de embarcações, viria a ser dinamitado e removido para garantir a segurança no acesso ao Clube Naval de Cascais durante os preparativos para o Campeonato do Mundo de Vela de 2007.
[37] Pub. por Margarida Magalhães RAMALHO, Fortificações marítimas, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 2010, p. 15.
Por mais que os trabalhos de investigação que se vão publicando tragam novidades e permitam dissipar certos mitos e erros historiográficos, o nosso património cultural, por vezes, continua envolto em falsos factos históricos. No que diz respeito à história de Cascais, um dos casos mais controversos envolve a torre que D. João II mandou construir nesta vila[2]. Por outras palavras, a polémica está relacionada com o que se tem vindo a escrever sobre esta fortificação e a omitir nas últimas décadas. Decidimos elaborar este artigo de esclarecimento, de reflexão e divulgação depois de constatarmos, mais uma vez, desta feita na placa informativa recentemente colocada junto à fortaleza de Nossa Senhora da Luz (fig. 10), que se continuam a ignorar os recentes avanços da investigação e a divulgar falsos factos históricos perante um destinatário muito específico: o grande público.
Com possível invocação a Santo António[3], a referida torre foi edificada num esporão rochoso no extremo Sul da vila de Cascais, o qual tem vindo a ser erroneamente identificado como sendo a Ponta do Salmodo. No entanto, este último ponto geográfico, conforme comprova diversa cartografia dos séculos XIX-XX (fig. 2), corresponde a outro lugar, ao sítio onde se encontra edificado o farol de Santa Marta[4].
Fig. 2 – Pormenor da costa de Cascais. Plano hydrographico desde Cabo da Roca até Cezimbra […], 1882 (BNP).
Em 1873, na sua obra pioneira sobre Cascais, Borges Barruncho referia a existência, “no antigo revelim da fortaleza”, de “umas armas do reino”. Tendo sido picadas pela acção das forças francesas, aquando da invasão de Portugal, nessas armas podia-se ler, ainda que com alguma dificuldade, D. João II[5]. Neste sentido, o autor deduziu que ali teria existido uma antiga fortificação joanina. Contudo, por essa altura, desconhecia exactamente do que se tratava, parecendo não conhecer qualquer alusão documental à torre de Cascais, algo que não escaparia à historiografia posterior[6]. Em todo o caso, teria Borges Barruncho visto as armas do tempo de D. João II ou as da época de D. João IIII (IV) que se encontram presentes no espaço da Cidadela junto à fortaleza de Nossa Senhora da Luz e que também se encontram picadas? Poderá ter havido uma imprecisão do autor, mas também poderá ser que, de facto, a inscrição fosse mesmo alusiva a D. João II. Neste cenário, teria desaparecido algures posteriormente a 1873, tendo sido deslocada juntamente com a pedra onde estavam gravadas as armas do Reino, destruída ou tapada durante algum tipo de obra.
Apesar das dúvidas que se tinham quanto à torre de Cascais, se tinha ou não sido destruída com a construção da fortaleza de Nossa Senhora da Luz, na década de 1960 Manuel A. P. Lourenço deu a conhecer ao público que esta estrutura estava integrada no interior da dita fortaleza, a qual o investigador designava por “revelim”. Não obstante as importantes indagações de Borges Barruncho, Manuel A. P. Lourenço foi o primeiro investigador que se dedicou ao estudo pormenorizado destas estruturas, chegando mesmo a explorar o interior da fortaleza de forma detalhada[7], se bem que não na sua totalidade. Na verdade, desde 1940 que Manuel A. P. Lourenço frequentava com relativa assiduidade a velha fortaleza[8], ainda que só mais tardiamente é que tenha percebido que a torre estava envolvida por essa fortificação, chegando a afirmar, em 1955, que a sua localização era desconhecida, pensando ter sido construída mais para Norte. Embora desde 1965 – pelo menos – que se tivesse conhecimento público da subsistência da torre de Cascais no interior da fortaleza de Nossa Senhora da Luz, apenas em 1987 foram iniciadas escavações no seu interior[9].
Fig. 3 – Planta da fortaleza de Nossa Senhora da Luz. Note-se a presença da torre de Cascais (Manuel A. P. Lourenço, 1965).
Ainda no que diz respeito às investigações de Manuel A. P. Lourenço, o autor chegou mesmo a elaborar plantas envolvendo as duas fortificações, explicando igualmente em texto corrido os pormenores que conseguiu observar. Assim, identificou a torre joanina como estando dentro da fortaleza, compartimentos da fortaleza devolutos e de acesso emparedado, uma área não visitável e cuja compartimentação, na altura, era desconhecida, compartimentos com grandes quantidades de entulho, a cisterna da fortaleza (debaixo do pavimento do pátio interior)[10], tendo ainda identificado duas mós, um forno e outros elementos e aspectos (figs. 3 e 4). Outro dado importante que deve ser salientado deve-se ao facto de, já em 1966, Manuel A. P. Lourenço ter pensado que, em vez de espaços mortos e fechados ao público, aqueles compartimentos poderiam “ser adaptados como atracção turística”. Neste sentido, Manuel A. P. Lourenço foi o primeiro autor a sugerir publicamente a ideia de futura musealização daquele espaço[11].
Fig. 4 – Planta da fortaleza de Nossa Senhora da Luz envolvendo a torre de Cascais (Manuel A. P. Lourenço, 1966).Fig. 5 – Vista aérea da fortaleza de Nossa Senhora da Luz. A vermelho assinala-se uma parte da estrutura da antiga torre.
A partir de finais da década de 1980 e até aos nossos dias, com o desenrolar das investigações de Margarida de Magalhães Ramalho e das equipas que trabalharam nas escavações arqueológicas[12], avançou-se bastante no conhecimento sobre a dita torre e fortaleza. Para além disso, a partir de 1990 começaram a ganhar forma ideias no que diz respeito à preparação da musealização da fortaleza[13]. Muito recentemente, no âmbito das comemorações dos 650 anos da elevação de Cascais a vila, deu-se mesmo a abertura oficial da fortaleza e da torre ao público. Anteriormente, em Dezembro de 2012, havia passado na RTP2 um documentário sobre estas duas fortificações[14].
