Marégrafo de Cascais

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Marégrafo de Cascais. Fotografia: Marco Oliveira Borges (2011).

Adquirido a 23 de Março de 1877, pela Direcção-Geral dos Trabalhos Geodésicos, Topográficos, Hidrográficos e Geológicos do Reino, pela quantia de 2.519 francos franceses a uma oficina de Paris, credenciada pela qualidade tecnológica dos seus relógios horizontais ou de edifício, o Marégrafo de Cascais (ou de Borrel) havia de ser instalado somente dois anos depois, no passeio D. Maria Pia, junto ao forte da Cidadela[1]. Após a sua instalação seguiu-se uma fase de montagem, construção da casa abrigo, para além da realização de variados testes, pelo que só veio a iniciar o seu funcionamento regular em 1882. Por esta altura, apenas três locais detinham semelhante equipamento: Brest (França), Aberdeen (Escócia) e Hoek Van Holland (Holanda).

A necessidade de aquisição deste marégrafo – da autoria do francês Amédée-Philippe Borrel (1818-1887) – obedece à lógica da conjuntura internacional da época, onde o desenvolvimento do conhecimento científico era uma constante. No caso português, surgiu da urgência de registar as alturas do nível do mar fora da barra de Lisboa e de definir o zero altimétrico para Portugal continental, necessário para a navegação e para os trabalhos de cartografia e hidrografia que se pretendiam realizar sobre portos e rios portugueses, sendo que a localização privilegiada da enseada de Cascais ditou o local escolhido para a sua colocação. Note-se que, até então, o nível do mar era medido através de marémetros ou réguas de maré, feitos de madeira ou de metal, mas que uma vez baseados na observação directa não permitiam um registo contínuo de dados. Todavia, face a problemas de funcionalidade verificados com o assoreamento no poço que fazia parte da estrutura inicial, e que não permitia a obtenção de dados fiáveis, o Marégrafo de Cascais veio a ser deslocado mais para Sul, a 50 metros de distância da primitiva instalação, onde se construiu uma nova casa abrigo e onde se encontra na actualidade (na área adjacente ao Clube Naval de Cascais, junto à Marina local), vindo apenas a iniciar actividade a 28 de Maio de 1895.

Fazendo o registo diário da evolução das marés e das correntes, este é o primeiro marégrafo analógico a surgir em Portugal – o de Lagos só iniciaria actividade em 1908 – e o único que ainda se encontra em actividade. Este mecanismo funciona com uma boía colocada num poço, em contacto directo com o mar, e cujo movimento é transmitido por um sistema de cabos e roldanas ligados a uma caneta que faz o registo das variações do nível da água numa folha de papel quadriculada, envolvida num tambor rotativo. Com efeito, essa caneta regista a amplitude consoante o movimento da maré, construindo assim um gráfico designado por maregrama. O marégrafo tem uma autonomia de quatro dias e a cada 24 horas o tambor dá uma volta completa, registando assim duas preia-mares e duas baixa-mares.

Há mais de 120 anos que os seus registos são enviados regularmente para o serviço internacional Permanent Service for Mean Sea Level (Reino Unido), organismo que disponibiliza, numa base de dados à escala mundial, estes e outros registos similares, utilizados em diversos programas científicos. De acordo com os dados obtidos entre 1882 e 2000, a tendência foi para uma subida do nível médio das águas do mar nesta região na ordem dos 1.3 mm/ano, cerca de 15 cm no total. Para além disso, é de salientar que o Marégrafo de Cascais veio a definir a referência do Datum Altimétrico, Zero Cartográfico, para o território continental através do cálculo da média dos níveis médios do mar realizado entre 1882 e 1938, tendo por denominação “Cascais, Helmert 1938”.

A 31 de Dezembro de 1997, foi classificado imovél de interesse público. Na actualidade, encontra-se sob tutela do Instituto Geográfico Português, entidade responsável pela recolha de informação dos valores do nível médio do mar e pela determinação do Datum Altimétrico Nacional. Embora exista, desde 2003, um marégrafo acústico e digital instalado na Marina de Cascais, mais preciso e sofisticado, o antigo marégrafo continua activo, sendo que em finais de 2005 o Instituto Geográfico Português celebrou um protocolo com a Câmara Municipal de Cascais visando a sua conservação e divulgação. Assim, o Marégrafo de Cascais passou a integrar o roteiro histórico desta vila associado à obra cientifica do rei D. Carlos, estando aberto ao público mediante marcação de visita.

Marco Oliveira Borges | 2020

Bibliografia: Marégrafo de Cascais, 1882, [s.l.], Instituto Geográfico Português, Março de 2007; Marégrafo de Cascais. Um Instrumento Centenário de Amédée-Philippe Borrel – 1877, [s.l.], Instituto Geográfico Português, 2009.

[1] Texto adaptado de Marco Oliveira Borges, “Marégrafo de Cascais”, in Dicionário de História Marítima, 2011 (em trânsito para uma nova plataforma online).

Corso e pirataria no cabo da Roca e suas imediações (séculos XVI-XVII)

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Fig. 1 – Vista aérea do cabo da Roca.

Designado na Antiguidade por promontório de Ofiússa[1], Promontorium Lunae e Promontorium Magno[2], o cabo da Roca sempre foi um importante acidente geográfico para a navegação, servindo aos mareantes “de firme demarcação para buscarem a barra de Lisboa”[3]. Situado na área mais ocidental do mundo conhecido, caracterizada pelo forte vento e agitação marítima, este cabo, efectivamente, desde cedo foi o grande ponto de referência da costa de Sintra e da região que abarca, conhecidas pela sua perigosidade e pelos diversos naufrágios que proporcionaram ao longo dos séculos, sendo que a primeira referência documental que se conhece sobre acidentes marítimos no litoral sintrense remete para 1147[4].

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Fig. 2 – Outra vista área do cabo da Roca.
Fonte: https://www.e-cultura.sapo.pt//patrimonio_item/2513

Relativamente às actividades de corso/pirataria, os casos mais antigos que se conhecem estiveram associados a salteadores franceses, entre 1520 e 1537, se bem que alguns não tenham ocorrido propriamente em águas sintrenses, mas umas léguas mais ao largo, aparecendo o cabo da Roca como local de referência nas fontes históricas[5]. No entanto, sabe-se que este local, assim como as suas imediações, inclusive para Sul, envolvendo a área ao largo da enseada de Assentis e até à zona do Alto das Entradas, foram usados por inimigos que esperavam estrategicamente a vinda de navios ricamente carregados[6]. Não se pode esquecer, entre várias rotas que por ali passavam, que esta era uma das áreas de aproximação à costa para os navios que vinham dos Açores, onde se incluíam os que vinham da Índia, do Brasil, de África e de outras partes, pelo que acabava por ter grande procura. É bem provável que, conforme nos referiu Miguel Lacerda, os corsários/piratas fizessem sair gente em terra para, em posições altas, poderem controlar as movimentações da navegação. Além disso, existe uma ribeira que desagua junto ao cabo da Roca, a qual poderá ter sido usada para se obter água. Estas deslocações a terra seriam efectuadas em pequenas embarcações largadas dos navios.

Fig. 11
Fig. 3 – Cabo da Roca, também designado como The Rock of Lisbon.
Fonte: John Christian Schetky, 1861 (NMM).
Fig. 1 –
Fig. 4 – Cabo da Roca com vista parcial para a Enseada de Assentis e imediações.
Fotografia: Marco Oliveira Borges.

Foi nas proximidades da Enseada de Assentis, mais precisamente no Alto das Entradas ou Calhau das Entradas (sítio caracterizado por ser uma área de penhascos e de altura considerável em relação ao mar), que após a Restauração foi edificado o Forte de Nossa Senhora da Roca (ou Forte do Espinhaço)[7], do qual já só subsistem escassos vestígios das suas ruínas (fig. 7). De acordo com as investigações de Carlos Callixto, um inspector anónimo havia visitado o local em Abril de 1751, altura em que o forte já se encontrava bastante arruinado, ficando estimado que a sua reconstrução total orçaria pelos 1.300$00 réis.

À primeira vista, a importância para defender os navios de menor porte que por ali passavam, bem como a própria presença de corsários naquelas imediações e a necessidade de evitar que pairassem por ali, foram  argumentos mais do que válidos para se erguer um forte naquela área. Assim, de acordo com o dito inspector, o Forte de Nossa Senhora da Roca estava “num dos sítios mais importantes daquela marinha pelo muito que ampara dos inimigos as embarcações pequenas que fazem viagem para o Norte”[8].

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Fig. 5 – Forte da Roca numa gravura da segunda metade do século XIX.

Não se sabe por quantas peças de artilharia estava dotado em 1751. Porém, anos mais tarde, entre 1763 e 1764, sabe-se que estava artilhado com 4 peças de ferro: 2 de calibre 9 e 2 de calibre 6[9]. Todavia, os relatórios levados a cabo nas décadas seguintes viriam a tirar a importância estratégica e a utilidade defensiva deste forte. Em 1777, um oficial alegou que o “Forte não he de nenhuma utilidade, e assim só lhe bastão duas peças para servir de vigia. O paiol da pólvora está em bom estado. Para guarnecer esta fortaleza em tempo de guerra, no cazo que seja acommetida por alguma frota inimiga, bastar-lhe-ha ao menos um Cabo e oito artilheiros; presentemente se acha guarnecida por hum Cabo e trez Soldados infantes”[10]. Em 1796, num novo relatório, a importância da fortificação foi considerada “quaze inútil pois não defende porto algum e os seus tiros são tão mergulhantes que não poderão fazer efeito, por estar levantado sobre o plano do mar alguns 300 palmos; e além disto todos os navios se apartão deste Cabo [da Roca] por não darem a Costa”[11]. Por fim, num relatório de 1831 foi referido que não era “possível com o fogo feito da bateria deste Forte incomodar o inimigo, devido à sua grande altura sobre o mar”[12].

Em todo o caso, apesar da curta duração que teve e de se ter verificado a sua inutilidade para a defesa marítima dessa área, a verdade é que a intenção inicial que esteve por detrás da construção do forte estaria mesmo na necessidade de protecção dos navios de menor porte que se abrigavam de corsários naquelas enseadas e imediações. Talvez o poder de fogo que o forte dispunha acabou por ter um efeito mais dissuasor para os navios inimigos que se aventuravam por aquelas paragens do que propriamente operativo.

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Fig. 6 – Planta do forte de Nossa Senhora da Roca (ANTT).

De qualquer forma, tal como nos deixam perceber vários tipos de fontes, não há qualquer dúvida de que se estava perante uma área movimentada e que, apesar de bastante perigosa, era paragem frequente para piratas e corsários. De acordo com Manoel Pimentel, por exemplo, “na ponta desta Roca distante de terra o tiro de hum mosquete está huma baixa em que arrebenta o mar. Por entre a baixa, e a Roca tem ja passado navios pequenos fugindo dos Mouros, encostando-se mais à baixa que à Roca”[13]. Esta seria uma referência à Baixa do Broeiro (situada a cerca de 900 m a Noroeste do cabo da Roca), ou a outro rochedo das imediações, ficando o contínuo testemunho quanto à presença de piratas e de corsários nesta área sintrense, bem como de esta servir de refúgio a navios de menor porte que, liderados por mareantes conhecedores da geografia local, poderiam usar a presença dos rochedos à flor da água como armadilha para se defenderem da agressão de navios maiores. O embate contra os rochedos seria um naufrágio quase certo naquele local, sendo que na Baixa do Broeiro existe um navio naufragado e canhões submersos[14].

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Fig. 7 – Ruínas do Forte de Nossa Senhora da Roca (ou do Espinhaço) com vista para o Cabo da Roca, Enseada de Assentis e imediações (foto: André Manique).

Por fim, há que referir o ataque ao patacho Nossa Senhora da Conceição, do qual se sabe muito pouco. Referida como urca e patacho, havia velejado para a Índia em Abril de 1635, juntamente com as naus Santa Catarina de Ribamar e Nossa Senhora da Saúde. Sob capitania de João da Costa, que também ia como piloto, fez escala em Moçambique, onde largou 50 homens, e surgiu em Goa a 6 de Novembro, tendo iniciado o retorno a Portugal algures em 1637[15].

Uma vez na costa de Sintra, mais concretamente na área próxima do rio das Maçãs e já pelo dia 17 de Dezembro, entrou em combate e foi queimada por 4 navios de corsários muçulmanos[16]. Ainda que a historiografia tenho vindo a seguir as indicações de  Saturnino Monteiro, e nós próprios, em outros estudos, tenhamos colocado a hipótese mais concreta de João da Costa ter sofrido uma emboscada junto à enseada de Assentis[17], a verdade é que não se sabe ao certo o desenrolar dos acontecimentos. No entanto, o navio terá ido ao fundo perto da praia das Maçãs.

Marco Oliveira Borges | 2020

[1] Avieno, Orla Marítima, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica/Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 1992, pp. 22 e 47, n. 33.

