Corso e pirataria no cabo da Roca e suas imediações (séculos XVI-XVII)

Cabo da Roca 1
Fig. 1 – Vista aérea do cabo da Roca.

Designado na Antiguidade por promontório de Ofiússa[1], Promontorium Lunae e Promontorium Magno[2], o cabo da Roca sempre foi um importante acidente geográfico para a navegação, servindo aos mareantes “de firme demarcação para buscarem a barra de Lisboa”[3]. Situado na área mais ocidental do mundo conhecido, caracterizada pelo forte vento e agitação marítima, este cabo, efectivamente, desde cedo foi o grande ponto de referência da costa de Sintra e da região que abarca, conhecidas pela sua perigosidade e pelos diversos naufrágios que proporcionaram ao longo dos séculos, sendo que a primeira referência documental que se conhece sobre acidentes marítimos no litoral sintrense remete para 1147[4].

Fig. 8
Fig. 2 – Outra vista área do cabo da Roca.
Fonte: https://www.e-cultura.sapo.pt//patrimonio_item/2513

Relativamente às actividades de corso/pirataria, os casos mais antigos que se conhecem estiveram associados a salteadores franceses, entre 1520 e 1537, se bem que alguns não tenham ocorrido propriamente em águas sintrenses, mas umas léguas mais ao largo, aparecendo o cabo da Roca como local de referência nas fontes históricas[5]. No entanto, sabe-se que este local, assim como as suas imediações, inclusive para Sul, envolvendo a área ao largo da enseada de Assentis e até à zona do Alto das Entradas, foram usados por inimigos que esperavam estrategicamente a vinda de navios ricamente carregados[6]. Não se pode esquecer, entre várias rotas que por ali passavam, que esta era uma das áreas de aproximação à costa para os navios que vinham dos Açores, onde se incluíam os que vinham da Índia, do Brasil, de África e de outras partes, pelo que acabava por ter grande procura. É bem provável que, conforme nos referiu Miguel Lacerda, os corsários/piratas fizessem sair gente em terra para, em posições altas, poderem controlar as movimentações da navegação. Além disso, existe uma ribeira que desagua junto ao cabo da Roca, a qual poderá ter sido usada para se obter água. Estas deslocações a terra seriam efectuadas em pequenas embarcações largadas dos navios.

Fig. 11
Fig. 3 – Cabo da Roca, também designado como The Rock of Lisbon.
Fonte: John Christian Schetky, 1861 (NMM).
Fig. 1 –
Fig. 4 – Cabo da Roca com vista parcial para a Enseada de Assentis e imediações.
Fotografia: Marco Oliveira Borges.

Foi nas proximidades da Enseada de Assentis, mais precisamente no Alto das Entradas ou Calhau das Entradas (sítio caracterizado por ser uma área de penhascos e de altura considerável em relação ao mar), que após a Restauração foi edificado o Forte de Nossa Senhora da Roca (ou Forte do Espinhaço)[7], do qual já só subsistem escassos vestígios das suas ruínas (fig. 7). De acordo com as investigações de Carlos Callixto, um inspector anónimo havia visitado o local em Abril de 1751, altura em que o forte já se encontrava bastante arruinado, ficando estimado que a sua reconstrução total orçaria pelos 1.300$00 réis.

À primeira vista, a importância para defender os navios de menor porte que por ali passavam, bem como a própria presença de corsários naquelas imediações e a necessidade de evitar que pairassem por ali, foram  argumentos mais do que válidos para se erguer um forte naquela área. Assim, de acordo com o dito inspector, o Forte de Nossa Senhora da Roca estava “num dos sítios mais importantes daquela marinha pelo muito que ampara dos inimigos as embarcações pequenas que fazem viagem para o Norte”[8].

Fig. 13
Fig. 5 – Forte da Roca numa gravura da segunda metade do século XIX.