Em relação à ideia de musealização daquele espaço, já tínhamos visto que, na década de 1960, Manuel A. P. Lourenço havia sugerido isso mesmo, embora os contributos e o nome do investigador tenham sido incompreensivelmente “esquecidos” com o decorrer do tempo. Quantas vezes foram citados os seus estudos de 1965-1966 entre a década de 1980 e 2017? É verdade que, no passado, autores como Raquel Henriques da Silva, Joaquim Boiça e Pedro de Aboim Inglez Cid assinalaram que Manuel A. P. Lourenço havia descoberto que a torre ainda estava de pé, mas esse facto não teve o devido impacto no âmbito do estudo das fortificações em análise. Muito pelo contrário. Basta ler os estudos de Margarida de Magalhães Ramalho para se chegar a tal conclusão, ainda que a autora tenha chegado a referir, de forma muito sumária, que Manuel A. P. Lourenço havia entrado nos baluartes Norte e Sul da fortaleza de Nossa Senhora da Luz (1991) e identificado o alçado Norte e parte do alçado Sul da torre (1989).
Nem mesmo no referido documentário existe qualquer menção aos trabalhos de Manuel A. P. Lourenço, isto quando o mesmo havia explorado compartimentos interiores da fortaleza de Nossa Senhora da Luz e compreendido – duas décadas antes do início das investigações de Margarida de Magalhães Ramalho – que a torre de Cascais estava no seu interior. Sendo um documentário onde são omitidas as investigações de Manuel A. P. Lourenço e os pormenores que teve oportunidade de observar e indicar[15], as atenções acabam por girar em torno de Margarida de Magalhães Ramalho, passando a ideia de que descobriu o sítio e de que foi pioneira no seu estudo. Apesar do desconhecimento geral sobre a verdadeira profundidade deste assunto e, por outro lado, de alguma resistência a nível local, é evidente que não se pode continuar a atribuir a descoberta da torre e o pioneirismo do estudo destas fortificações a Margarida de Magalhães Ramalho.
Pouco tempo depois do documentário ter sido exibido na RTP2, o qual rapidamente começou a ser comentado em diferentes grupos da rede social Facebook relacionados com Cascais, Guilherme Cardoso publicou um post no grupo O Pessoal da Linha Vem à Rede a alertar para o facto de que o interior daquela fortaleza já era conhecido antes da década de 1980 e que haviam sido publicados estudos por Manuel A. P. Lourenço. Aliás, nesse post estavam incluídas as plantas da fortaleza de Nossa Senhora da Luz presentes nos artigos daquele investigador local. Grande conhecedor do património histórico-arqueológico cascalense, Guilherme Cardoso, em 1965, teve mesmo a oportunidade de visitar o interior daquela fortaleza juntamente com seu pai, este último enquanto repórter fotográfico do Jornal da Costa do Sol. M. A. Pereira Lourenço foi o investigador local que guiou a visita[16].
Por tudo isto, e por outros aspectos que veremos mais adiante, urgia uma revisão de conhecimento sobre muito do que tinha vindo a ser dito nas últimas décadas acerca das referidas fortificações. Assim, sobretudo num artigo publicado em 2015, sujeito a avaliação científica por pares, tivemos a oportunidade de alertar para as diversas questões controversas relacionadas com a torre de Cascais e o seu estudo. Depois da nossa chamada de atenção nesse artigo, de termos começado a divulgar os estudos de Manuel A. P. Lourenço através da página Cascais durante a Idade Média[17], bem como de uma conversa com Margarida de Magalhães Ramalho, a autora teve a oportunidade de dar um primeiro passo no sentido de rectificar este assunto perante o público. A ocorrência teve lugar durante uma comunicação apresentada no Centro Cultural de Cascais, no âmbito do Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, especialmente dedicado à fortaleza de Nossa Senhora da Luz (23 de Abril de 2016).
No final das comunicações da parte da manhã, já durante a sessão de perguntas e respostas, tivemos a oportunidade de intervir fazendo algumas observações. Uma delas dizia respeito ao facto de que no painel cronológico presente na fortaleza de Nossa Senhora da Luz, e em que estão escritos vários momentos da história das duas fortificações e da sua investigação, não havia uma única alusão a Manuel A. P. Lourenço (fig. 7). Sendo esta uma grave lacuna, que omite ao público visitante a verdadeira cronologia inicial da história da investigação dessas estruturas, era de prever que esse aspecto – para não falar de outros – fosse rectificado nos tempos seguintes. Porém, em Julho de 2016, com uma nova abertura da fortaleza ao público, constatámos que o painel se mantinha na mesma, não havendo qualquer rectificação produzida por parte do núcleo de Património Cultural da Câmara Municipal de Cascais.
Fig. 6 – Painel cronológico presente na fortaleza de Nossa Senhora da Luz.Fig. 7 – Idem.
Esclarecido este primeiro aspecto relacionado com a primazia do estudo da torre de Cascais e da fortaleza, passemos a outros igualmente controversos. Muito embora se saiba que esta torre foi construída algures no reinado de D. João II, não existe qualquer documento que revele que a edificação teve início em 1488[18], data que teimosamente tem figurado em livros, exposições, etc., quando se alude a esta estrutura tardo-medieval. Esta imprecisão resulta de uma confusão e leitura abusiva das informações fornecidas por Rui de Pina e Garcia de Resende. Para elucidar os leitores, eis os trechos que têm sido mal interpretados:
“Estando el Rey [D. João II] em muyta paz, e amizade com os Reys de Castella, como muyto prudente Principe fazia sempre, e ordenaua suas cousas antes de auer necessidade dellas. E no começo do anno de mil e quatrocentos e oitenta e oito, com muyto cuidado, e diligencia mandou prouer, fortalecer, e repartir todalas Cidades, Villas, e Castellos dos estremos de seus Reynos, assi no repairo, e defensam dos baluartes, cauas, muros, e torres, como em artilharias, poluora, salitre, armas, almazens, e todallas outras cousas necessarias”[19].