[2] Vasco Gil Mantas, A rede viária romana da faixa atlântica entre Lisboa e Braga. Tese de Doutoramento, vol. I, Universidade de Coimbra, 1996, p. 882; idem, “O porto romano de Lisboa”, in G. P. Berlanga e J. P. Ballester (coords.), Puertos fluviales antiguos: ciudad, desarrollo e infraestructuras, Valência, Universidad de Valencia, 2003, p. 15.

[3] Fr. Joseph Pereira de Santa Anna, Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia Nestes Reynos de Portugal, Algarves e seus Domínios, t. II, Lisboa, Officina dos Herdeiros de Antonio Pedrozo Galram, 1751, p. 115.

[4] Altura em que as forças cruzadas vieram auxiliar D. Afonso Henriques na tomada de Lisboa aos muçulmanos (cf. Marco Oliveira Borges, “Em torno da preparação do cerco de Lisboa (1147) e de uma possível estratégia marítima pensada por D. Afonso Henriques”, História. Revista da FLUP, IV: 3 (2013), pp. 126-129).

[5] Idem, “Corso e pirataria na costa de Sintra durante os séculos XVI-XVII”, comunicação apresentada no V Encontro de História de Sintra (Sintra, 28/10/2016); idem, O trajecto final da carreira da Índia na torna-viagem (1500-1640). Problemas à navegação entre os Açores e Lisboa: acções e reacções, Lisboa, Tese de Doutoramento, 2 vols., Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (a aguardar defesa).

[6] Idem, “Portos e ancoradouros do litoral de Sintra-Cascais. Da Antiguidade à Idade Moderna (I)”, in Jornadas do Mar 2014. Mar: uma onda de progresso, Almada, Escola Naval, pp. 162-163; idem, Paisagem cultural marítima de Sintra: uma abordagem histórico-arqueológica”, in Pedro Fidalgo (coord.), Estudos de paisagem, vol. III, Lisboa, Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2017, pp. 243-250.

[7] Carlos Callixto, Fortificações da Praça de Cascais a Ocidente da Vila, sep. da Revista Militar, Lisboa, 1980, pp. 4-5.

[8] Joaquim Boiça, Maria Rombouts de Barros, Margarida de Magalhães Ramalho, As Fortificações Marítimas da Costa de Cascais, Cascais, Quetzal, 2001, p. 212.

[9] Carlos Callixto, op. cit., pp. 5-6.

[10] Joaquim Boiça, Maria Rombouts de Barros, Margarida de Magalhães Ramalho, op. cit., p. 212.

[11] Idem, ibidem, p. 213.

[12] Carlos Callixto, op. cit., p. 8.

[13] Manoel Pimentel, Arte de Navegar, em que se ensinam as regras praticas, e os modos de cartear, e de graduar a balestilha por via de Numeros e muitos problemas úteis à navegação, Lisboa, Officina de Francisco da Silva, 1762, p. 526.

[14] Paulo Alexandre Monteiro, “Canhões na Roca. Análise preliminar de um conjunto submerso de peças de artilharia”, in Al-Madan, sér. II, t. 15, 2007, p. 159; idem, “O património cultural subaquático da costa de Sintra” (Sintra, 02/08/2014).

[15] Relações da carreira da Índia. Navios da carreira da Índia (1497-1653), códice anónimo da British Library. Governadores da Índia, pelo Pe. Manuel Xavier, Lisboa, Publicações Alfa, 1989, pp. 85 e 166-167; Memórias das armadas da Índia. Org., introd. e notas de João C. Reis, Macau, Edições Mar-Oceano, 1990, p. 271; Paulo Guinote, Eduardo Frutuoso e António Lopes, As armadas da Índia, 1497-1835, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2002, p. 169.

[16] BNP, Ms. 26, 153, n.º 129; Relações da carreira […], pp. 166-167; Memorias das armadas […], p. 271.

[17] Saturnino Monteiro, Batalhas e combates da marinha portuguesa, vol. VI, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1995, p. 152; José António Rodrigues Pereira, Grandes batalhas navais portuguesas. Os combates que marcaram a História de Portugal, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2009, pp. 193-195; idem, Grandes naufrágios portugueses, 1194-1991. Acidentes marítimos que marcaram a História de Portugal. Pref. de Adolfo Silveira Martins, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2013, pp. 204-205; Marco Oliveira Borges, “Portos e ancoradouros […]”, p. 162; idem, “Paisagem cultural marítima […]”, pp. 245-247.

Videoclipe o “Mar de Cascais”

 

Aproveitei algum do meu tempo de quarentena para fazer este videoclipe instrumental sobre o “Mar de Cascais”. Para tal, usei imagens de arquivo que fui captando sobretudo ao longo dos últimos dois anos. Nada foi planeado, o cenário de quarentena é que levou a isto, pelo que fiquei limitado ao uso dessas imagens. Gostaria de ter enriquecido o videoclipe com mais imagens em movimento, assim como com outras imagens de actividades desenvolvidas nesta costa, pois há muito mais no mar de Cascais para ver, mas, perante a crise actual, terá de ficar para outras oportunidades.

Nestes tempos difíceis, em que todos devemos ficar em casa para evitar ainda mais a disseminação do vírus Covid-19, aqui fica um cheirinho do mar de Cascais. No videoclipe podemos ver várias perspectivas do mar, as cetárias romanas, pescadores, os apetrechos de pesca, Cascais medieval, os barcos, os acidentes marítimos, Cascais actual, a procissão a Nossa Senhora dos Navegantes, o lixo marítimo, etc.

Em breve, talvez também surja algo no mesmo contexto para a costa de Sintra. Até lá, vejam o vídeo (encurtador.com.br/eipL7), subscrevam o canal no Youtube e activem as notificações para ficarem a par das novidades.

Marco Oliveira Borges | 2020

A verdadeira Ponta do Salmodo (Cascais)

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Fig. 1 – Costa de Cascais com a indicação da Ponta do Salmodo. Fonte: Francisco Maria Pereira da Silva, Plano hydrographico da barra do porto de Lisboa […], [1879?], (BNP).

Diversa cartografia dos séculos XIX-XX mostra que o topónimo “Ponta do Salmodo” está junto ao local em que foi edificado o forte e o farol de Santa Marta, ligeiramente a Sul da praia com o mesmo nome. Isso é visível, por exemplo, no mapa que acompanha este post, destacando-se o topónimo dentro de um rectângulo vermelho.

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Fig. 2 – Farol Museu de Santa Marta. Fotografia: Marco Oliveira Borges.

No entanto, devido a uma imprecisão historiográfica com várias décadas, este topónimo tem vindo a ser erroneamente indicado como correspondendo ao sítio em que foi edificada a torre defensiva que D. João II mandou construir em Cascais (c. 1494). Embora tenhamos vindo a alertar, nos últimos anos, para esta imprecisão e diversos falsos factos históricos que persistem na história local[1], o assunto continua a ser erroneamente indicado ao público, tanto em livros recentes de História de Cascais[2] como no reinaugurado Museu da Vila.

Marco Oliveira Borges | 2020

[1] Cf. Marco Oliveira Borges, “A torre defensiva que D. João II mandou construir em Cascais: novos elementos para o seu estudo”, in História. Revista da FLUP, IV: 5 (2015), p. 94, n. 7; idem, “Controvérsias e falsos factos históricos sobre a torre que D. João II mandou construir em Cascais (c. 1494)”, 2017 [disponível em: https://sintraecascais.wordpress.com/2017/05/28/controversias-e-falsos-factos-historicos-sobre-a-torre-que-d-joao-ii-mandou-construir-em-cascais-c-1494].

[2] Cf., e.g., Cascais. Território, história, memória, 2.ª ed., Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 2015, p. 17.

A navegabilidade do esteiro de Colares (Sintra) e o povoamento local durante o Período Romano

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Fig. 1 – Área costeira entre a Ericeira e Lisboa. A costa de Colares surge ao centro. Fonte: João Teixeira, 1648 (MM).

A área ocidental dos agri olisiponenses que envolve os rios Lizandro (Mafra) e Colares (Sintra)[1], situados a c. 14 km de distância um do outro[2], tem revelado uma riqueza destacada de sítios arqueológicos e diversos achados dispersos pelo território, atestando bem a importância do povoamento romano neste espaço. Estácio da Veiga, numa obra publicada em 1879, já havia chamado a atenção para a existência de diversos dados que indiciavam a presença de antigas povoações com relações familiares próximas da área costeira entre Colares e o concelho de Mafra, mais precisamente até Paço de Ilhas[3]. No entanto, não estabeleceu qualquer ligação com a actividade naval romana nos cursos de água envolventes, apenas com as vias terrestres.

Olhemos o caso de Colares. O rio local, actualmente reduzido à condição de ribeira, situa-se no concelho de Sintra, a Sul do rio Lizandro e um pouco a Norte do promontório de Ofiússa (cabo da Roca)[4]. Nasce a c. 14 km da sua foz[5], a actual praia das Maçãs, sendo que terá sido navegável pelo menos até ao século XII, altura em que a frota de Sigurd terá subido este rio quando atacou Sintra (1109)[6]. O que permitia navegar nesta área, na verdade, era o braço de mar que antigamente inundava o vale de Colares, possivelmente apenas em períodos de preia-mar[7], possibilitando o acesso ao interior do território sintrense e ao porto local, o qual estaria situado na área da várzea, ou seja, a c. 4 km da praia das Maçãs[8]. Contudo, a tradição refere que antigamente o mar chegaria mais para montante, até Galamares[9] (fig. 6), povoação situada a c. 8 km da foz do curso de água em análise[10], sendo esta uma das localidades sintrenses onde foram assinalados vestígios epigráficos romanos[11].

Muito embora seja possível que, à semelhança da hipótese colocada para o caso do rio Lizandro, tenham existido outros focos portuários ao longo do rio de Colares, é preciso ver com algumas reservas a ideia de se ter podido navegar até Galamares[12]. Aliás, somente através de estudos paleoambientais e paleogeográficos se poderá compreender melhor até que ponto o mar inundava o vale de Colares em tempos históricos, permitindo a sua navegabilidade, bem como os fenómenos de assoreamento que progressivamente impossibilitaram a entrada de navios a partir da praia das Maçãs.

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Fig. 2 – Praia das Maçãs com água do mar acumulada no interior, formando uma lagoa (início do século XX).
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Fig. 3 – Mais uma fotografia antiga da praia das Maçãs.

Depois de Maria Teresa Caetano ter recolhido e sistematizado as informações históricas dispersas sobre o rio, esteiro e porto de Colares, aduzindo ainda outros elementos toponímicos diversos e dados de ordem geomorfológica que permitem pensar na navegabilidade daquela área em épocas recuadas[13], estudos posteriores possibilitaram aprofundar questões e trazer novas interpretações, sobretudo para o Período Romano e Período Islâmico[14]. De facto, embora a ideia da existência de um porto interior em Colares remeta-nos para a Idade Média, é muito provável que o esteiro de Colares já fosse navegado durante o Período Romano ou até mesmo antes[15]. Existem importantes evidências arqueológicas romanas dispersas pela área da actual ribeira de Colares e arredores que, uma vez relacionadas com a navegabilidade do esteiro local e com o povoamento nessa área, permitem explorar diversas hipóteses.

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Fig. 4 – Aspecto do sítio arqueológico do Alto da Vigia.

Em pleno século I d.C., altura em que os romanos terão construído um santuário dedicado ao Sol, à Lua e ao Oceano no Alto da Vigia[16], outeiro imediatamente situado a Sul e sobranceiro ao rio colarense, este curso de água teria uma foz ampla por onde entrava o mar, constituindo-se assim como um canal privilegiado de comunicação e de ligação naval com o interior do território[17]. No entanto, é muito provável que o esteiro local já tivesse alguma importância nesse âmbito durante a Idade do Ferro[18] e até mesmo no contexto comercial regional do Bronze Final[19]. Contudo, por agora exploraremos apenas as cronologias romanas.

Evidências que não podem deixar de ser exploradas em ligação com a ideia de navegabilidade do esteiro de Colares, e assim com a entrada de mercadorias através desta área, prendem-se com os materiais arqueológicos detectados na villa romana de Santo André de Almoçageme (fig. 5), nomeadamente os de importação marítima.

Situada actualmente a c. 3 km da foz da ribeira de Colares, esta villa é aquela que, até ao momento, foi identificada como estando na posição mais ocidental do mundo romano. Apesar das primeiras recolhas conhecidas de materiais neste local remontarem a 1905, somente na Primavera de 1985 tiveram início escavações arqueológicas de forma metódica, motivadas pela descoberta ocasional de estruturas in situ no terreno de exploração agrícola voltado a Sul (“Terreno A”)[20] e que abrange uma área aproximada de 1.200 m2. Após três campanhas de escavação arqueológica (1985, 1986 e 1987), concluiu-se estar perante um sector exterior ao espaço residencial da villa, sendo classificável como olaria de cerâmica de construção e que, em determinado momento, terá funcionado como lixeira, acabando assim por reunir materiais dos vários sectores desse habitat[21]. Entre todo o espólio recolhido nas três campanhas, destaca-se o elevado número de fragmentos cerâmicos (c. 87% do total das peças obtidas), sendo significativa a presença de cerâmica fina de importação[22]. Neste enquadramento, foram detectados materiais provenientes de quatro grandes centros exportadores no “Terreno A”:

1) Norte de África. O conjunto das cerâmicas terra sigillata africana (clara A, A/C, C e D) obtidas corresponde a um total de > 95% dos materiais recolhidos (1.378 fragmentos), constituindo esmagadoramente o centro exportador mais representado e quase que detendo a exclusividade da terra sigillata detectada neste sector da villa.