Não se sabe por quantas peças de artilharia estava dotado em 1751. Porém, anos mais tarde, entre 1763 e 1764, sabe-se que estava artilhado com 4 peças de ferro: 2 de calibre 9 e 2 de calibre 6[9]. Todavia, os relatórios levados a cabo nas décadas seguintes viriam a tirar a importância estratégica e a utilidade defensiva deste forte. Em 1777, um oficial alegou que o “Forte não he de nenhuma utilidade, e assim só lhe bastão duas peças para servir de vigia. O paiol da pólvora está em bom estado. Para guarnecer esta fortaleza em tempo de guerra, no cazo que seja acommetida por alguma frota inimiga, bastar-lhe-ha ao menos um Cabo e oito artilheiros; presentemente se acha guarnecida por hum Cabo e trez Soldados infantes”[10]. Em 1796, num novo relatório, a importância da fortificação foi considerada “quaze inútil pois não defende porto algum e os seus tiros são tão mergulhantes que não poderão fazer efeito, por estar levantado sobre o plano do mar alguns 300 palmos; e além disto todos os navios se apartão deste Cabo [da Roca] por não darem a Costa”[11]. Por fim, num relatório de 1831 foi referido que não era “possível com o fogo feito da bateria deste Forte incomodar o inimigo, devido à sua grande altura sobre o mar”[12].

Em todo o caso, apesar da curta duração que teve e de se ter verificado a sua inutilidade para a defesa marítima dessa área, a verdade é que a intenção inicial que esteve por detrás da construção do forte estaria mesmo na necessidade de protecção dos navios de menor porte que se abrigavam de corsários naquelas enseadas e imediações. Talvez o poder de fogo que o forte dispunha acabou por ter um efeito mais dissuasor para os navios inimigos que se aventuravam por aquelas paragens do que propriamente operativo.

Fig. 14
Fig. 6 – Planta do forte de Nossa Senhora da Roca (ANTT).

De qualquer forma, tal como nos deixam perceber vários tipos de fontes, não há qualquer dúvida de que se estava perante uma área movimentada e que, apesar de bastante perigosa, era paragem frequente para piratas e corsários. De acordo com Manoel Pimentel, por exemplo, “na ponta desta Roca distante de terra o tiro de hum mosquete está huma baixa em que arrebenta o mar. Por entre a baixa, e a Roca tem ja passado navios pequenos fugindo dos Mouros, encostando-se mais à baixa que à Roca”[13]. Esta seria uma referência à Baixa do Broeiro (situada a cerca de 900 m a Noroeste do cabo da Roca), ou a outro rochedo das imediações, ficando o contínuo testemunho quanto à presença de piratas e de corsários nesta área sintrense, bem como de esta servir de refúgio a navios de menor porte que, liderados por mareantes conhecedores da geografia local, poderiam usar a presença dos rochedos à flor da água como armadilha para se defenderem da agressão de navios maiores. O embate contra os rochedos seria um naufrágio quase certo naquele local, sendo que na Baixa do Broeiro existe um navio naufragado e canhões submersos[14].

Fig. 15
Fig. 7 – Ruínas do Forte de Nossa Senhora da Roca (ou do Espinhaço) com vista para o Cabo da Roca, Enseada de Assentis e imediações (foto: André Manique).

Por fim, há que referir o ataque ao patacho Nossa Senhora da Conceição, do qual se sabe muito pouco. Referida como urca e patacho, havia velejado para a Índia em Abril de 1635, juntamente com as naus Santa Catarina de Ribamar e Nossa Senhora da Saúde. Sob capitania de João da Costa, que também ia como piloto, fez escala em Moçambique, onde largou 50 homens, e surgiu em Goa a 6 de Novembro, tendo iniciado o retorno a Portugal algures em 1637[15].

Uma vez na costa de Sintra, mais concretamente na área próxima do rio das Maçãs e já pelo dia 17 de Dezembro, entrou em combate e foi queimada por 4 navios de corsários muçulmanos[16]. Ainda que a historiografia tenho vindo a seguir as indicações de  Saturnino Monteiro, e nós próprios, em outros estudos, tenhamos colocado a hipótese mais concreta de João da Costa ter sofrido uma emboscada junto à enseada de Assentis[17], a verdade é que não se sabe ao certo o desenrolar dos acontecimentos. No entanto, o navio terá ido ao fundo perto da praia das Maçãs.

Marco Oliveira Borges | 2020

[1] Avieno, Orla Marítima, Coimbra, Instituto Nacional de Investigação Científica/Centro de Estudos Clássicos e Humanísticos da Universidade de Coimbra, 1992, pp. 22 e 47, n. 33.

[2] Vasco Gil Mantas, A rede viária romana da faixa atlântica entre Lisboa e Braga. Tese de Doutoramento, vol. I, Universidade de Coimbra, 1996, p. 882; idem, “O porto romano de Lisboa”, in G. P. Berlanga e J. P. Ballester (coords.), Puertos fluviales antiguos: ciudad, desarrollo e infraestructuras, Valência, Universidad de Valencia, 2003, p. 15.