Como se pode ver, não existe qualquer referência para a construção da torre de Cascais ocorrer em 1488, apesar da ideia do monarca poder ter sido coeva. É num trecho de Garcia de Resende (Crónica de D. João II e Miscelânea), que corresponderá a eventos ocorridos em 1494, ainda que se saiba que alguns tenham ocorrido antes, que surge a menção à dita torre:
“E assi mandou fazer entam a torre de Cascaes com sua caua, com tanta e tam grossa artelharia, que defendia o porto; e assi outra torre, e baluarte de Caparica defronte de Belém, em que estaua muyta e grande artilharia, e tinha ordenado de fazer hua forte fortaleza, onde ora está a fermosa torre de Belem, que el Rey dom Manoel, que santa gloria haja, mandou fazer, pera que a fortaleza de hua parte, e a torre da outra tolhessem a entrada do rio”[20].
De facto, 1494 é a data mais apontada pelos investigadores para o início da construção da torre de Cascais[21]. Depois de ter estudado o assunto, Pedro de Aboim Inglez Cid, embora salientando que o trecho de Garcia de Resende sobre as fortificações é o que se segue à descrição da experiência de artilharia feita em caravelas (Setúbal) e que “o critério de agrupar assuntos conexos num único capítulo não implica que o exposto tenha ocorrido estritamente na mesma época”, é levado a admitir que das fortificações referidas por Garcia de Resende apenas a construção da torre de Cascais terá sido coeva dos testes balísticos ordenados por D. João II, ou seja, 1494[22]. Recentemente, Joaquim Boiça referiu mesmo que, pese embora se tenha mandado erguer a torre em 1488, o que, como vimos, não se consegue comprovar documentalmente, as obras só teriam avançado em 1494[23].
É claro que se pode colocar a hipótese de se ter mandado construir a torre em 1488, no âmbito geral daquilo que se pretendia para a fortificação do Reino[24], mas isso terá de ser feito sob a forma de hipótese explicativa e não como sendo um dado garantido. Uma coisa é uma hipótese explicativa, outra é um facto histórico. Ainda assim, e conforme foi indicado, a data mais consensual para o início da construção da torre de Cascais é 1494[25].
Mais recentemente, em 2011 e 2013, Margarida de Magalhães Ramalho, investigadora que mais tempo tem dedicado ao estudo desta torre, partindo da ideia de que a sua construção terá arrancado em 1488, acrescentou que terá ocorrido até 1498. Para fundamentar a última data apontada a investigadora refere duas moedas deste período[26] encontradas na última escavação arqueológica realizada no interior da fortaleza de Nossa Senhora da Luz (2005). No entanto, esta referência a supostas moedas de 1498 trata-se de uma imprecisão[27], e que tem induzido em erro, até porque a primeira moeda portuguesa com data expressa de emissão no Reino surge apenas no reinado de D. Sebastião, sendo o “engenhoso” (1562)[28].
Em todo o caso, se fizermos um paralelo com o tempo de construção da torre de S. Sebastião de Caparica, que terá começado a ser construída em 1481 ou 1482 e que, por volta de 1485, poderia já ter a fase principal de obras finalizada[29], bem como com a torre de Belém, cuja construção terá decorrido entre 1514 e 1519[30], poderemos pensar numa cronologia de construção da torre de Cascais que ande à volta dos quatro anos (ou pouco mais). Tendo as obras muito provavelmente arrancado em 1494, por volta de 1498 ou 1499 a torre poderia já ter alguma ocupação, ainda que pudesse não estar totalmente finalizada. De maior importância para o estudo da torre de Cascais, e para fundamentar e reforçar a nossa argumentação, um documento de 1500 que tivemos oportunidade de dar a conhecer inicialmente na nossa tese de mestrado (2012) alude a um bombardeiro fixo naquela fortificação desde 1500[31], se bem que remeta para um mestre bombardeiro que já estaria de serviço na torre pelo menos desde 1499, podendo essa presença até remontar a 1498. São hipóteses bastante plausíveis[32].
Outro mito relacionado com a torre de Cascais diz respeito à ideia de que a construção desta estrutura esteve directamente relacionada com os ataques do corsário/pirata João Bretão na baía de Cascais (Setembro de 1484). Mais uma vez, não existe qualquer documento histórico que suporte tal ideia. A documentação conhecida alude apenas aos ataques de João Bretão, que até chegou a estar ao serviço de D. João II, e às medidas que a rainha D. Leonor tomou para que o salteador parasse com as suas actividades (fig. 8). É mais coerente pensar que o motivo da construção da torre tenha estado ligado a todo um conjunto de ataques ocorridos naquela área ao longo da década de 1480, e que revelaram a vulnerabilidade da navegação e evidentes fragilidades defensivas locais, parecendo mesmo haver uma estratégia bem definida por parte dos corsários franceses que actuavam nas imediações e em ligação com Lisboa[33].
Fig. 8 – Uma das cartas que revela a presença do corsário João Bretão em Cascais. 23 de Setembro de 1484 (AML, Chancelaria Régia, Livro 2º de D. João II, fls. 37-38v).
Sabe-se que a construção deste tipo de fortificações, junto ao mar, “destinava-se a evitar desembarques nos locais mais favoráveis e, segundo a capacidade de cada local, a servir de protecção aos ancoradouros das frotas que se oporiam aos navios atacantes. Podiam, dentro dos alcances da sua artilharia, evitar que o inimigo manobrasse nas suas proximidades, função que se foi tornando cada vez mais importante à medida que os alcances aumentavam e o recurso a munições especialmente destinadas ao combate naval ia sendo possível”[34].