2) Hispânia. Representa apenas < 3% (= 36 fragmentos), percentagem que é dividida entre a terra sigillata hispânica (> 1% = 20 fragmentos) e a terra sigillata hispânica tardia (1% = 16 fragmentos)[23]. Esta última, detectada em poucas estações portuguesas, pelo menos até 1992, era cerâmica fina de importação produzida na região central do Norte da Península Ibérica, tendo “um circuito comercial essencialmente interior e fluvial”[24].

3) Sul da Gallia. Detém somente perto de > 1% (= 19 fragmentos)[25].

4) Mediterrâneo Oriental. Com a presença de Late Roman C Ware, detém < 1% (= 9 fragmentos) de toda a cerâmica fina registada no “Terreno A”[26].

Com base na presença de terra sigillata sud-gálica, Élvio Melim de Sousa remontou a construção e ocupação desta villa ao século II d.C., possivelmente à segunda metade. Contudo, foi ao longo do século III que os índices de ocupação aumentaram consideravelmente, registando o seu apogeu já na segunda metade dessa centúria e mantendo-se constantemente elevados por todo o século IV, conforme deixam perceber as altíssimas percentagens de terra sigillata clara C e D[27]. O conjunto de terra sigillata africana detectada (clara A, A/C, C e D) revela “uma forte e intensa relação entre Olisipo e o Norte de África na segunda metade do séc. III d.C. e durante o séc. IV, à qual não estarão alheios, certamente, a grandeza e a poderosa rede de difusão comercial das fábricas norte-africanas, bem como o relevante papel do porto de Olisipo na recepção dos respectivos produtos e posterior difusão dos mesmos pelo ocidente da Lusitânia, e desde logo pelos seus Agri[28].

Ruínas da villa
Fig. 5 – Aspecto de parte das ruínas da villa romana de Santo André de Almoçageme.

A villa romana de Santo André de Almoçageme acabaria progressivamente por entrar em decadência, mas terá sido abandonada apenas em meados do século V d.C., ou até mesmo um pouco depois, a julgar pela detecção de cerâmica do tipo Late Roman C Ware e de terra sigillata hispânica tardia, sendo estes os materiais cerâmicos de cronologia mais recente que se encontraram até então[29]. Élvio Melim de Sousa acrescentou ainda que os resultados que se viessem a obter noutros sectores da villa, e através da análise de outros materiais, não modificariam substancialmente as conclusões que atrás foram avançadas. Os trabalhos mais recentes parecem confirmar isso mesmo.

Por Almoçageme passaria uma via secundária que fazia ligação com outros povoados da região, incluindo o Mucifal, e que também permitiria o acesso à área portuária local.

Outros dados arqueológicos importantes que podem ajudar a compreender melhor a presença romana em Colares e a fortalecer a ideia de navegabilidade do esteiro local durante o Período Romano estão nas ânforas que foram encontradas nas imediações daquele curso de água. Num estudo publicado há pouco mais de trinta anos, Frederico Coelho Pimenta deu a conhecer a seriação dos materiais anfóricos entrados até finais do primeiro semestre de 1983 no Museu Regional de Sintra, todos provenientes de estações arqueológicas daquele concelho. Esses materiais reportam-se a 37 exemplares de ânforas, abarcando uma cronologia datável entre os séculos II-I a.C. e IV-V d.C., ainda que para o caso de 6 diversos fragmentos de ânfora não tenha sido possível atribuir com segurança tais balizas temporais. Os materiais derivam, na sua esmagadora maioria, de recolhas de superfície, de achados fortuitos ou de antigas escavações. Neste sentido, é de salientar a ausência de dados estratigráficos sobre os materiais recolhidos, exceptuando para uma das ânforas encontradas no Faião, tal como para grande parte dos fragmentos provenientes dos trabalhos realizados nas ruínas de Cabanas (S. Marcos)[30].

Como é sabido, o estudo das ânforas é vital para a compreensão da economia antiga, das dinâmicas e das rotas comerciais, dos ritmos de consumo e dos hábitos alimentares, para além de ser fundamental para a obtenção de indicadores cronológicos[31]. Não sendo possível explorar todos os dados apresentados por Coelho Pimenta, focaremos, por agora, apenas aqueles que tiveram proveniência de locais situados nas imediações da ribeira de Colares.

No caso do Mucifal (fig. 6), aldeia situada na margem direita da referida ribeira, foram descobertos alguns exemplares completos ou pouco fragmentados de ânforas romanas. A descoberta deu-se na década de 1950 durante a exploração de um areal localizado à saída Norte do Mucifal[32]. No total foram descobertos entre 5 a 7 exemplares, embora no seu estudo o referido autor apenas tenha tido oportunidade de apresentar duas das ânforas ali encontradas, as quais deram entrada no Museu Regional de Sintra em 1981. Uma ou duas, na altura da descoberta, tiveram como destino o Museu Nacional de Arqueologia, enquanto que duas ou três dispersaram-se por colecções particulares[33]. As duas ânforas provenientes do Mucifal que Coelho Pimenta teve oportunidade de estudar são do tipo Dressel 14 (fabricadas no Vale do Sado), datáveis dos séculos I-II d.C., e estavam vocacionadas para o transporte de pasta de peixe (garum). Tinham capacidade para 32-33 litros[34].

Embora aparentemente encontradas sem contexto, é muito provável que as ânforas do Mucifal, podendo fazer parte de um número maior do que aquele que foi referido, estivessem associadas ao abastecimento de um habitat que terá existido nesta área. Se bem que não se tenha relacionado, já em Agosto e Setembro de 1905, no âmbito de algumas peças arqueológicas que deram entrada no Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia, também foi referida uma lista de objectos provenientes do Mucifal: 3 mós de pedra, 1 mediano romano de bronze, metade de um cossoiro, 9 machados de pedra, 64 pondera de barro e 1 capitel de calcário[35]. Ao que parece, embora não sendo certo, a descoberta destes materiais terá estado associada à realização de obras públicas, sendo que as evidências detectadas na altura terão levado a uma “exploração archeologica”[36]. Seja como for, estes materiais indiciam claramente a existência de um habitat romano na área do Mucifal (provavelmente uma villa[37]), que, devido à proximidade, poderia estar associado ao porto local. Acrescente-se que o topónimo Mucifal poderá derivar do árabe mussaffa, ou seja, “baixada”, “vale inundado”[38], dando assim sentido à ideia de que toda a área da várzea de Colares e arredores era inundada pelo mar e acessível à navegação.

Fig. 8
Fig. 6 – Vista parcial de Sintra com indicação dos princípais locais em estudo.

Numa outra hipótese, referida oralmente por José Cardim Ribeiro, foi sugerido que as ânforas do Mucifal poderão estar associadas à produção local de preparados piscícolas e à existência de cetárias. À semelhança do que poderá ter acontecido no vale do Lizandro, é possível que nas margens do antigo rio de Colares tenham existido cetárias, até mesmo a jusante do Mucifal. Faltam trabalhos de prospecção arqueológica ao longo desta área antigamente invadida pelo mar, sendo que a densa acumulação de areia e vegetação, estendendo-se a montante da praia das Maçãs, poderá estar a ocultar importantes vestígios arqueológicos.

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Fig. 7 – Vista para a praia das Maçãs.

Por sua vez, no Lugar do Marcador, próximo do Mucifal, uma recolha de superfície feita em 1977 permitiu identificar um fragmento de asa de ânfora como sendo do tipo Dressel 20. Com origem na Bética, algures entre os séculos I-II d.C., este tipo de vasilha/contentor destinava-se ao transporte de azeite[39].

Marco Oliveira Borges | 2020

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[1] Este artigo de divulgação histórica, ainda que sofrendo algumas modificações, foi adaptado de um estudo mais alargado: Borges 2018: 219-255.

[2] Se traçarmos uma linha recta a partir da foz do Lizandro até à foz do rio de Colares.

[3] Veiga 1879: 31 e 51-52.

[4] Avieno 1992: 22 e 47, n. 33. Também conhecido por Promontorium Lunae e Promontorium Magno.

[5] Cf. Boléo 1940: 85-87; Azevedo 1988: 102; Caetano 2000: 18-19.

[6] Caetano 2000: 41; Borges 2012a: 124-125; Borges 2012b: 167-168; Pires 2014: 183; Borges 2015b: 160.

[7] João de Barros, aludindo a um suposto acontecimento algo fantasiado ocorrido no rio de Colares durante o Período Islâmico, no local onde refere que existia um porto interior, dá a entender que esse curso de água só seria navegável durante a preia-mar: “porque a maré a este tempo vazava, ficaram algumas naus tão baixas na mãe do rio, e a terra tão alcantilada, que toda ficou igual com o bordo da nau” (Barros 1953: 78).

[8] Contrariamente a Daveau, 1980: 26; Mattoso, Daveau e Belo 2013: 472, o porto não estava situado na foz da ribeira de Colares, mas, como referimos, na área da várzea. É possível que, enquanto o esteiro de Colares foi navegável, a enseada da praia das Maçãs e imediações tenham chegado a funcionar como ancoradouro, até mesmo em períodos de baixa-mar e em que possivelmente não se poderia penetrar no interior do território, mas essa área só terá sido um ancoradouro activo quando o assoreamento costeiro impediu definitivamente a subida do esteiro de mar.

[9] Cf. Santa Anna 1751: 84 [sic], i. é, 86.

[10] Seguindo o trecho da actual ribeira de Colares.

[11] Juromenha 1989-1990: 198-199; Ribeiro 1982-1983: 158-159.

[12] Contrariamente ao que referimos em Borges 2015b: 158.

[13] Caetano 2000: 13-23, 33-34, 40 e passim.

[14] Borges 2012a: 109-128; Borges 2015b: 152-158; Borges 2017: 17-48; Borges 2018: 219-255.

[15] Cf. Boléo 1940: 40.

[16] A julgar pelos testemunhos epigráficos recolhidos nos últimos anos, terá sido muito provavelmente ainda na primeira metade do século I d.C. (Gonçalves 2016: 7 e 70). Anteriormente, a cronologia de fundação do santuário era apontada para o século II d.C. (Ribeiro 1995-2007: 607 e 609; Ribeiro 2000: 236-237). Na mesma área, inclusive com alguns elementos arquitectónicos romanos, foi construída uma estrutura islâmica que os arqueólogos locais têm indicado ser um ribat, assim como uma vigia que tem sido associada ao reinado de D. Manuel I (Gonçalves 2016: 10; Ribeiro 2016: 140). É possível que as descobertas que Valentim Fernandes observou durante a sua visita ao Alto da Vigia (Agosto de 1505), ou seja, três colunas de pedra de forma quadrada com caracteres romanos encontradas debaixo de terra (Costa 1939: 87-88), tenham sido detectadas devido a obras de construção dessa vigia (Gonçalves 2016: 10; Ribeiro 2016: 140) – que até recentemente foi interpretada como sendo a torre de um facho (Jordão, Mendes e Gonçalves 2009: 3-4 e 17; Gonçalves 2014: 11-12) – ou apenas a trabalhos de reparação/reformulação após uma possível destruição causada pelos sismos que terão ocorrido em 1504-1505. Estes sismos terão provocado estragos na torre defensiva que D. João II mandou construir em Cascais (c. 1494) e nas muralhas medievais da vila, pelo que poderá ter acontecido o mesmo em edificações do litoral de Sintra. Terá sido neste sentido que o monarca ordenou que se reunissem meios para que essas estruturas cascalenses entrassem em reparação, coincidindo assim com a altura das informações escritas por Valentim Fernandes, sendo que o documento que o comprova é de 12 de Agosto de 1505 (cf. Borges 2015a: 106-108). Outros sismos ocorridos em anos posteriores, 1512, 1527, 1528 e 1531 (Borges 2015a: 108), poderão ter levado a estragos na estrutura do Alto da Vigia e a consequentes reparos que tenham implicado reformulações.

[17] Em conjugação com as indicações de Boléo 1940: 40 e passim; Azevedo 1988: 105; Caetano 2000: 14-23; Ribeiro 1995-2007: 607; Ribeiro 2000: 236; Gonçalves 2011: 19; Borges 2012a: 118-119; Borges 2012b: 37-38; Borges 2015b: 152-158.

[18] Cf. Boléo 1940: 40.

[19] Cf. Cardoso e Sousa 2014: 366.

[20] Sousa 1992a: 85-86.

[21] Sousa 1992a: 85-86.

[22] Sousa 1992a: 86.

[23] Sousa 1992a: 90.

[24] Cf. Sousa 1992b: 16.

[25] Sousa 1992a: 90.

[26] Sousa 1992a: 90.

[27] Sousa 1992a: 90.

[28] Sousa 1992a: 90.

[29] Sousa 1992a: 90; Sousa 1992b: 17.