[3] Fr. Joseph Pereira de Santa Anna, Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia Nestes Reynos de Portugal, Algarves e seus Domínios, t. II, Lisboa, Officina dos Herdeiros de Antonio Pedrozo Galram, 1751, p. 115.

[4] Altura em que as forças cruzadas vieram auxiliar D. Afonso Henriques na tomada de Lisboa aos muçulmanos (cf. Marco Oliveira Borges, “Em torno da preparação do cerco de Lisboa (1147) e de uma possível estratégia marítima pensada por D. Afonso Henriques”, História. Revista da FLUP, IV: 3 (2013), pp. 126-129).

[5] Idem, “Corso e pirataria na costa de Sintra durante os séculos XVI-XVII”, comunicação apresentada no V Encontro de História de Sintra (Sintra, 28/10/2016); idem, O trajecto final da carreira da Índia na torna-viagem (1500-1640). Problemas à navegação entre os Açores e Lisboa: acções e reacções, Lisboa, Tese de Doutoramento, 2 vols., Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (a aguardar defesa).

[6] Idem, “Portos e ancoradouros do litoral de Sintra-Cascais. Da Antiguidade à Idade Moderna (I)”, in Jornadas do Mar 2014. Mar: uma onda de progresso, Almada, Escola Naval, pp. 162-163; idem, Paisagem cultural marítima de Sintra: uma abordagem histórico-arqueológica”, in Pedro Fidalgo (coord.), Estudos de paisagem, vol. III, Lisboa, Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2017, pp. 243-250.

[7] Carlos Callixto, Fortificações da Praça de Cascais a Ocidente da Vila, sep. da Revista Militar, Lisboa, 1980, pp. 4-5.

[8] Joaquim Boiça, Maria Rombouts de Barros, Margarida de Magalhães Ramalho, As Fortificações Marítimas da Costa de Cascais, Cascais, Quetzal, 2001, p. 212.

[9] Carlos Callixto, op. cit., pp. 5-6.

[10] Joaquim Boiça, Maria Rombouts de Barros, Margarida de Magalhães Ramalho, op. cit., p. 212.

[11] Idem, ibidem, p. 213.

[12] Carlos Callixto, op. cit., p. 8.

[13] Manoel Pimentel, Arte de Navegar, em que se ensinam as regras praticas, e os modos de cartear, e de graduar a balestilha por via de Numeros e muitos problemas úteis à navegação, Lisboa, Officina de Francisco da Silva, 1762, p. 526.

[14] Paulo Alexandre Monteiro, “Canhões na Roca. Análise preliminar de um conjunto submerso de peças de artilharia”, in Al-Madan, sér. II, t. 15, 2007, p. 159; idem, “O património cultural subaquático da costa de Sintra” (Sintra, 02/08/2014).

[15] Relações da carreira da Índia. Navios da carreira da Índia (1497-1653), códice anónimo da British Library. Governadores da Índia, pelo Pe. Manuel Xavier, Lisboa, Publicações Alfa, 1989, pp. 85 e 166-167; Memórias das armadas da Índia. Org., introd. e notas de João C. Reis, Macau, Edições Mar-Oceano, 1990, p. 271; Paulo Guinote, Eduardo Frutuoso e António Lopes, As armadas da Índia, 1497-1835, Lisboa, Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 2002, p. 169.

[16] BNP, Ms. 26, 153, n.º 129; Relações da carreira […], pp. 166-167; Memorias das armadas […], p. 271.

[17] Saturnino Monteiro, Batalhas e combates da marinha portuguesa, vol. VI, Lisboa, Livraria Sá da Costa Editora, 1995, p. 152; José António Rodrigues Pereira, Grandes batalhas navais portuguesas. Os combates que marcaram a História de Portugal, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2009, pp. 193-195; idem, Grandes naufrágios portugueses, 1194-1991. Acidentes marítimos que marcaram a História de Portugal. Pref. de Adolfo Silveira Martins, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2013, pp. 204-205; Marco Oliveira Borges, “Portos e ancoradouros […]”, p. 162; idem, “Paisagem cultural marítima […]”, pp. 245-247.

Sexualidade a bordo dos navios durante os séculos XVI-XVII

Pero Dias
Navios da carreira da Índia de início do século XVI.