No caso específico de Cascais, e não esquecendo também a sua importância enquanto atalaia do Tejo, o papel defensivo da torre cascalense seria o de impedir a aproximação e possível desembarque inimigo no centro portuário local, bem como de proteger os navios que seguiam para Lisboa (ou para outros lados) e que em Cascais irremediavelmente faziam escala, lançando ferro em frente à praia da Ribeira e imediações da fortificação joanina. É que, devido aos condicionalismos geográficos próprios desta área, a viagem para Lisboa e a necessária entrada na barra do Tejo nem sempre era feita de forma directa, sendo necessário aguardar por maré e ventos favoráveis ao largo de Cascais a fim de evitar os perigos da barra (nomeadamente os cachopos) e um possível naufrágio[35].
Importa, agora, aduzir um caso documentado que exemplifica parte das utilidades defensivas da torre de Cascais. Em finais de Julho de 1524 esteve iminente a utilização desta fortificação para o bombardeamento de uma frota do imperador Carlos V, sendo esta formada por 86 urcas e soldados de várias origens do Norte da Europa. A frota, tendo como destino a Andaluzia, havia feito escala no porto de Cascais para abastecimento. Como a “contrariedade dos tempos” não permitia navegar para Sul, os navios tiveram de ficar naquele porto durante mais de 15 dias, vindo a sua gente a causar vários problemas, situação que levou a clamores entre o povo da vila e arredores. Para resolver a situação, Nuno da Cunha, governador da Relação e vedor da Fazenda, foi enviado a Cascais com intérpretes flamengos e alemães que residiam em Lisboa, bem como com um português que sabia falar as suas línguas. Na verdade, os estrangeiros, enviados para falar com o almirante (holandês) e com os mestres das urcas, não eram propriamente intérpretes, mas sim os maiores representantes das casas comerciais flamengas e alemãs de Lisboa e cujas afinidades linguísticas eram requeridas para ajudar a desbloquear a situação. Acabariam por ser recebidos nos Paços de D. Pedro de Castro (senhor de Cascais e 3.º conde de Monsanto), onde Nuno da Cunha, depois de relembrar aos estrangeiros ali chamados a sua condição de vassalos do Imperador, o qual tinha boas relações com o rei de Portugal, ameaçou-os dizendo “que lhes faria todo o mall que podesse asy com a artilheria da torre” e que traria gente por terra caso os visados não parassem as suas acções[36].
Por esta informação não há dúvida de que o poder de fogo da artilharia da torre, nessa altura sob comando do mestre bombardeiro Simão de Paris[37], estava ao alcance das urcas, pelo menos das que estavam mais próximas das imediações da praia da Ribeira. É que, sendo uma frota constituída por 86 navios, naturalmente que a disposição dos mesmos se faria para o sentido nascente da vila, dadas as dimensões da praia e a necessidade de manter o centro portuário desbloqueado.
Fig. 9 – Conhecimento em que se declara que mestre Simão de Paris, bombardeiro da torre de “Quasquaes”, recebeu 15.000 reais por servir na dita vila em 1524 (ANTT, CC, pt. II, mç. 123, n.º 92).
Voltemos aos aspectos controversos sobre a torre. Na referida placa informativa colocada recentemente junto à fortaleza de Nossa Senhora da Luz, onde também é referido que D. João II mandou construir a dita torre em 1488, está escrito que Pêro Anes foi o autor dessa fortificação. Resultando tais informações – mais uma vez – de uma imprecisão, e não havendo qualquer tipo de comprovação documental, o que se sabe sobre este homem é que, em 1505, seria o responsável por certas obras de fortificação que estavam a ser realizadas na vila de Cascais. A informação foi dada a conhecer por Jaime D’Oliveira Lobo e Silva, ao sintetizar um documento que aludia ao lançamento de um imposto a algumas povoações situadas a Norte de Cascais para que contribuíssem nas despesas das referidas obras:
“[A] 12 de Agosto, … Pero Annes, homem das obras que El Rei tem em Cascais, apresenta à Câmara um regimento pelo qual o Rei ordena que os moradores das Vilas de Colares, Cheleiros, Mafra, Ericeira e reguengo da Carvoeira, concorram para as ditas obras, que, segundo parece, constavam de uma torre, muralhas e outras construções de fortificação”[38].
É muito provável que, por essa altura, a torre que D. João II havia mandado construir e a muralha medieval da vila estivessem em reparação. Sabendo-se que já estava em funcionamento desde 1499-1500, a torre de Cascais voltava a entrar em obras muito provavelmente devido a violentos tremores de terra que terão ocorrido entre 1504 e 1505[39] e que terão danificado as suas estruturas[40].
Em suma, que conclusões se podem tirar deste artigo? Face a todos os aspectos que foram sendo referidos, a divulgação histórica não se pode limitar a um processo de reprodução de ideias antigas e erradas, recorrendo à fórmula: “historiografia de historiografia”. Há que tentar ir directamente às fontes históricas/arqueológicas e confirmar o que está a ser dito. Questões incertas, que devem ser exploradas sob a forma de hipótese explicativa, não podem ser transmitidas como se fossem factos históricos. Todos nós erramos e estamos sujeitos a ser corrigidos. Ora, o grande problema surge quando se verifica a falta de rigor científico, quando não se faz uma actualização de conhecimentos, quando não há abertura para a discussão, para a novidade e para superar certos erros, o que, desse modo, impede o avanço do saber e a sua necessária renovação. Se assim for, o comum cascalense e o grande público serão erradamente informados sobre o nosso passado histórico!
Fig. 10 – Alguns turistas lêem as informações recentemente colocadas sobre a torre de Cascais e a fortaleza de Nossa Senhora da Luz.
Marco Oliveira Borges | 2017
[1] M. A. Pereira LOURENÇO, “O revelim da cidadela e a torre de Cascais II”, in Jornal da Costa do Sol, 55 (1965), p. 10. “Revelim” era o nome pelo qual o investigador designava a fortaleza de Nossa Senhora da Luz.