[30] Pimenta 1982-1983: 117-119.

[31] Filipe 2008: 302.

[32] Pimenta 1982-1983: 135-137.

[33] Pimenta 1982-1983: 137.

[34] Pimenta 1982-1983: 135-138 e 145-147. De uma forma geral, as ânforas Dressel 14 eram contentores largamente produzidos nas olarias da Lusitânia, mais concretamente no Algarve, nos vales do rio Tejo e do rio Sado, bem como em Peniche, entre meados do século I e inícios do século III d.C. Destinavam-se ao transporte dos preparados de peixe produzidos na Lusitânia, sendo estes contentores uma criação local que posteriormente seria imitada nos centros de produção bética (Filipe 2008: 321).

[35] Campos 1906: 284, 287 e 289.

[36] Campos 1906: 284 e 287.

[37] Sousa e Sepúlveda 1999: 64.

[38] Alves 2013: 664.

[39] Pimenta 1982-1983: 135 e 145. Para além deste fragmento, o arqueólogo indica outros três fragmentos de exemplares de ânfora Dressel 20 recolhidos no concelho de Sintra: Cabanas-São Marcos, Ermidas-Assafora e S. Miguel de Odrinhas (cf. Pimenta 1982-1983: 122, 130 e 138). Mais recentemente, detectaram-se também destes exemplares no Casal do Rebolo, no Telhal e, novamente, em S. Miguel de Odrinhas.

Sexualidade a bordo dos navios durante os séculos XVI-XVII

Pero Dias
Navios da carreira da Índia de início do século XVI.

Ausentes de terra durante várias semanas ou largos meses, os homens embarcados em navios com diferentes destinos recorriam ao onanismo, à sodomia e, em certos casos, até tinham relações sexuais com mulheres[1]. Contudo, as práticas nem sempre eram consentidas de livre vontade, podendo ser forçadas, até mesmo por corsários e piratas que apresavam navios ou que atacavam povoações costeiras e levavam os seus habitantes. Neste texto olharemos com maior pormenor o caso dos navios e das pessoas que partiam do rio Tejo rumo à Índia e que faziam a viagem de regresso a Lisboa.

Mulheres a bordo dos navios

A presença de mulheres a bordo dos navios foi uma realidade durante a expansão marítima portuguesa, destacando-se, nas fontes históricas, o caso das que partiam para a Índia ou que de lá vinham. Todavia, exceptuando em alguns casos, sobretudo quando capitães ou fidalgos importantes recebiam autorização para levaram as suas esposas e filhas, era proibido o embarque de mulheres, pelo que muitas iam sendo embarcadas ilegalmente.

Se para alguns homens a existência de mulheres a bordo não levantava grandes problemas, para outros era muito inconveniente, sendo que a sua presença no seio de uma tripulação exclusivamente masculina poderia ser vista como a causa dos males e das adversidades que surgiam durante as viagens. Entre mulheres de fidalgos, órfãs, mancebas, aventureiras e prostitutas, as que viajavam solteiras estavam associadas, segundo a correspondência dos padres da época, à prostituição a bordo, à origem de distúrbios, à falta de segurança, à destruição de costumes e à indisciplina, pelo que eram sujeitas a castigos ou largadas nalgum local de escala da viagem. Face a essa presença feminina, considerava-se que os homens faziam mal as suas vigias, revelavam atitudes negligentes e descuidavam-se noutros aspectos de segurança, podendo levar a acidentes a bordo ou até a naufrágios.

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Mapa da carreira da Índia. Viagem anual entre Lisboa e os portos da Índia e vice-versa.

Romances, vida sexual e casamentos

Apesar da forte contestação e perseguição a bordo dos navios da carreira da Índia, movida pelos padres às mulheres, chegaram a ocorrer romances e casamentos em pleno mar. Em 1545, um caso vivido na nau Burgalesa terminou em casamento. A história ligou um cavaleiro que se apaixonou pela filha de um outro passageiro ilustre e que pediu a sua mão em casamento. Porém, a celebração teve lugar apenas em Goa. Contrariamente, em 1562 ocorreram dois casamentos numa nau. O primeiro deles teve o consentimento de todos, por não se registar qualquer impedimento, enquanto que o segundo ocorreu clandestinamente, em virtude de o capitão do navio ter proibido tal união, tendo alegado que havia suspeita de “cunhadio”.  É que inicialmente o homem e a mulher haviam dito que viajavam enquanto cunhados, pelo que num momento posterior não conseguiram provar o contrário.

Como se desenrolava a vida sexual a bordo dos navios que partiam para a Índia transportando, por norma, cerca de 500 homens, poucas mulheres e que, em média, demoravam perto de seis meses a finalizar a viagem? Sobre este tema, como seria de esperar, as fontes não são muito expressivas. Todavia, adivinha-se com facilidade, e comprova-se com alguns dados disponíveis, que os mais ousados tentavam toda a sorte de expedientes para se aproximarem das mulheres embarcadas, se bem que às vezes com consequências trágicas ou então simplesmente caricatas.

Vivendo num espaço marcado pela promiscuidade e em que praticamente não havia privacidade, exceptuando no caso daqueles que tinham compartimentos dos navios reservados, é muito provável que tenham sido frequentes as situações de flagrante sexual e consequente aplicação de castigos, podendo mesmo levar à morte, ainda que muitas também devam ter sido abafadas e nem sempre penalizadas. Em todo o caso, no tempo de Afonso de Albuquerque, Rui Dias, português de boa linhagem oriundo de Alenquer, foi apanhado na câmara da nau do governador com uma escrava. O caso ocorreu na Ásia, tendo Rui Dias, ao que parece, sido encontrado em flagrante sexual com essa mulher. Consequentemente, foi condenado ao enforcamento, sendo que nem o apelo de outros portugueses fez Albuquerque recuar.

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Representação de uma nau numa carta náutica do Atlântico Sul e Oceano Índico (1510).

Olhando para o caso da prostituição a bordo, algo que seria frequente, parece-nos que as mulheres que iam como prostitutas estavam apenas ao alcance de um pequeno grupo de homens onde se incluíam capitães, pilotos, mestres e armadores, a não ser que, por vezes, eles não tivessem conhecimento da sua presença ou permitissem o contacto com homens comuns. Contudo, muitas mulheres que ficaram conotadas com a prostituição poderiam vir apenas como mancebas. Numa carta de 1532, o bispo D. Fernando Vaqueiro queixou-se ao rei de que tinha viajado muito desgostoso para a Índia devido a Vicente Gil (armador da nau Graça) vir publicamente amancebado, consentindo que alguns oficiais viessem na mesma situação. O bispo repreendeu Vicente Gil por várias vezes, até porque o escrivão da nau requereu previamente ao armador que cessassem tais situações, mas o homem não ligou ao que era dito nem às penas que D. João III tinha decretado para quem trouxesse mulheres a bordo.

Embora a prostituição tenda a ser vista como uma actividade desenfreada, a verdade é que seria controlada e levada a cabo em certos locais que aqueles poucos homens tinham acesso. Porém, esta situação das prostitutas estarem apenas disponíveis para um pequeno grupo de homens acabaria por ser um enorme problema e podia gerar conflitos graves, visto que muitos dos que tinham conhecimento da sua presença ou que testemunhavam actos sexuais também sentiam necessidade de satisfazer os seus impulsos. Não conseguindo comprazer o desejo sexual com aquelas que iam embarcadas, os homens que viajavam para o ultramar tinham que esperar até que os navios fizessem escala nalgum local e pudesse haver contacto com alguma mulher, situação que levava meses. Todavia, é possível que devam ter havido momentos de maior liberdade em que as mulheres possam ter estado envolvidas com um número mais elevado de homens e em espaços à vista de muitos outros, se bem que esse fosse um factor para maior desordem a bordo e perigo quanto à navegação, daí também as sucessivas queixas dos missionários.

Seja como for, é preciso atenuar, de facto, o peso da prostituição, visto que nem todas as mulheres eram prostitutas. Por outro lado, e embora numa condição social diferente, sendo esposas de homens importantes, órfãs, etc., outras mulheres poderiam vir a ter problemas com homens durante o percurso. Viajando entre centenas de indivíduos, muitos deles criminosos de delito comum saídos das prisões, aquelas que não estivessem na protecção dos seus maridos ou de homens importantes poderiam ser alvo de um assédio desenfreado. Mesmo as que vinham na companhia dos maridos e que, com o decorrer da viagem, ficavam viúvas, poderiam a partir daí ser um alvo fácil.

Em 1608, na atribulada e trágica viagem da nau Nossa Senhora da Salvação, que naufragou na costa de Mombaça, iam embarcadas três órfãs do recolhimento do castelo de Lisboa, estando confiadas a uma passageira de consideração. O capitão da nau, D. Luís de Sousa, andou desinquietando as órfãs, tanto a bordo como em Mombaça, onde a tripulação se acolheu depois do naufrágio. Acabou por ser ordenada uma averiguação, a propósito do comportamento do impulsivo capitão e de este pretender devassar o recato das jovens passageiras, uma das quais acabou por morrer durante a viagem. A bordo da nau seguia igualmente um embaixador do rei da Pérsia, o qual foi assaltado pelos fidalgos, que tomaram o seu dinheiro à força. Por estes incidentes, pelo naufrágio da nau e possivelmente por outros que ficaram por conhecer, o capitão D. Luís de Sousa, posteriormente, andou homiziado.

Tentando procurar e entrar em contacto com mulheres clandestinas ou que vinham isoladas e sob protecção, alguns homens poderiam embocar em situações bastante caricatas e ser alvo do registo escrito dos missionários. Veja-se, por exemplo, o caso de um homem morto por ferimentos de um tubarão depois de se ter atirado ao rio para tentar ver melhor as mulheres que seguiam a bordo de uma nau da carreira da Índia:

“Morreram muitos [durante a viagem para a Índia] entre os quais foi um mancebo que, andando nadando no rio, e segundo alguns diziam era para ir ver umas mulheres que estavam em a varanda do leme [do navio], e andando assim nadando veio um tubarão que lhe levou uma coxa da perna que lhe não deixou mais que o osso e assim um pedaço de um braço. Acudiram-lhe logo e o trouxeram para a terra, onde o  enterraram e queira Nosso Senhor que estivesse confessado, ou ao menos com contrição dos seus pecados e esperança de misericórdiaa hora da sua morte. Aqui verão, caríssimos irmãos quanto bem é estar em graça com Nosso Senhor e aparelhados para todas as horas”[2].

O caso remonta a 1562, altura em que se fazia escala em Moçambique. É muito provável que estas mulheres que o homem tentava ver fossem órfãs, moças que, geralmente, iam ao cuidado de senhoras da nobreza. Contudo, isso não impedia que a sua presença suscitasse grande curiosidade entre as tripulações e demais passageiros. De modo a evitar situações problemáticas, estas mulheres viajavam fechadas num camarote da nau, normalmente à popa, mas com acesso a uma varanda.

Numa deslocação entre Lisboa e os portos asiáticos e vice-versa, se houvessem mulheres grávidas a bordo ou que engravidassem já no mar, o nascimento poderia ocorrer durante a viagem. Note-se que normalmente este tipo de viagens duravam 6 meses, mas nalguns casos, se fosse necessário invernar, era possível que se atingisse um ano e meio. Em 1610, de acordo com o padre francês Francisco Pyrard de Laval, durante a torna-viagem e antes da chegada ao cabo da Boa Esperança, uma dama mestiça oriunda da Índia, mulher de um português, muito bela e com cerca de trinta anos, entrou em trabalho de parto em pleno mar. Acabou por ter a criança, mas ambas morreram, tendo sido lançadas ao mar.

Onanismo e  sodomia

No meio de centenas de homens embarcados, e face a restrições de contactos com as poucas mulheres presentes ou até mesmo à sua ausência, o onanismo e a sodomia acabavam por ser frequentes, havendo dados sobre esta última prática e execuções punitivas a bordo. Em 1548, numa carta dirigida ao rei, D. João Henriques, capitão-mor de uma armada da carreira da Índia, deu a conhecer que recebeu uma denúncia de sodomia, actividade que era severamente punida. O caso punha em acção Diogo Ramires, castelhano que cometera esse pecado com dois criados de D. Manuel Telo. Consequentemente, “por ser coisa tão abominável ante Deus”, e de modo a cumprir a lei e ordenação régia, D. João Henriques tomou parecer com os fidalgos, cavaleiros, padres e oficiais da nau, acabando por condenar o sodomita castelhano à morte. Diogo Ramires chegou a confessar a sua acção, sendo assim executado como “bom cristão”.

Por seu turno, os rapazes mais novos que viajavam nas naus também chegavam a ser um alvo sexual dos homens mais velhos. Numa carta régia de 1620, dirigida ao vice-rei da Índia, o monarca referia que fora informado de que nas naus que partiam de Lisboa iam embarcados muitos meninos que os soldados, à chegada à Índia, logo levavam para as suas casas, abusando deles. Como medida punitiva, o rei determinou que se deveria investigar o assunto e proceder contra os soldados conforme o que estava disposto nas leis e instruções régias.