Ausentes de terra durante várias semanas ou largos meses, os homens embarcados em navios com diferentes destinos recorriam ao onanismo, à sodomia e, em certos casos, até tinham relações sexuais com mulheres[1]. Contudo, as práticas nem sempre eram consentidas de livre vontade, podendo ser forçadas, até mesmo por corsários e piratas que apresavam navios ou que atacavam povoações costeiras e levavam os seus habitantes. Neste texto olharemos com maior pormenor o caso dos navios e das pessoas que partiam do rio Tejo rumo à Índia e que faziam a viagem de regresso a Lisboa.

Mulheres a bordo dos navios

A presença de mulheres a bordo dos navios foi uma realidade durante a expansão marítima portuguesa, destacando-se, nas fontes históricas, o caso das que partiam para a Índia ou que de lá vinham. Todavia, exceptuando em alguns casos, sobretudo quando capitães ou fidalgos importantes recebiam autorização para levaram as suas esposas e filhas, era proibido o embarque de mulheres, pelo que muitas iam sendo embarcadas ilegalmente.

Se para alguns homens a existência de mulheres a bordo não levantava grandes problemas, para outros era muito inconveniente, sendo que a sua presença no seio de uma tripulação exclusivamente masculina poderia ser vista como a causa dos males e das adversidades que surgiam durante as viagens. Entre mulheres de fidalgos, órfãs, mancebas, aventureiras e prostitutas, as que viajavam solteiras estavam associadas, segundo a correspondência dos padres da época, à prostituição a bordo, à origem de distúrbios, à falta de segurança, à destruição de costumes e à indisciplina, pelo que eram sujeitas a castigos ou largadas nalgum local de escala da viagem. Face a essa presença feminina, considerava-se que os homens faziam mal as suas vigias, revelavam atitudes negligentes e descuidavam-se noutros aspectos de segurança, podendo levar a acidentes a bordo ou até a naufrágios.

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Mapa da carreira da Índia. Viagem anual entre Lisboa e os portos da Índia e vice-versa.

Romances, vida sexual e casamentos

Apesar da forte contestação e perseguição a bordo dos navios da carreira da Índia, movida pelos padres às mulheres, chegaram a ocorrer romances e casamentos em pleno mar. Em 1545, um caso vivido na nau Burgalesa terminou em casamento. A história ligou um cavaleiro que se apaixonou pela filha de um outro passageiro ilustre e que pediu a sua mão em casamento. Porém, a celebração teve lugar apenas em Goa. Contrariamente, em 1562 ocorreram dois casamentos numa nau. O primeiro deles teve o consentimento de todos, por não se registar qualquer impedimento, enquanto que o segundo ocorreu clandestinamente, em virtude de o capitão do navio ter proibido tal união, tendo alegado que havia suspeita de “cunhadio”.  É que inicialmente o homem e a mulher haviam dito que viajavam enquanto cunhados, pelo que num momento posterior não conseguiram provar o contrário.

Como se desenrolava a vida sexual a bordo dos navios que partiam para a Índia transportando, por norma, cerca de 500 homens, poucas mulheres e que, em média, demoravam perto de seis meses a finalizar a viagem? Sobre este tema, como seria de esperar, as fontes não são muito expressivas. Todavia, adivinha-se com facilidade, e comprova-se com alguns dados disponíveis, que os mais ousados tentavam toda a sorte de expedientes para se aproximarem das mulheres embarcadas, se bem que às vezes com consequências trágicas ou então simplesmente caricatas.

Vivendo num espaço marcado pela promiscuidade e em que praticamente não havia privacidade, exceptuando no caso daqueles que tinham compartimentos dos navios reservados, é muito provável que tenham sido frequentes as situações de flagrante sexual e consequente aplicação de castigos, podendo mesmo levar à morte, ainda que muitas também devam ter sido abafadas e nem sempre penalizadas. Em todo o caso, no tempo de Afonso de Albuquerque, Rui Dias, português de boa linhagem oriundo de Alenquer, foi apanhado na câmara da nau do governador com uma escrava. O caso ocorreu na Ásia, tendo Rui Dias, ao que parece, sido encontrado em flagrante sexual com essa mulher. Consequentemente, foi condenado ao enforcamento, sendo que nem o apelo de outros portugueses fez Albuquerque recuar.

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Representação de uma nau numa carta náutica do Atlântico Sul e Oceano Índico (1510).