[3] Embora, por vezes, seja dado como garantido que a torre de Cascais teve esta invocação, a verdade é que esta questão ainda não está devidamente esclarecida (cf. Margarida de Magalhães RAMALHO, “Cascais em finais do século XVI: duas plantas inéditas”, in Arquivo de Cascais. Boletim Cultural do Município, 9 (1990), pp. 82-83; idem, “As fortificações marítimas do porto e da nobre vila de Cascais”, in Joaquim Boiça et al., As fortificações marítimas da costa de Cascais, Cascais, Quetzal, 2001, p. 28; idem, Fortificações marítimas, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 2010, p. 25; idem, “A defesa de Cascais”, in Monumentos. Cidades. Património. Reabilitação, 31 (2011), p. 36; idem, “A defesa de Cascais. Do castelo medieval à construção da Cidadela”, in Isabel Cristina F. Fernandes (coord.), Fortificações e território na Península Ibérica e no Magreb (séculos VI a XVI), vol. II, Lisboa, Edições Colibri/Campo Arqueológico de Mértola, 2013, p. 640).
[5] “Ha no antigo revelim da fortaleza umas armas do reino, todas picadas pelos francezes da invasão de 1807, nas quaes apenas se póde ler, e com difficuldade – D. João II” (Pedro Lourenço de Seixas Borges BARRUNCHO, Apontamentos para a história da villa e concelho de Cascaes, Lisboa, Typographia Universal, 1873, pp. 81 e 109).
[6] Cf., por exemplo, Afonso do PAÇO e Fausto J. A. de FIGUEIREDO, “Esboço Arqueológico do Concelho de Cascais”, in Boletim do Museu-Biblioteca do Conde de Castro Guimarães, 1 (1943), p. 19.
[7] Cf. M. A. Pereira LOURENÇO, “O revelim da Cidadela e a torre de Cascais”, in Jornal da Costa do Sol, 53 (1965), p. 16; idem, “O revelim da Cidadela e a torre de Cascais II”, p. 10; idem, “O revelim da Cidadela e a torre de Cascais”, in Jornal da Costa do Sol, 97 (1966), p. 5; idem, “História de Cascais e do seu Concelho”, in Jornal da Costa do Sol, 262 (1969), p. 19.
[8] Idem, “O revelim da Cidadela e a torre de Cascais”, in Jornal da Costa do Sol, 53, p. 16.
[9] Manuel A. P. Lourenço, “História de Cascais e do seu concelho”, in A Nossa Terra, n.º 99, 1955, p. 2. Posteriormente, numa obra publicada em 1964, no âmbito das comemorações do VI centenário da vila de Cascais, o autor não fazia qualquer alusão à identificação da torre de Cascais, pelo que ainda não teria percebido que essa fortificação havia sido envolvida pela fortaleza de Nossa Senhora da Luz (cf. Manuel Acácio Pereira Lourenço, As fortalezas da costa marítima de Cascais, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1964, p. 11). Sobre o início das escavações, cf. Margarida de Magalhães RAMALHO, “A fortaleza de Nossa Senhora da Luz”, in Arquivo de Cascais. Boletim Cultural do Município, 10 (1991), p. 35.
[10] Já conhecida por Pedro Lourenço de Seixas Borges BARRUNCHO, op. cit., p. 79.
[11] M. A. Pereira LOURENÇO, “O revelim da Cidadela e a torre de Cascais”, p. 5.
[12] Sobre as escavações de 2005, cf. Nuno NETO et al., “Intervenção arqueológica na fortaleza de Nossa Senhora da Luz (Cascais). Contribuições para a sua análise evolutiva e estrutural”, in Património. Estudos, vol. 10, Lisboa, Instituto Português do Património Arquitectónico, 2007, pp. 185-197.
[13] Margarida de Magalhães RAMALHO, “As fortificações marítimas do porto […]”, p. 50.
[15] Apesar de alguns aspectos controversos e críticas que se possam apontar a Manuel A. P. Lourenço, que muito raramente usava notas de rodapé para fundamentar as suas informações, até porque escrevia, sobretudo, nos jornais locais, é óbvio que não se pode tirar este e outros méritos de investigação ao autor.
[16] “Passou recentemente um documentário sobre a primitiva “Torre de Cascais” mandada erigir por D. João II, o “Príncipe Perfeito”, que herdando apenas as estradas de um pobre reino, localizado na periferia da Europa, com apenas 1.700.000 habitantes, soube transformá-lo num império. Da autoria da Dr.ª Margarida Ramalho, o documentário intitulado “Stº. António de Cascais e a Torre Perdida”, de excelente qualidade, mostra-nos as investigações que aquela historiadora tem ali realizado desde 1982, bem como o trabalho mais recentes de outros investigadores. Conhecemos o interior daquela fortaleza desde 1965, numa noite, em que acompanhei uma equipa do Jornal da Costa do Sol, em que o meu pai era o repórter fotográfico e o guia o historiador Manuel Lourenço, que desde os anos 40 estudava aquela fortificação. Lembro-me como se fosse hoje todos os passos que demos no seu interior. Numa sala, localizada no canto do pátio, estava uma grande imagem de St.º António, de gesso, por detrás uma parede onde, recentemente, fora aberto um buraco. No seu interior um recanto húmido, onde escorria água das paredes e as estalactites caíam de um alto tecto. Uma grade de ferro, de uma antiga porta de prisão deixada encostada, recordava os últimos presos Liberais ali encarcerados durante o reinado de D. Miguel. Para quem queira saber mais sobre a história da fortaleza e dos estudos que Manuel Lourenço fez basta consultar o Jornal a Costa do Sol: Manuel Acácio Pereira Lourenço: “O Revelim da Cidadela e a Torre de Cascais I, II e III”, Jornal da Costa do Sol, Cascais, nº 53, 24/4/1965; nº 55, 8/5/1965; nº 97, 26/2/1966. “Aspectos de Cascais Antes e Depois do Ano de 1580 a Posição Estratégica e as Fortificações”, Jornal da Costa do Sol, Cascais, nº 262, 26/5/1969” (https://www.facebook.com/photo.php?fbid=527139110637043&set=o.468302963181739&type=1&permPage=1, consultado em 30/12/2012).