A violência dos corsários

Entre as situações de violência de corsários franceses contra a navegação portuguesa, há um caso conhecido em que as mulheres que vinham embarcadas foram violadas. O acontecimento teve lugar no início de Junho de 1524, quando uma caravela portuguesa que se deslocava na costa de Lagos foi atacada por franceses. Ao que parece, a situação decorreu como represália por se terem prendido, em Lisboa e em Lagos, alguns franceses que haviam sido capturados por alegada associação a actos de corso. Nesse mesmo ano, provavelmente no seguimento de acções de represália e não muito longe da barra do Tejo, corsários franceses assaltaram outra caravela portuguesa, castrando os homens que vinham nela.

Marco Oliveira Borges | 2019

[1] Este artigo foi escrito para ser publicado na revista Visão História, mas, na versão que veio a ser publicada, sofreu modificações sem o nosso consentimento – inclusive no titulo, que foi completamente alterado –, sendo que a última frase não é de nossa autoria. Além disso, no final do texto surgem imprecisões sobre a nossa pertença institucional e percurso académico (cf. Marco Oliveira BORGES, “Como era a bordo das naus?”, in Visão História, n.º 54, 2019, pp. 48-50). Face ao exposto, decidimos disponibilizar aqui a versão original do artigo. Importa ainda referir que neste texto retomamos muitas das informações já apresentadas num outro estudo, no qual são indicadas as fontes e a bibliografia usada: Marco Oliveira BORGES, “Aspetos do quotidiano e vivência feminina nos navios da carreira da Índia durante o século XVI: primeiras mulheres, buscas e sexualidade a bordo”, in Revista Portuguesa de História, t. 47, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, pp. 195-214. Outros dados, fontes e estudos podem ser igualmente consultados em Marco Oliveira BORGES, O trajecto final da carreira da Índia na torna-viagem (1500-1640). Problemas à navegação entre os Açores e Lisboa: acções e reacções. Tese de Doutoramento, 2 vols., Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (a aguardar defesa).

[2] Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente. Colig. e anot. por António da Silva Rego, vol. IX, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1953, p. 72.

 

A aportagem de Cristóvão Colombo em Cascais (4 de Março de 1493)

 

Fig. 2
Fig. 1 – Pormenor da vila e porto de Cascais presente na gravura publicada por Braun e Hogenberg, Civitates Orbis Terrarum, vol. I, 1572 (ICGC).

Embora durante muito tempo a historiografia tenha indicado, de uma forma geral, que o Restelo foi a sua primeira escala continental[1], Cristóvão Colombo (ou Colon) aportou em Cascais (1493) no decorrer da torna-viagem da primeira expedição feita ao serviço dos Reis Católicos[2]. Regressando das suas descobertas a Ocidente, Colombo partiu da ilha do Haiti na caravela Niña e em companhia da Pinta – que foi ter a Baiona –, seguindo em diagonal até à latitude dos Açores, no intuito de aproveitar os ventos favoráveis de Oeste. Depois de vários dias no mar daquele arquipélago, onde veio a ter problemas com os locais, nomeadamente em Santa Maria, Colombo largou de vez a 24 de Fevereiro.

A 3 de Março, já depois do pôr-do-sol e após sessenta milhas feitas, a Niña apanhou um turbilhão tão violento que arrancou todas as velas da caravela, colocando a tripulação em grande perigo. Daí em diante, seguiu “com os mastros nus” e sob forte tempestade, até que, finalmente, surgiram sinais de que se estava próximo de terra. Foi então que, “na falta de outro meio para navegar um pouco e apesar do grande perigo que havia de aguentar o mar”, Colombo mandou içar o papa-figos[3] do grande mastro “para ver se havia um porto ou qualquer outro lugar onde pudesse abrigar-se”[4].

Pela latitude a que Colombo se dirigia para a costa portuguesa, dois portos ficavam mais próximos: Ericeira e Cascais. Como o primeiro estava bastante exposto a temporais, era Cascais que oferecia um abrigo mais seguro. Este porto destacava-se no apoio à navegação e como refugio habitual de navios que pretendiam fugir a tempestades, funcionando ainda como anteporto oceânico de Lisboa, sendo que a entrada no Tejo não era feita de forma directa, esperando-se no porto cascalense por maré e vento favorável para se entrar na barra. Era também em Cascais que residiam os pilotos práticos que conheciam bem as condicionantes geográficas desta área e que ajudavam a colocar os navios pelos perigosos canais de navegação do Tejo, tentando evitar encalhes e naufrágios. Procurando um porto de abrigo, decerto que Colombo já teria a ideia definida de se refugiar em Cascais, local de apoio a toda a navegação com destino a Lisboa e também de auxílio frequente aos navios que circulavam entre o Mediterrâneo e o Norte da Europa[5].

Niña
Fig. 2 – “Réplica” da Niña. Caravela que fez parte da armada de 3 navios que integrou a 1.ª viagem de Cristóvão Colombo ao serviço de Castela.
Rota 1493
Fig. 3 – Rotas de ida e volta seguidas por Cristóvão Colombo nas duas primeiras viagens ao serviço de Castela. Fonte: Jesus Varela Marcos e M.ª Montserrat León Guerrero, El Itinerario de Cristóbal Colón (1451-1506), Valladolid, Diputacíón de Valladolid et al., 2003.

A 4 de Março, ainda sob forte temporal, a Niña fez a aproximação à costa portuguesa junto ao cabo da Roca, tendo aportado em Cascais, onde esteve algumas horas:

“Ao amanhecer, o almirante reconheceu a terra. Era o rochedo de Sintra que fica muito perto do rio de Lisboa, no qual decidiu entrar porque não podia fazer outra coisa, tão terrível era a tempestade que se abatia sobre a cidade de Cascais, situada na embocadura. Os da cidade, disse, ficaram toda essa tarde em oração por eles, e, quando em seguida ficaram no porto, toda a gente veio vê-los, maravilhados por terem escapado. Foi assim que à terceira hora o almirante passou para o Restelo, no interior do rio de Lisboa, onde a gente do mar lhe disse que nunca se tivera um Inverno tão fértil em tempestades, que vinte e cinco navios se tinham perdido nas Flandres e que outros estavam lá há quatro meses sem poderem sair”[6].

Conforme se pode ver pelo trecho citado, antes de demandar a barra do Tejo e chegar ao Restelo, a Niña – pilotada por Sancho Ruíz de Gama e Pedro Alonso Niño – teve de se abrigar em Cascais. Contrariamente ao que por vezes é dito[7], Cristóvão Colombo e as outras pessoas que vinham a bordo da Niña, ao chegarem a Cascais, não terão visto a torre defensiva que D. João II mandou construir naquele porto, pois essa só terá começado a ser edificada no ano seguinte[8].

Depois de passada a tempestade e de feitos os devidos consertos na aparelhagem da caravela, em vez rumar a Castela, onde se tinha organizado a expedição, a Niña veio, horas mais tarde, a entrar no Tejo, acabando por ancorar no Restelo. Poucos dias depois deu-se o célebre encontro entre Colombo e D. João II em Vale do Paraíso, localidade situada a nove léguas de Lisboa.

O que se torna mais problemático é tentar saber se Colombo, ao dirigir-se a Cascais e, posteriormente ao Restelo, ia apenas com a intenção de procurar abrigo ou também de falar pessoalmente com D. João II, como veio a acontecer. Recorde-se que Colombo vinha de uma primeira expedição marítima ao serviço dos Reis Católicos. Seja como for, qualquer um dos motivos indicados colocava Colombo na rota de Cascais.

Marco Oliveira Borges | 2019

[1] Cf., e.g., Damião PERES, História dos Descobrimentos Portugueses, 4.ª ed., Porto, Vertente, 1992, p. 271; Luís Adão da FONSECA, D. João II, [Lisboa], Círculo de Leitores, 2005, p. 120.

[2] Este pequeno artigo de divulgação histórica, ainda que tendo sido sujeito a pequenas modificações, foi retirado de um estudo mais alargado: Marco Oliveira BORGES, O porto de Cascais durante a Expansão Quatrocentista. Apoio à navegação e defesa costeira. Dissertação de Mestrado em História Marítima, Universidade de Lisboa, 2012, pp. 74-76. Voltaremos à passagem de Cristóvão Colombo por Cascais num outro lugar.

[3] Sobre os diferentes tipos de papa-figos, cf. Humberto LEITÃO, “Papafigos”, in Dicionário da Linguagem de Marinha Antiga e Actual. Com a colab. do Comandante José Vicente Lopes, 2.ª ed., Lisboa, Centro de Estudos Históricos Ultramarinos da Junta de Investigações Cientificas do Ultramar, 1974, p. 392; António Marques ESPARTEIRO, “Papa-figos”, in Dicionário Ilustrado de Marinha, 2.ª ed., rev. e actualizada pelo Comandante J. Martins e Silva, Lisboa, Clássica Editora, 2001, p. 409. O papa-figos de correr, por exemplo, era uma vela de menor superfície que as usuais, sendo usada especialmente em casos de mau tempo.

[4] Cristóvão COLOMBO, A Descoberta da América. Diário de bordo da 1.ª viagem, 1492-1493. Pref. de Luís de Albuquerque, Mem Martins, Publicações Europa América, [1990], p. 184.

[5] Sobre este assunto, cf. Marco Oliveira BORGES, op. cit., pp. 61-81, 102-113 e passim.

[6] Cristóvão COLOMBO, op. cit., p. 184.

[7] Carlos CALADO, “Cascais, abrigo de Cristóvão Colon”, in Arquivo de Cascais. História, Memória, Património, 14 (2015), p. 35.

[8] Marco Oliveira BORGES, “A torre defensiva que D. João II mandou construir em Cascais: novos elementos para o seu estudo”, in História. Revista da FLUP, IV: 5 (2015), pp. 104-106 e 114. Em breve, na nossa dissertação de Doutoramento, iremos apresentar novos dados sobre a torre de Cascais.

Uma possível fortificação muçulmana no Monte Suímo (Sintra)

Fig. 7
Fig. 1 – Mapa do al-Ândalus e parte do Norte de África, c. 868 (simplificado).

Entre os séculos VIII e XII, o território dos actuais concelhos de Sintra e Cascais terá tido um papel importante no sistema de defesa costeira do Garb al-Ândalus[1]. Integrado na área ocidental marítima do distrito (kura) de Lisboa, este espaço estratégico, na rota das navegações para al-Ushbuna e para o mar Mediterrâneo, estaria dotado de estruturas defensivas e de alerta envolvidas num sistema que começaria a ganhar forma algures a partir do litoral de Sintra, ao mesmo tempo que os portos e ancoradouros locais permitiam apoiar as actividades marítimas e militares.

Terá sido o desencadear dos ataques vikings ao Ocidente Ibérico, com início em 844, alcançando Lisboa e chegando a estender-se ao mar Mediterrâneo, que despoletou uma maior atenção defensiva por parte das autoridades muçulmanas, reforçando-se o aparelho militar e o sistema de defesa costeira ao longo do litoral atlântico e do mar Interior. Sabe-se que o governo omíada reforçou a estrutura defensiva com a edificação de torres de vigia (buruj, pl. de burj) e a utilização de sítios elevados e estratégicos que funcionavam como atalaias[2] (tali’a, pl. de at-talai’a), bem como de diversas fortificações onde se incluíam castelos (husun, pl. de hisn) e conventos-fortificados (rubut, pl. de ribat). Acresce que foram tomadas medidas para a formação de uma marinha de guerra ampla e bem provida de projécteis incendiários, tendo-se recrutado marinheiros e mercenários de várias partes, alguns deles especializados no lançamento de fogo-grego[3]. Se os acontecimentos de 844 também levaram, poucos anos depois, à edificação de estaleiros de construção naval em Sevilha, é muito provável que o mesmo tenha ocorrido noutros pontos do al-Ândalus, inclusive na área ocidental.

mapa
Fig. 2 – Complexo defensivo no Baixo Vale do Tejo durante o Período Islâmico.

Para além das estruturas que estariam dispostas ao longo da costa de Sintra e Cascais, existiriam postos militares edificados mais para o interior. Al-Himyari (século XIII), para a região entre Lisboa e Sintra, refere a existência de uma montanha usada antigamente como reduto fortificado[4], o que poderia, à partida, sugerir algum local elevado no actual concelho de Cascais ou nas suas imediações. No entanto, em 1985, José Manuel Vargas colocou a hipótese de o local em causa ser o Monte Suímo, estando situado a Norte de Belas[5]. Este sítio costuma ser identificado como sendo Ossumo[6], uma das vilas do senhorio de Lisboa referidas por al-Razi (século X)[7].

Situado na serra da Carregueira, numa área em que hoje em dia se encontra uma instalação militar do Exército Português, o Monte Suímo é uma colina de forma arredondada de 291 m de altura, constituindo o maior relevo do conjunto de elevações desta serra. A sua localização privilegiada permite obter uma visão de quase 360º dos arredores, com vistas para Lisboa, estuário do Tejo, para toda a Península de Setúbal até à serra da Arrábida e para o Atlântico, sendo apenas interrompidas pelo perfil dominante da serra de Sintra[8].

O Monte Suímo é famoso pelas suas pedras, sobretudo jacintos, granadas e, em menor escala, esmeraldas. As referências a este local e à exploração do mesmo remontarão ao século I d.C., altura em que Plínio, o Velho, referiu que no território de Lisboa se recolhiam carbúnculos e gemas de intenso brilho e de grande qualidade. Outros autores romanos viriam a mencionar este local, denominando-o por Mons Summus, “monte máximo”[9].

Mina do Suimo, Belas. 1863 - GC
Fig. 3 – Representação da mina de Monte Suímo. Fonte: Archivo Pitoresco, 1863.

Durante o Período Islâmico alguns autores voltaram a aludir ao Munt Shiyun ou Monte Sião, bem como à exploração de minas e à existência de pedras preciosas num monte (ou montanha) das proximidades de Lisboa[10], embora sem ligarem as ditas pedras ao referido local. Em relação ao reduto fortificado atrás referido, parece que apenas al-Himyari – decerto baseado em al-Bakri, discípulo de al-Udhri – refere a sua existência. Neste sentido, a informação sobre o local fortificado já viria do século XI.

Se tivermos em conta a forte possibilidade de que esse reduto fortificado estaria mesmo edificado no Monte Suímo, até pela situação geográfica atrás descrita, capacidade de visualização e de comunicação a longa distância com outros locais importantes integrados na óptica do sistema defensivo que temos vindo a referir, quando é que teria sido erguido? Qual a sua tipologia? Até quando terá estado em funcionamento? Embora ainda não existam possíveis repostas para estas questões, observações efectuadas por Vítor Rafael Sousa e Rui Oliveira no Monte Suímo permitiram verificar a existência de fragmentos de telhas e outras cerâmicas cronologicamente enquadráveis no período alto-medieval/islâmico, bem como a existência de estruturas que poderão corresponder às ruínas de uma antiga fortificação (figs. 4 e 5)[11]. Porém, são necessários trabalhos arqueológicos para que se possa compreender realmente qual a realidade estrutural que subsistiu naquele local e se, de facto, os vestígios dizem respeito a uma antiga fortificação muçulmana.

Fig. 5
Fig. 4 – Ruínas de estruturas pétreas observáveis no Monte Suímo (foto: Vítor Rafael Sousa).
Fig. 6
Fig. 5 – Fragmentos de telhas alto-medievais/islâmicas no Monte Suímo (foto: Vítor Rafael Sousa).

Marco Oliveira Borges | 2019

[1] Este pequeno artigo de divulgação histórica, ainda que tendo sido sujeito a ligeiras modificações, foi adaptado de estudos mais alargados: Marco Oliveira BORGES, “A defesa costeira no distrito de Lisboa durante o período islâmico. I – A área a ocidente da cidade de Lisboa”, in João Luís Inglês Fontes et al. (coords.), Lisboa Medieval: Gentes, Espaços e Poderes. Textos seleccionados do III Colóquio Internacional “A Nova Lisboa Medieval” (Lisboa, FCSH/UNL, 20-22 de Novembro de 2013), Lisboa, Instituto de Estudos Medievais, 2017, pp. 67-104; idem, “Aspectos de militarização e defesa costeira no Garb al-Ândalus: o caso de Cascais”, in Revista Universitaria de Historia Militar, 6:11 (2017), pp. 172-196.

[2] As atalaias podiam ser estruturas arquitectónicas (normalmente turriformes) ou simples locais destacados na paisagem de onde se exercia a vigilância e alertava para a chegada de inimigos (cf. Mário BARROCA, “Atalaia”, in Jorge de Alarcão e Mário Barroca (coord.), Dicionário de Arqueologia Portuguesa, Porto, Figueirinhas, 2012, pp. 48-49).

[3] Sobre todas estas medidas, cf. ABENALCOTÍA, Historia de la conquista de España de Abenalcotía el Cordobés. Seguida de fragmentos históricos de Abencotaiba, etc., trad. de Ribera, Don Julián, Madrid, Tipografía de la Revista de Archivos, 1926, p. 53; António Borges COELHO, Portugal na Espanha Árabe, 3.ª ed. rev., Lisboa, Editorial Caminho, 2008, pp. 169 e 173; Jorge LIROLA DELGADO, El poder naval de al-Andalus en la época del califato omeya (siglo IV hégira/X era cristiana). Tesis doctoral, vol. I., Universidad de Granada, 1991, pp. 122-125; Christophe PICARD, La mer et les Musulmans d’occident au Moyen Age (VIIIe – XIIIe siècle), Paris, Presses Universitaires de France, 1997, pp. 148 e 156; Helena CATARINO, “Breve sinopse sobre topónimos Arrábida na costa portuguesa”, in Francisco Franco Sánchez (ed.), La Rábita en el Islam. Estudios Interdisciplinares. Congressos Internacionals de Sant Carles de la Ràpita (1989, 1997), Sant Carles de la Ràpita/Alacant, Ajuntament de Sant Carles de la Ràpita/Universitat d’Alacant, 2004, pp. 263-267; Fernando Branco CORREIA, “A acção do poder político nas actividades portuárias e na navegação no ocidente islâmico. Alguns tópicos”, in Jesús Angel Solórzano Telechea e Mário Viana (eds.), Economia e Instituições na Idade Média. Novas Abordagens, Ponta Delgada, Centro de Estudos Gaspar Frutuoso, 2013, pp. 14-38.

[4] AL-HIMYARI, Kitab arRawd alMi’tar, Valencia, Anubar, 1963, p. 17; António Borges COELHO, op. cit., p. 47.

[5] Cf. José Manuel VARGAS, “Presença árabe em terras de Sintra”, in Jornal Agualva-Cacém, n.º 1, 1985, p. 10; Eva-Maria VON KEMNITZ, “Sintra islâmica – reminiscências históricas, literárias e artísticas”, in Contributos para a História Medieval de Sintra. Actas do I Curso de Sintra (28 de Março – 2 de Junho de 2007), Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 2008, p. 59, n. 12.

[6] Cf. Gustavo MARQUES, Inscrição românica de Odivelas, Odivelas, Junta de Freguesia de Odivelas, 1986, p. 14; Sérgio Luís CARVALHO, “Acerca das minas do Suímo (Belas), sua identificação com Ossumo e respectiva exploração pela Coroa na Idade Média”, in Arqueologia do Estado. 1.as Jornadas sobre formas de organização e exercício dos poderes na Europa do Sul, séculos XIII-XVIII, Lisboa, História e Crítica, 1988, pp. 465-473; José Cardim Ribeiro, “Felicitas Ivlia Olisipo. Algumas considerações em torno do catálogo Lisboa Subterrânea”, sep. de Al-Madan, II: 3 (1994), p. 82. Outras possíveis localizações foram aduzidas por Adel SIDARUS e António REI, “Lisboa e seu termo segundo os geografos árabes”, in Arqueologia Medieval, 7 (2001), pp. 41-42, 48 e 54; António REI, “Ocupação humana no alfoz de Lisboa durante o período islâmico (714‐1147)”, in A Nova Lisboa Medieval. Actas do I Encontro, Lisboa, Edições Colibri, 2001, p. 31; Jorge de Alarcão, “Notas de Arqueologia, epigrafia e toponímia – V”, in Revista Portuguesa de Arqueologia, Lisboa, 11: 1 (2008), pp. 115-116; André de OLIVEIRA-LEITÃO, O Povoamento no Baixo Vale do Tejo: entre a territorialização e a militarização (meados do século IXinício do século XIV). Dissertação de Mestrado, Universidade de Lisboa, 2011, p. 31; António REI, O Gharb al-Andalus al-Aqsa na Geografia Arabe (seculos III h. / IX d.C. – XI h. / XVII d.C.), Lisboa, Instituto de Estudos Medievais, 2012, pp. 149 e 192.

[7] António Borges COELHO, op. cit., p. 37.

[8] M. CACHÃO, P. E. FONSECA, R. Galopim de CARVALHO, C. Neto de CARVALHO, R. OLIVEIRA, M. M. FONSECA e J. MATA, “A mina de granadas do Monte Suímo: de Plínio-o-Velho e Paul Choffat à actualidade”, in E-Terra. Revista Electrónica de Ciências da Terra, 18: 20 (2010), p. 2.

[9] Cf. Sérgio Luís CARVALHO, op. cit., pp. 466-468.

[10] Cf. António REI, op. cit., pp. 123, 125, 144, 149 e 192.

[11] Agradecemos a Rui Oliveira e a Vítor Rafael Sousa pelas indicações e contributo fotográfico.

O porto de Cascais em finais da Idade Média: caracterização e funcionalidade

Fig. 2
Fig. 1 – Porto e vila de Cascais numa gravura publicada por Georg Braun
e Frans Hogenberg, Civitates Orbis Terrarum, vol. I, 1572 (ICGC).

“Costeando dali para o interior, na direcção do norte, depara-se com a fortaleza de Cascais, onde os navios de carga, ancorados em porto amplo e abrigado, esperam a maré e a monção”.

Damião de Góis, Descrição da cidade de Lisboa, 1554.

 

Situando-se a uma distância de apenas 5 léguas da cidade de Lisboa, e tendo o último porto marítimo antes da entrada na barra do Tejo, desde sempre que Cascais esteve na rota das navegações com destino àquele centro urbano[1]. Acresce que esta área apresenta condicionantes geográficas muito específicas que dificultavam seriamente a navegação e a entrada naval no Tejo – que não era feita a tempo inteiro –, factores que faziam com que o porto local acolhesse todo o movimento marítimo com destino à capital portuguesa, sendo a última escala de apoio[2], tal como abrigava e abastecia embarcações em trânsito entre o Mediterrâneo e o Norte da Europa. Assim, o espaço portuário cascalense, ganhando forma numa baía voltada a Sul e com uma larga extensão de ancoragem, era como que um anteporto de Lisboa, sendo ainda caracterizado por ter os pilotos conhecedores das particularidades da navegação neste trecho costeiro e cujo auxílio era fundamental para se tentar evitar possíveis naufrágios nos perigosos canais da barra[3].

Fig. 1
Fig. 2 – Enquadramento geográfico da área observada. Fonte: Jorge Freire, À vista da costa: a paisagem cultural marítima de Cascais, Universidade Nova de Lisboa, 2012, p. 22.

“Porto”[4], marítimo ou fluvial, de origem natural ou resultado da acção humana, é um termo que acarreta uma multiplicidade de significados como, por exemplo, ancoradouro, local de abrigo e de escala de navios, de apoio logístico, de carga e descarga de mercadorias, etc.[5]. Neste sentido, existem portos com funções de apoio à navegação, comerciais, pesqueiras e militares, sendo que muitos englobam todas estas características e ainda outras, permitindo variadas possibilidades de análise ao investigador[6]. Face ao exposto, os portos são autênticos locais de novidade e de troca de ideias, entrepostos económicos, pontos estratégicos que importa organizar, proteger e controlar[7]. Para além disso, e como espaços sujeitos a transformações de ordem geomorfológica e antrópica, os portos são locais em constante transformação natural e tecnológica que se impõe compreender.

Seria lícito pensar na existência de um cais de atracagem em Cascais que facilitasse a entrada e a saída de pessoas, bem como a carga e a descarga de mercadorias e de animais dos navios, mas a verdade é que as fontes históricas e a arqueologia nada revelaram sobre isso. De facto, são inúmeras as descrições que aludem a Cascais como ancoradouro ou fundeadouro[8], mas nunca mostram a existência de estruturas de atracagem no seu porto. As próprias plantas desta vila de finais do século XVI[9], que permitem corrigir e superar omissões na célebre gravura de Georg Braun e Franz Hogenberg (1572), cujo arquétipo poderá remontar a finais do século XV ou a inícios do seguinte[10], não indicam qualquer estrutura junto à praia da Ribeira, que era o foco portuário.

A ausência de referências a tais estruturas – em pedra ou até mesmo em madeira – poderia parecer estranha, uma vez que Cascais era, não só, um porto de abrigo, pesqueiro, comercial e militar, mas também porque acolhia todo o movimento marítimo destinado a Lisboa – incluindo a carreira da Índia[11] –, tornando-o bastante activo no apoio aos navios em trânsito, pelo que seria de pensar que necessitasse de estruturas desse tipo tal como surgiram noutros portos reinóis. No entanto, como veremos adiante, essa condição não era uma regra, uma obrigatoriedade nem um factor decisivo para se definir um sítio enquanto espaço portuário.

Embora fosse de considerar que nos séculos XV-XVI, face ao crescimento do tráfego comercial e a outras necessidades resultantes do envolvimento de Portugal na empresa expansionista, os monarcas tivessem sido obrigados a adoptar uma política de desenvolvimento portuário que contemplasse a melhoraria dos acessos aos portos – tanto marítimos como fluviais –, a construção ou melhoramento das infra-estruturas de apoio à navegação, a substituição das que se tornavam rudimentares, etc.[12], a verdade é que durante este período, pelo menos no que diz respeito ao Noroeste português entre Caminha e Aveiro, este processo não foi tão rápido como seria de supor[13]. Acresce que a maioria dos trabalhos técnicos efectuados nos portos dessa área geográfica foram financiados e executados pelas autoridades locais.