[18] Data que tem sido avançada, sobretudo, por Margarida Magalhães RAMALHO, “A torre de Cascais. Uma perspectiva arqueológica”, in Arquivo de Cascais. Boletim Cultural do Município, 7 (1988), p. 69; idem, “A barra do Tejo e a defesa de Lisboa”, in Oceanos, 11 (1992), p. 71; idem, Fortificações marítimas, p. 25; idem, “A defesa de Cascais”, p. 36; idem, “A defesa de Cascais. Do castelo medieval à construção da Cidadela”, p. 640. Todavia, numa obra publicada em 2001, a autora também chegou a admitir que a torre havia sido mandada levantar em 1488, sendo que apenas seis anos mais tarde teriam começado as obras, terminando já no reinado de D. Manuel I. Contudo, Margarida Magalhães Ramalho confundiu o ano de 1488 como sendo alusivo ao trecho de Garcia de Resende que refere a construção da torre (cf. idem, “As fortificações marítimas do porto […]”, p. 28).
[19] Garcia de RESENDE, Crónica de D. João II e Miscelânea. Pref. de Joaquim Veríssimo Serrão, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1973, cap. LXX, pp. 102-103.
[21] Entre os investigadores mais antigos, cf. Afonso do PAÇO e Fausto J. A. de FIGUEIREDO, op. cit., p. 19; Manuel Acácio Pereira LOURENÇO, As fortalezas da costa marítima de Cascais, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1964, p. 11; idem, “História de Cascais e do seu concelho”, p. 19; Ferreira de ANDRADE (dir.), Monografia de Cascais, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1969, p. 258; Carlos Pereira CALLIXTO, “A Praça de Cascais e as Fortificações suas dependentes”, in Revista Militar, 5 (1978), p. 329.
[22] Cf. Pedro de Aboim Inglez CID, A torre de S. Sebastião de Caparica e a arquitectura militar do tempo de D. João II, Lisboa, Edições Colibri, 2007, pp. 160 e 167 (n. 77). Como datas alternativas para os testes balísticos de Setúbal, o investigador aponta o Verão de 1484 ou o Outono de 1488 (cf. idem, ibidem, p. 149 e n. 16).
[23] Joaquim M. F. BOIÇA, “Cascais no sistema defensivo do porto de Lisboa”, in Monumentos. Cidades. Património. Reabilitação, 31, p. 30.
[24] Margarida de Magalhães RAMALHO, “As fortificações marítimas do porto […]”, 50.
[26] “Como o comprovam duas moedas deste período encontradas na última escavação realizada, em 2005 […]” Cf. Margarida de Magalhães RAMALHO, “A defesa de Cascais”, pp. 36 e 45 (n. 11); idem, “A defesa de Cascais. Do castelo medieval à construção da Cidadela”, pp. 640 e 644 (n. 7). No documentário sobre a torre de Cascais a cronologia de construção apontada é a mesma (1488-1498).
[27] Estranha-se, ainda, que Margarida de Magalhães Ramalho, nos seus dois últimos estudos referidos, não cite o estudo de 2007 resultante dos trabalhos arqueológicos levados a cabo na fortaleza de Nossa Senhora da Luz entre Outubro de 2004 e Abril de 2005, o qual não apresenta qualquer referência a supostas moedas de 1498 ou a outras do reinado de D. Manuel I, sendo este um estudo em que a própria investigadora participou como co-autora (vide supra, n. 12).
[28] No entanto, o conhecido “bazaruco” de 1532, moeda indo-portuguesa, parece ser o exemplar mais antigo da numismática portuguesa que ostenta data (cf. J. FRONTEIRA, “Um «soldo» de D. João III?”, in NVMMVS. Boletim da Sociedade Portuguesa de Numismática, IV: 13-14 (1956-1957), pp. 130-131.
[29] Pedro de Aboim Inglez CID, op. cit., pp. 160-161 e 281-283.
[30] Reynaldo dos SANTOS, A torre de Belém 1514–1520. Estudo histórico e arqueológico, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1922, pp. 9, 32, 34-35, 40-41, 44-46 e 58.
[31] ANTT, Chancelaria de D. Manuel I, liv. 13, fl. 49v.
[32] Cf. Marco Oliveira BORGES, “A torre defensiva que D. João II mandou construir em Cascais […]”, pp. 106 e 114.
[33] Para um apanhado documentado e problematização dos ataques corsários em Cascais no reinado de D. João II, cf. Marco Oliveira BORGES, O porto de Cascais durante a Expansão Quatrocentista. Apoio à navegação e defesa costeira. Dissertação de Mestrado em História Marítima, Universidade de Lisboa, 2012, pp. 170-174 e 201-205.
[34] António José Pereira da COSTA, Cidadela de Cascais (pedras, homens e armas). Pref. de Rui Carita, Lisboa, Estado-Maior do Exército/Direcção de Documentação e História Militar, 2003, p. 23.
[35] Joaquim M. F. BOIÇA, op. cit., p. 24; Marco Oliveira BORGES, op. cit., pp. 61-62.
[36] O documento é de 25 de Julho de 1524 (ANTT, CC, pt. I, mç. 31, doc. 40; Pedro de AZEVEDO, “Uma esquadra de Carlos V no porto de Cascaes em 1542”, in Revista de História, 4 (1912), pp. 246-248).
[38] Jaime D’Oliveira Lobo e SILVA, Anais da vila da Ericeira. Registo cronológico de acontecimentos referentes à mesma vila, desde 1229 até 1943. 3.ª ed., Mafra, Câmara Municipal de Mafra, 2002, p. 24.
[39] Outro sismo terá ocorrido em 1500 (cf. Marisa COSTA e João F. B. D. FONSECA, “Sismicidade histórica em Portugal no período medieval”, in Sísmica 2007 – 7.º Congresso de Sismologia e Engenharia Sísmica, Porto, 2007, p. 6). Sobre os sismos de 1504-1505, cf. M. de LA CLEDE, Histoire Generale de Portugal, t. I, Paris, Chez Guillaume Cavelier, 1735, p. 578; Victor João de Sousa MOREIRA, Sismicidade Histórica de Portugal Continental. Sep. da Revista do Instituto Nacional de Meteorologia e Geofísica (1984), p. 15; Luís Mendes VICTOR, “A sismologia e a dinâmica planetária”, in Prevenção e protecção das construções contra riscos sísmicos, Lisboa, Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, 2005, pp. 27 e 29-30; Marisa COSTA e João F. B. D. FONSECA, op. cit., p. 6.
[40] Marco Oliveira BORGES, op. cit., pp. 193-194. Esta hipótese surgiu do seguimento da pista deixada por Manuel A. P. Lourenço de que os sismos deverão ter atingido duramente Cascais (cf. Manuel A. P. LOURENÇO, “História de Cascais e do seu concelho”, in A Nossa Terra, 128 (1956) pp. 2 e 7).
Fig. 1 – Momentos iniciais do encalhe em Cascais. Fotografia: Marco Oliveira Borges.
No final da manhã de 17 de Outubro de 2015, durante um forte temporal, o petroleiro Tokyo Spirit encalhou na costa de Cascais. As informações que circularam sobre a presença deste navio no litoral cascalense são contraditórias. Por um lado, foi avançado que o Tokyo Spirit estava fundeado nesta costa alegadamente à espera de entrar na barra do Tejo, onde iria ser alvo de reparações. Por outro, também foi referido que o seu destino era o estaleiro da Lisnave, em Setúbal, o que veio a acontecer posteriormente. Mais contradições surgiram, desta vez relacionadas com o real motivo que levou à perda de controlo do navio, à consequente aproximação da costa de Cascais e encalhe, sendo este um assunto que não ficou bem esclarecido. Numa das versões é referido que, enquanto aguardava ordens do armador para rumar a um estaleiro, este petroleiro com a bandeira das Bahamas acabou por perder a amarra de estibordo e ser empurrado para terra pela força do mar, encalhando assim em frente ao farol da praia de Santa Marta.
Fig. 2 – “Tokyo Spirit” encalhado em frente à praia de Santa Marta. Fotografia: Marco Oliveira Borges.Fig. 3 – Vista a partir da marina de Cascais. Fotografia: Marco Oliveira Borges.
O Tokyo Spirit é um navio de 78 mil toneladas e 274 metros de comprimento, tendo sido construído no Japão em 2006. Face à presença ameaçadora deste gigante transportador de petróleo na sua costa, os habitantes locais temeram prontamente um desastre ambiental. Se as autoridades cascalenses, que acompanharam o acontecimento desde o pedido de socorro (12:01), sabiam que o navio tinha os tanques vazios, por outro lado, essa informação ainda não era conhecida das pessoas que inicialmente assistiam surpreendidas ou daquelas que iam visualizando algumas imagens e vídeos que rapidamente começaram a circular nas redes sociais[1]. Só um pouco depois é que começou a ser divulgado que este navio de casco duplo vinha sem carga, tendo descarregado os materiais dias antes em Gotemburgo, ainda sob o nome Princimar Loyalty (registado na Libéria). No entanto, o perigo de possível derrame de hidrocarbonetos não esteve totalmente afastado, sendo de referir os resíduos de crude existentes a bordo e uma certa quantidade de combustível que o Tokyo Spirit tinha para seu próprio funcionamento.
Fig. 5 – Perspectiva ampliada do “Tokyo Spirit”. Fotografia: Marco Oliveira Borges.Fig. 6 – O navio encalho inicialmente em frente à praia de Santa Marta. Fotografia: Marco Oliveira Borges.Fig. 7 – Vista a partir da Marina de Cascais. Fotografia: Marco Oliveira Borges.Fig. 8 – Perspectiva a partir da praia de Santa Marta. Fotografia: Marco Oliveira Borges.
A notícia deste encalhe espalhou-se rapidamente pela Internet e teve, durante algum tempo, cobertura em directo por várias estações de televisão, facto que atraiu milhares de pessoas que ao longo da tarde de Sábado e já no dia seguinte se deslocaram a Cascais. Durante a tarde de Sábado, com a força do mar, o Tokyo Spirit desencalhou do local onde inicialmente havia encalhado, vindo a encalhar mais a nascente, junto à entrada da marina de Cascais.
As operações iniciais para desencalhar este petroleiro foram efectuadas durante a preia-mar (18:30), contando-se com o auxílio de quatro rebocadores vindos de Lisboa. A bordo do Tokyo Spirit permaneceram as 22 pessoas que compunham a tripulação, visto que o comandante do navio recusou que fossem resgatadas pelo helicóptero da Força Aérea Portuguesa destacado para o local, alegando que não corriam perigo e que estas iriam auxiliar durante os trabalhos. Gorada a primeira operação de tentativa de desencalhe, tiveram de ser deslocados meios mais potentes e sofisticados para auxiliarem nos trabalhos: dois rebocadores vindos de Sines e um de Setúbal.
Fig. 10 – Perspectiva durante a tarde de Sábado. Fotografia: Marco Oliveira Borges.Fig. 11 – Os quatro rebocadores na operação de Sábado à tarde. Fotografia: Marco Oliveira Borges.
Por fim, durante a tarde do dia seguinte e já depois da deslastragem do navio, sete rebocadores a trabalhar em conjunto conseguiram desencalhar o petroleiro, sendo de enaltecer o empenho e eficiência das entidades envolvidas na operação. De seguida, o Tokyo Spirit foi rebocado para uma zona de fundeadouro da costa de Cascais e, posteriormente, levado para Setúbal.