Para o caso de Cascais, não se conhece qualquer iniciativa régia que indique a construção de estruturas materiais de apoio à navegação, nem mesmo de diligências levadas a cabo pelos senhores locais, por pescadores ou pelas confrarias marítimas. O facto de a vila de Cascais ter sido senhoriada por algumas figuras históricas importantes poderia levar a pensar que, para usufruírem desse espaço e poderem tirar um melhor proveito económico, tivessem mandado melhorar as infra-estruturas locais para facilitar a carga e a descarga de mercadorias vindas do hinterland, do umland[14] e do exterior. Sabe-se que D. Álvaro de Castro, senhor de Cascais entre 1440 e 1471, teve alguns navios com importantes ligações marítimas. São conhecidas pelo menos duas naus (Bretoa e Ingresa) de que era proprietário e que foram fretadas para o comércio com o Norte da Europa entre 1441-1443, tal como uma barca que levava mantimentos e soldados para Ceuta na década de 1450[15], bem como uma caravela que chegou a estar envolvida numa viagem de exploração pela costa ocidental africana em 1445[16]. No passado chegou a ser dado como garantido que Cascais havia lucrado muito através das transacções comerciais de D. Álvaro de Castro com Ceuta, mas a verdade é que essas pretensas ligações diriam apenas respeito ao frete dos navios deste fidalgo, que partiam de Lisboa carregados com mercadorias de diversas origens, não havendo ligações mercantis específicas entre os dois locais. No entanto, é possível que o porto cascalense pudesse ter servido de base aos seus navios e de apoio aos negócios, que poderão ter sido mais diversificados e envolvido mais embarcações[17].

Se algumas medidas foram tomadas pelos senhores de Cascais ou pela Coroa, no que respeita a infra-estruturas portuárias ou a qualquer outro tipo de intervenção no território adjacente que visasse melhorar aquele espaço para apoio à navegação e acostagem de navios, a verdade é que as fontes nada referem quanto a isso[18]. Contudo, é preciso ter em conta que os documentos medievais cascalenses e alguns da Idade Moderna terão desaparecido com as invasões inimigas e incêndios, perdendo-se informações que poderiam ajudar a responder a muitas das questões para as quais não temos respostas[19].

Em todo o caso, é sabido que certos locais com funções portuárias nunca estiveram dotados de estruturas materiais como, por exemplo, cais, docas ou rampas de varadouro[20], o que terá sido o caso de Cascais durante largo tempo[21]. Daí que a existência de estruturas para carga e descarga, bem como de pessoal e de instituições dedicadas à prestação de serviços portuários, não sejam factores essenciais para a definição de um porto[22]. Esta é uma ideia que pode gerar alguma confusão e até levar a observações algo anacrónicas, apoiadas na ideia de que um porto tinha obrigatoriamente de ter tal tipo de estruturas de apoio, mas é preciso sublinhar que alguns espaços portuários podiam funcionar apenas como ancoradouros, desembarcadouros e varadouros naturais, sendo o caso de Cascais[23]. Por isso mesmo, quando se trata de estudar e classificar um porto, importa ter sempre em conta a distinção clássica entre um porto natural e um porto artificial[24]. De qualquer forma, não é de excluir que algures durante a Idade Média, ou até mesmo na Antiguidade, no espaço geográfico em estudo, possa ter existido um passadiço, um cais ou outro tipo de estrutura de atracagem, fosse em pedra ou madeira.

Seguindo a perspectiva de ancoradouro/fundeadouro, e para se gerir com maior eficiência o espaço portuário, é possível que em tempos antigos Cascais contasse com algumas poitas submersas fixas a um cabo e a uma bóia flutuante para amarração das cordas dos navios, ou de pedras furadas com função de poitas de fundear, elementos arcaicos e, por vezes, utilizados com continuidade ao longo dos séculos[25]. Se estamos apenas perante uma hipótese, sabe-se, em concreto, que na praia da Ribeira, em meados do século XX, eram usadas estacas presas na areia e ligadas a um cabo que ia até à borda d’água e que se amarrava à proa ou à popa das embarcações dos pescadores. Ao mesmo tempo, havia ainda um cabo preso numa das extremidades das embarcações, estando ligado a uma poita submersa e que não permitia a mobilidade das mesmas. É possível que este sistema, ou algo semelhante, já fosse usado em Cascais desde tempos recuados.

Não estando dotado de um cais ou de qualquer outro tipo de plataforma para carga/descarga, o porto de Cascais teria de ter necessariamente um sistema de vaivém activo e especializado com o serviço de barcas, batéis[26] ou de outras pequenas embarcações – como sugere a gravura de 1572 – que fizessem a ligação com o areal e vice-versa, carregando e desembarcando mercadorias[27], pessoas e animais, se bem que alguns navios também pudessem ser varados na praia da Ribeira e nas seguintes. Aliás, o próprio Vicenzo Casale, na legenda da sua planta de Cascais (1590), refere a praia da Ribeira como local onde “se varão os Barquos” dos pescadores da vila. Acresce que outrora esta praia tinha maior extensão[28], prolongando-se para Norte, porque não era limitada pela muralha que ganhava forma entre dois baluartes e que foi erguida no reinado de D. João IV[29].

Digitalizada por Luis Pavao Lda em Julho 2003 a partir do interpositivo
Fig. 3 – Espaço portuário de Cascais a funcionar como ancoradouro (início do século XX). Serra de Sintra ao fundo e vento a soprar de Sul [PT/CMCSC-AHMCSC/AFTG/CAM/A/00546].
Figs. 3.2
Fig. 4 – Embarcação varada na praia da Ribeira para limpeza do casco (década de 1940). Fotografia cedida por Guilherme Cardoso.

Na verdade, a fisionomia desta parte costeira cascalense, com várias praias a Nascente da praia da Ribeira, proporcionava condições para servirem igualmente de varadouro, como aconteceu até muito recentemente[30], se bem que os navios de menores dimensões estivessem melhor capacitados para isso. Seriam, igualmente, as pessoas locais que recorreriam com maior frequência ao varamento de navios na praia. Por fotografias de finais do século XIX até meados do seguinte vemos que eram usadas juntas de bois para puxarem as redes dos pescadores e as embarcações para terra (fig. 5). É muito provável que já fosse assim em Cascais durante a Idade Média ou até mesmo antes, visto que estes são procedimentos comuns nas comunidades piscatórias e com séculos de tradição.

Fig. 5
Fig. 5 – Duas juntas de bois puxam um carro com redes de pesca para terra. Praia da Ribeira, 1900 [PT/CMCSC-AHMCSC/AFTG/CAM/A/00858].

A permanência de embarcações nos areais de Cascais podia prolongar-se, sobretudo quando chegava a altura de invernar. Para o caso da praia da Ribeira, existiam mesmo disposições municipais obrigatórias e coimas para quem não procedesse de acordo com a legislação. Conforme revela o tit. 20.º do livro de posturas da Câmara da vila de Cascais, com disposições que vão de 1587 a 1837, as barcas e os barcos locais acabavam por invernar junto à ponte da vila, por baixo da qual corria o rio de Cascais, curso de água actualmente conhecido por ribeira das Vinhas: “Toda a Barqua ou Barquo, que invernar, por nao der pera ir ao mar, ou por algum outro respeito, estarao da parte da fós pera a ponte athe ao junqual com pena de quinhentos reais pera o concelho, e acusador”[31].

Como se procedia em relação aos navios de maior tonelagem? Em condições normais, caravelas, galeões, naus, galés e outros tipos de navios vindos de fora ficariam ancorados em frente à praia da Ribeira ou mais ao largo, muito embora houvessem excepções que poderiam fazer com que alguns fossem varados nessa praia ou noutra das imediações. Isso poderia ocorrer durante temporais, se bem que colocar a salvo nas praias de Cascais uma embarcação maior do que uma caravela latina e transportá-la um pouco mais para o interior talvez fosse uma tarefa algo difícil. Assim, e embora a baía de Cascais seja bastante famosa por oferecer abrigo aos navios que se protegiam da nortada, o mesmo não acontecia quando havia mau tempo de SE, S e SW, pelo que quando se aproximavam temporais com estas orientações as embarcações de menor tonelagem deveriam ser prontamente varadas na praia e levadas mais para o interior do território, enquanto que as restantes provavelmente rumariam a Lisboa, tal como aconteceu até muito recentemente[32]. Os navios que não conseguissem partir a tempo de evitar um temporal ficavam sujeitos à fúria do mar, a um possível naufrágio ou encalhe perigoso, tal como aconteceu em Setembro de 1606 com a nau Salvação, que vinda da Índia acabou por varar nas imediações[33]. O varamento podia acontecer ainda quando se queria limpar o casco dos navios (fig. 4) ou proceder ao seu reparo, sendo que, nestes casos, embarcações de maior porte do que uma caravela até poderiam ser encalhadas à borda-d’água, esperando-se depois novamente pela preia-mar para que pudessem desencalhar. Há que ter em conta ainda acontecimentos fortuitos, como nos casos em que alguns pilotos chegavam a varar navios nas praias para fugirem a perseguições de corsários e piratas. Por outro lado, sabe-se que as praias de Cascais, na década de 1480, estando na rota estratégica de salteadores estrangeiros[34], chegaram a ser usadas para se encalhar navios comerciais apresados e “filhar” as suas mercadorias[35].

Apesar destas potencialidades baseadas nas condições naturais da baía de Cascais, a verdade é que as características geomorfológicas da praia da Ribeira também terão causado problemas e condicionantes ao longo dos séculos. Embora actualmente não existam, tendo sido dinamitados e removidos, no passado dois agrupamentos rochosos – pelo menos – destacavam-se na paisagem local durante a baixa-mar, representando grande perigo para a navegação, nomeadamente quando se caminhava para a vazante e para quem não conhecesse bem aquele espaço[36]. Numa representação da costa de Cascais, atribuída a finais do século XVI, parece mesmo vir representado um desses agrupamentos de rochas[37].

Marco Oliveira Borges | 2017

[1] Este artigo de divulgação histórica foi adaptado de um estudo mais alargado: Marco Oliveira BORGES, “Caracterização e funcionalidade de um porto atlântico em finais da Idade Média: o exemplo de Cascais”, in Adelaide Millán da Costa, Amélia Aguiar Andrade e Catarina Tente (eds.), O papel das pequenas cidades na construção da Europa medieval, Lisboa, Instituto de Estudos Medievais/Câmara Municipal de Castelo de Vide, 2017, pp. 287-315. Disponível para consulta e descarregamento em goo.gl/RV79dL.

[2] Sobre as condicionantes geográficas do estuário do Tejo e da costa de Cascais que faziam do porto local um sítio fulcral no apoio a toda a navegação com destino a Lisboa, cf. António FIALHO e Jorge FREIRE, Cascais na rota dos naufrágios. Museu do Mar – Rei D. Carlos. Exposição. Catálogo, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 2006, pp. 3-6; Marco Oliveira BORGES, O porto de Cascais durante a Expansão Quatrocentista. Apoio à navegação e defesa costeira. Dissertação de Mestrado em História Marítima, Universidade de Lisboa, 2012, pp. 61-81, 102-114 e 117-125; Jorge FREIRE, À vista da costa: a paisagem cultural marítima de Cascais. Dissertação de Mestrado em Arqueologia, Universidade Nova de Lisboa, 2012, passim; Marco Oliveira BORGES, “Em torno da preparação do cerco de Lisboa (1147) e de uma possível estratégia marítima pensada por D. Afonso Henriques”, in História. Revista da FLUP, IV: 3 (2013), pp. 126-129; idem, “A defesa costeira do litoral de Sintra-Cascais durante a Época Islâmica. II – Em torno do porto de Cascais”, in Ana Cunha, Olímpia Pinto e Raquel de Oliveira Martins (coord.), Paisagens e Poderes no Medievo Ibérico. Actas do I Encontro Ibérico de Jovens Investigadores em História Medieval. Arqueologia, História e Património, Braga, Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória», Universidade do Minho, 2014, p. 425.

[3] Face às dificuldades de entrada na barra do Tejo, é provável que no século XV Cascais já prestasse o serviço de pilotos que, mais tarde, viria a assumir enorme relevância no contexto da carreira da Índia, se bem que na centúria quatrocentista ainda não devesse estar institucionalizado (cf. Marco Oliveira BORGES, O porto de Cascais […], pp. 62-67).

[4] Sobre os diferentes significados deste termo, incluindo os que nada têm a ver com a actividade naval, cf. Sebastian de COBARRUVIAS OROZCO, “Pverto”, in Tesoro de la Lengva Castellana, o Española, Madrid, Por Luiz Sanchez, 1611, p. 599; Fr. Joaquim de Santa Rosa de VITERBO, “Porto e portela”, in Elucidario das palavras, termos e frases que em Portugal antigamente se usaram […]. 2.ª ed., rev., correcta e copiosamente addicionada de novos vocábulos […], t. II, Lisboa, Em Casa do Editor A. J. Fernandes Lopes, 1865, p. 156; José Pedro MACHADO, “Porto”, in Dicionário etimológico da língua portuguesa com a mais antiga documentação escrita e conhecida de muitos dos vocábulos estudados, 3.ª ed., vol. IV, Lisboa, Livros Horizonte, 1977, p. 406.

[5] Cf. Maria Luísa BLOT, Os portos na origem dos centros urbanos. Contributo para a arqueologia das cidades marítimas e flúvio-marítimas em Portugal, Lisboa, Instituto Português de Arqueologia, 2003, pp. 54-58, 88, 107, 130, 132, 137 e passim.

[6] Agustín GUIMERÁ RAVINA, “Puertos y ciudades portuarias (Ss. XVI-XVIII): una aproximación metodológica”, in Inês Amorim, Amélia Polónia e Helena Osswald (coords.), O litoral em perspectiva histórica (sécs. XVI-XVIII). Um ponto da situação historiográfica, Porto, Instituto de História Moderna/Centro Leonardo Coimbra, 2002, pp. 287, 290-291 e 298-299. Sobre os 6 diferentes tipos de ancoradouros naturais, cf. Maria Luísa BLOT, op. cit., pp. 47-49. Para uma definição de termos e captação de hierarquias portuárias, cf. Amélia POLÓNIA, “Les petits ports dans le système portuaire européen a l’âge moderne (XVIe-XVIIIe siècles)”, in Revista da Faculdade de Letras. História, III: 9 (2008), pp. 27-51, com especial relevância para o modelo de construção portuária da p. 32.

[7] Amândio Jorge Morais BARROS, Porto. A construção de um espaço marítimo no início dos tempos modernos, Lisboa, Academia de Marinha, 2016, p. 26.

[8] Em finais do século XVIII, por exemplo, referia-se que em frente à povoação cascalense havia um bom fundeadouro desde as 8 às 20 braças, todo limpo com excepção de algumas âncoras perdidas que podiam roçar nos cabos (cf. Vicente Tofiño de SAN MIGUEL, Derrotero de las costas España en el Océano Atlântico, y de las islas Azores ó terceras, para inteligencia y uso de las cartas esféricas […], Madrid, Por la viuda de Ibarra, Hijos y Compañia, 1789, p. 85).

[9] Cf. Guilherme CARDOSO e João Pedro CABRAL, “Apontamentos sobre os vestígios do antigo castelo de Cascais”, in Arquivo de Cascais. Boletim Cultural do Município, 7 (1988), pp. 77-92; Margarida de Magalhães RAMALHO, “As fortificações marítimas do porto e da nobre vila de Cascais”, in Joaquim Manuel Ferreira Boiça, Maria de Fátima Rombouts de Barros e Margarida de Magalhães Ramalho, As fortificações marítimas da costa de Cascais, Cascais, Quetzal, 2001, pp. 39-44.

[10] João J. Alves DIAS, “Cascais e o seu termo na primeira metade do século XVI – aspectos demográficos”, in Arquivo de Cascais. Boletim Cultural do Município, 6 (1987), p. 67; idem, “Lisboa medieval na iconografia do século XVI”, in Ensaios de História Moderna, Lisboa, Editorial Presença, 1988, p. 120. Contrariamente, Nuno José Varela RUBIM, A defesa costeira dos estuários do Tejo e do Sado desde D. João II até 1640, Lisboa, Prefácio, 2011, p. 49, acredita que a imagem, caso tenha sido desenhada pelo pintor flamengo Hoefnagel, isso terá ocorrido entre 1563 e 1567. Por sua vez, Joaquim M. F. BOIÇA, “Cascais no sistema defensivo do porto de Lisboa”, in Monumentos. Cidades. Património. Reabilitação, 31 (2011), p. 30, atribui a gravura “aos anos trinta do século XVI”, enquanto que Rafael MOREIRA, “Leonardo Turriano en Portugal”, in Alicia Cámara, Rafael Moreira y Marino Viganò, Leonardo Turriano, ingeniero del rey, [Madrid], Fundación Juanelo Turriano, 2010, p. 130, refere c. 1550.

[11] Marco Oliveira BORGES, “Aspetos do quotidiano e vivência feminina nos navios da carreira da Índia durante o século XVI: primeiras mulheres, buscas e sexualidade a bordo”, in Revista Portuguesa de História, 47 (2016), p. 199.

[12] Manuel António Fernandes MOREIRA, O porto de Viana do Castelo na época dos Descobrimentos, Viana do Castelo, Câmara Municipal de Viana do Castelo, 1984, p. 13.

[13] Amélia POLÓNIA e Sara PINTO, “Harbour construction policies and funding agency in Early Modern Portugal (1400-1800)”, in Amélia Polónia y Ana María Rivera Medina, La gobernanza de los puertos atlânticos, siglos XIV-XX. Políticas y estructuras portuárias, Madrid, Casa de Velázquez, 2016, p. 10.

[14] Sobre a aplicação destes conceitos operatórios, cf. Marco Oliveira BORGES, “Hinterland” e “Umland”, in José Vicente Serrão, Márcia Motta e Susana Münch Miranda (dir.), E-Dicionário da terra e do território no Império Português, Lisboa, CEHC-IUL, 2016 [consultado 07.07.2016]. Disponível em: https://edittip.net/category/hinterland/ e https://edittip.net/category/umland/.

[15] Marco Oliveira BORGES, “D. Álvaro de Castro (1.º conde de Monsanto) perante os desafios da expansão portuguesa do século XV”, in Revista de História da Sociedade e da Cultura, 14 (2014), pp. 112-118; idem, “D. Álvaro de Castro (senhor de Cascais) em Ceuta: serviço militar e abastecimento durante as décadas de 1440 e de 1450”, in Ceuta e a Expansão Portuguesa. Actas do XIV Simpósio de História Marítima. 10 a 12 de Novembro de 2015, Lisboa, Academia de Marinha, 2016, pp. 423-426.

[16] Gomes Eanes de AZURARA, Crónica do Descobrimento e Conquista da Guiné. Introd., act. de texto e notas de Reis Brasil, [s.l.], Publicações Europa-América, [s.d.], cap. XXXI, p. 110, cap. LXXI, pp. 192-195.

[17] Marco Oliveira BORGES, “D. Álvaro de Castro (1.º conde de Monsanto)”, pp. 113-115; idem, “D. Álvaro de Castro (senhor de Cascais)”, pp. 425 e 427-430.

[18] Na verdade, D. João II até ordenou a construção de uma torre defensiva em Cascais, que, estando dotada de bombardas que disparavam rente à água, impedia a aproximação de piratas e corsários, proporcionando um ancoradouro seguro aos navios que ali chegavam. Contudo, esse aspecto inclui-se no plano defensivo, algo que já foi tratado noutros estudos.

[19] Em 1758, o P.Manuel Marçal da Silveira dizia que “no seculo passado de 1600 houve hu grande incendio nas cazas do Senado, ardeu todo o Archivo, e todos os seus papeis de major parte” (cf. Ferreira de ANDRADE, Cascais – Vila da Corte. Oito séculos de História, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1964, p. XVII, doc. 2).

[20] “Os vestígios materiais de tipo portuário, ou seja, construções especializadas tais como cais, docas, rampas de varadouro […], poderão efectivamente nunca ter existido em locais com funções portuárias, na medida em que essas funções se verificavam muitas vezes na total ausência de estruturas, mesmo em épocas muito recentes” (Maria Luísa BLOT, op. cit., pp. 22, 107 e 137). Sobre este assunto, cf. igualmente Jesús Ángel SOLÓRZANO TELECHEA y Javier AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, “Infraestructuras e instalaciones portuarias, fluviales e hídricas en las villas del Norte peninsular a finales de la Edad Media: las obras públicas como instrumentos del poder”, in M.ª Isabel del Val Valdivieso y Olatz Villanueva Zubizarreta (coords.), Musulmanes y cristianos frente al agua en las ciudades medievales, Santander, PUblican, Ediciones de la Universidad de Castilla – La Mancha, 2008, pp. 277-280.

[21] A 6 de Setembro de 1877, por intermédio “de um elogioso abaixo-assinado de vários munícipes acerca da actuação dos edis” locais, nomeadamente de Júlio César Pereira de Melo, presidente da Câmara Municipal, revela-se um certo exagero quanto aos melhoramentos de que foi responsável na vila de Cascais. Nesse documento, é referido que, “como remate e coroa de todas as suas obras” realizadas, o presidente estava a trabalhar para realizar alguns melhoramentos que deixariam o “seu nome gloriosamente vinculado aos anais deste município, sendo um deles a construção de um cais” que facilitasse o embarque e desembarque até então “dificílimo” na praia da Ribeira (cf. João Miguel HENRIQUES, História da freguesia de Cascais: 1870 – 1908 (Uma proposta de estudo), Lisboa, Edições Colibri/Câmara Municipal de Cascais, 2004, pp. 148-149).

[22] Cf. Amélia POLÓNIA, “Portos”, in Francisco Contente Domingues (dir.), Dicionário da Expansão Portuguesa. 1415-1600, vol. II, Lisboa, Círculo de Leitores, 2016, p. 873.

[23] Cf. Marco Oliveira BORGES, O porto de Cascais […], p. 47.

[24] Sebastian de COBARRUVIAS OROZCO, op. cit., p. 599; Amélia POLÓNIA, op. cit., p. 873.

[25] Maria Luísa BLOT, op. cit., p. 137.

[26] Tal como acontecia, por exemplo, em vários portos medievais das Astúrias (cf. Jesús Ángel SOLÓRZANO TELECHEA y Javier AÑÍBARRO RODRÍGUEZ, op. cit., pp. 279-280).

[27] Em 1452, por exemplo, 4 galés venezianas ancoraram em Cascais quando se dirigiam para a Flandres. Ali mesmo, foi ordenado um abastecimento para ser dividido pelos quatro navios: 2.000 pães, 16 vacas, 40 carneiros, 75 balas de fruta (constituídas por 8 gigas grandes), 400 quintais de biscoito e c. 7.200 litros de vinho (cf. Marco Oliveira BORGES, O porto de Cascais […], pp. 106-108).

[28] De acordo com Guilherme Cardoso, toda a baixa de Cascais está assente em areia, sendo que o mar ali chegou até perto do século XIV (Natália VALE, “Guilherme Cardoso fala da sondagem arqueológica no antigo edifício das Finanças”, in Jornal da Costa do Sol, 1015 (1987), p. 9).

[29] Após a edificação desta muralha, já existente em 1645, a circulação de pessoas, mercadorias e de embarcações entre o porto e o interior do território fazia-se através de dois arcos abertos nessa estrutura (cf. João da Cruz VIEGAS, O comércio quinhentista na vila e no porto de Cascais, Cascais, Museu Biblioteca do Conde Castro de Guimarães, 1940, p. 13; D. Manuel de CASTELLO BRANCO, Embarcações e artes de pesca, Lisboa, Lisnave, 1981, pp. 17-21).

[30] Esta foi, na verdade, uma característica de marca na vida piscatória de Cascais até muito recentemente. Por fotografias de finais do século XIX até meados do século XX vemos que os barcos dos pescadores continuavam a ser varados na praia, bem como que eram levados vila adentro para reparo ou para aí se manterem durante o período de invernada (cf., por exemplo, D. Manuel de CASTELLO BRANCO, op. cit., pp. 13 e 16).

[31] AHMC/AADL/CMC/B-A/005/001-cx.1. O tit. 205.º volta a aludir a esta questão. Segundo indicação do P.e António de Beja, a ponte de Cascais havia ruído com as cheias de 23 de Janeiro de 1518 (cf. Visconde de JUROMENHA, Sintra pinturesca, ou memória descritiva da vila de Sintra, Colares e seus arredores, Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 1989-1990, p. 123). Assim, a ponte que o livro de posturas refere teria sido a que lhe substituiu, ainda que o terramoto de 1531 e o consequente tsunami devam ter causado estragos. João da Cruz Viegas supõe que o juncal que o dito documento refere “seria aquém da ponte, visto que os três arcos da ponte e as pedras altas do «passadouro» deviam dificultar ou impedir a passagem de barcos grandes” (João da Cruz VIEGAS, op. cit., p. 46). Esta já era uma referência à ponte de pedra seiscentista.

[32] D. Manuel de CASTELLO BRANCO, op. cit., pp. 14-16.

[33] Relação das náos e armadas da India com os successos dellas que se puderam saber, para noticia e instrucção dos curiozos, e amantes da história da India. Leit. e anot. de Maria Hermínia Maldonado, Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade, 1985, pp. 111 e 113.

[34] Marco Oliveira BORGES, “Corsários no litoral português”, in Visão História, 37 (2016), pp. 74-75.

[35] Idem, O porto de Cascais […], pp. 171-174 e 203-204.

[36] O agrupamento rochoso existente mais a Sul, conhecido entre os locais por “Laje” e que chegou a provocar acidentes e o afundamento de embarcações, viria a ser dinamitado e removido para garantir a segurança no acesso ao Clube Naval de Cascais durante os preparativos para o Campeonato do Mundo de Vela de 2007.

[37] Pub. por Margarida Magalhães RAMALHO, Fortificações marítimas, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 2010, p. 15.