A população local respirou de alívio! No entanto, não foi a primeira vez que tal tipo de acontecimento teve lugar na costa de Cascais e certamente que não será o último. Aliás, a história de Cascais é rica neste tipo de acidentes e naufrágios[1], sendo que os testemunhos históricos mais antigos remetem-nos para 1147, altura em que alguns navios das forças cruzadas que vieram auxiliar D. Afonso Henriques na tomada de Lisboa aos mouros naufragaram entre Sintra e Cascais[2].
Fig. 12 – Graças ao molhe de protecção da marina o petroleiro não se deslocou mais para terra. Fotografia: Marco Oliveira Borges.Fig. 13 – “Tokyo Spirit” já ao largo depois do desencalhe. Fotografia: Marco Oliveira Borges.
No fundo do mar de Cascais ficou uma amarra e um ferro que o Tokyo Spirit havia perdido durante o temporal. Somente em Maio de 2016 é que se procedeu à remoção destes materiais, sendo recolhidos mais de 300 metros de amarra, num total de cerca de 70 toneladas, enquanto que o ferro tinha perto de 11 toneladas[3].
[1] Cf. Manuel Eugénio da SILVA e Guilherme CARDOSO, Naufrágios e acidentes marítimos no litoral cascalense, Cascais, Junta de Freguesia de Cascais, 2005; Cascais na rota dos naufrágios. Museu do Mar – Rei D. Carlos. Exposição. Catálogo, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 2006.
Já passa da meia-noite. A companha do “Horizonte Aberto”, embarcação do estilo traineira construída em 1998 (Figueira da Foz), reúne-se no pontão mais recente de apoio aos pescadores de Cascais para a sua jornada de trabalho. O mestre, Miguel Diogo, também está a chegar. Finalmente embarcados no bote que faz o transporte do pessoal e do material até à embarcação de pesca, presa à amarração, um dos elementos da companha expressa a sua surpresa por nessa noite serem acompanhados por um historiador. Ausente das lides da pesca embarcada já há alguns anos, tive a oportunidade de voltar ao mar durante essa noite, desta vez apenas enquanto observador, pronto a recolher os elementos que permitissem fazer um resumo escrito da apanha do polvo-comum (Octopus vulgaris).
Fig. 3 – Elemento da companha, oriundo da Ericeira, a tirar um polvo do alcatruz.
O mar estava relativamente calmo. O local em que decorreram as actividades foi a área costeira de Cascais e ao largo da barra do Tejo, entre 4 a 6 milhas de distância de terra, onde as teias de alcatruzes e de covos presentes no fundo do mar (20 a 50 braças de profundidade) vão permitindo a entrada e abrigo aos polvos. Se os alcatruzes não necessitam de isca para atrair aquela espécie carnívora de cefalópodes, os covos, pelo contrário, estavam a ser iscados com caranguejo proveniente de Setúbal, se bem que esta seja uma arte de pesca em que, frequentemente, também se usa a sardinha ou a cavala.
Fig. 4 – Alcatruzes prontos para largar ao mar depois de terem fornecido dois polvos.Fig. 5 – Vira-se uma teia de covos.Fig. 6 – Retira-se um polvo do covo.Fig. 7 – Caranguejo de Setúbal usado como isca nos covos.
Investigações recentes mostraram que o polvo-comum capturado na costa de Cascais e ali desembarcado é de grande frescura e de elevada qualidade[1], sendo este mais um atractivo para quem quiser visitar esta vila e saboreá-lo nos diversos restaurantes e tascas. No caso do “Horizonte Aberto”, e para se conseguir uma elevada frescura dos exemplares capturados, uma mangueira ligada a uma bomba que puxa água do mar vai mantendo o polvo-comum fresco até se chegar a terra. De uma forma geral, esta é uma espécie que assume enorme importância no que respeita às capturas locais, representando uma grande fatia do pescado descarregado em Cascais[2].
Fig. 8 – Mestre Miguel Diogo no comando das operações.
No entanto, a experiência a bordo do “Horizonte Aberto” não foi marcada apenas pelos aspectos especificamente ligados à pesca do polvo. A embarcação está dotada de um sistema tecnológico avançado, com radares que permitem compreender toda a movimentação marítima na área envolvente, o enquadramento geográfico em relação a terra, etc., fornecendo assim enorme segurança a quem exerce a actividade. Durante os trabalhos o mestre teve oportunidade de explicar diversos pormenores das movimentações marítimas e particularidades oceânicas desta área geográfica, como foi o caso dos enfiamentos da barra do Tejo por onde entram e saem os navios, algo bastante familiar face aos estudos histórico-arqueológicos para épocas mais recuadas que têm vindo a ser desenvolvidos.
Fig. 9 – Pormenor da costa de Cascais e barra do Tejo.Fig. 10 – Pormenor da costa de Cascais.Fig. 11 – Radar Koden em funcionamento.
Por fim, depois de uma jornada produtiva, retornámos ao porto de Cascais já pelas 10:00 da manhã sob denso nevoeiro. Pouco depois procedeu-se à passagem das caixas de polvo para o bote de apoio e à consequente descarga no pontão antigo, contando-se com o auxílio de uma grua. Deste sítio o polvo foi levado de carrinha para ser vendido em Sesimbra.
Fig. 12 – Limpeza de covos a bordo.Fig. 13 – Ao regressarmos a terra passámos perto do navio Elka Eleftheria (Monrovia). Fig. 14 – Pormenor da entrada da Marina de Cascais.Fig. 15 – Registo recente do diário de bordo.Fig. 16 – Mestre e companha do “Horizonte Aberto” (Agosto de 2016).Fig. 17 – Resultado final.Fig. 18 – Descarga do polvo.
Marco Oliveira Borges | 2016
[1] Cf. Ana LEONARDO, Estudo da qualidade do polvo-comum (O. vulgaris) capturado na baía de Cascais. Dissertação de Mestrado Integrado em Medicina Veterinária, Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Técnica de Lisboa, 2010, pp. III e 42.