Olhando para o caso da prostituição a bordo, algo que seria frequente, parece-nos que as mulheres que iam como prostitutas estavam apenas ao alcance de um pequeno grupo de homens onde se incluíam capitães, pilotos, mestres e armadores, a não ser que, por vezes, eles não tivessem conhecimento da sua presença ou permitissem o contacto com homens comuns. Contudo, muitas mulheres que ficaram conotadas com a prostituição poderiam vir apenas como mancebas. Numa carta de 1532, o bispo D. Fernando Vaqueiro queixou-se ao rei de que tinha viajado muito desgostoso para a Índia devido a Vicente Gil (armador da nau Graça) vir publicamente amancebado, consentindo que alguns oficiais viessem na mesma situação. O bispo repreendeu Vicente Gil por várias vezes, até porque o escrivão da nau requereu previamente ao armador que cessassem tais situações, mas o homem não ligou ao que era dito nem às penas que D. João III tinha decretado para quem trouxesse mulheres a bordo.

Embora a prostituição tenda a ser vista como uma actividade desenfreada, a verdade é que seria controlada e levada a cabo em certos locais que aqueles poucos homens tinham acesso. Porém, esta situação das prostitutas estarem apenas disponíveis para um pequeno grupo de homens acabaria por ser um enorme problema e podia gerar conflitos graves, visto que muitos dos que tinham conhecimento da sua presença ou que testemunhavam actos sexuais também sentiam necessidade de satisfazer os seus impulsos. Não conseguindo comprazer o desejo sexual com aquelas que iam embarcadas, os homens que viajavam para o ultramar tinham que esperar até que os navios fizessem escala nalgum local e pudesse haver contacto com alguma mulher, situação que levava meses. Todavia, é possível que devam ter havido momentos de maior liberdade em que as mulheres possam ter estado envolvidas com um número mais elevado de homens e em espaços à vista de muitos outros, se bem que esse fosse um factor para maior desordem a bordo e perigo quanto à navegação, daí também as sucessivas queixas dos missionários.

Seja como for, é preciso atenuar, de facto, o peso da prostituição, visto que nem todas as mulheres eram prostitutas. Por outro lado, e embora numa condição social diferente, sendo esposas de homens importantes, órfãs, etc., outras mulheres poderiam vir a ter problemas com homens durante o percurso. Viajando entre centenas de indivíduos, muitos deles criminosos de delito comum saídos das prisões, aquelas que não estivessem na protecção dos seus maridos ou de homens importantes poderiam ser alvo de um assédio desenfreado. Mesmo as que vinham na companhia dos maridos e que, com o decorrer da viagem, ficavam viúvas, poderiam a partir daí ser um alvo fácil.

Em 1608, na atribulada e trágica viagem da nau Nossa Senhora da Salvação, que naufragou na costa de Mombaça, iam embarcadas três órfãs do recolhimento do castelo de Lisboa, estando confiadas a uma passageira de consideração. O capitão da nau, D. Luís de Sousa, andou desinquietando as órfãs, tanto a bordo como em Mombaça, onde a tripulação se acolheu depois do naufrágio. Acabou por ser ordenada uma averiguação, a propósito do comportamento do impulsivo capitão e de este pretender devassar o recato das jovens passageiras, uma das quais acabou por morrer durante a viagem. A bordo da nau seguia igualmente um embaixador do rei da Pérsia, o qual foi assaltado pelos fidalgos, que tomaram o seu dinheiro à força. Por estes incidentes, pelo naufrágio da nau e possivelmente por outros que ficaram por conhecer, o capitão D. Luís de Sousa, posteriormente, andou homiziado.

Tentando procurar e entrar em contacto com mulheres clandestinas ou que vinham isoladas e sob protecção, alguns homens poderiam embocar em situações bastante caricatas e ser alvo do registo escrito dos missionários. Veja-se, por exemplo, o caso de um homem morto por ferimentos de um tubarão depois de se ter atirado ao rio para tentar ver melhor as mulheres que seguiam a bordo de uma nau da carreira da Índia:

“Morreram muitos [durante a viagem para a Índia] entre os quais foi um mancebo que, andando nadando no rio, e segundo alguns diziam era para ir ver umas mulheres que estavam em a varanda do leme [do navio], e andando assim nadando veio um tubarão que lhe levou uma coxa da perna que lhe não deixou mais que o osso e assim um pedaço de um braço. Acudiram-lhe logo e o trouxeram para a terra, onde o  enterraram e queira Nosso Senhor que estivesse confessado, ou ao menos com contrição dos seus pecados e esperança de misericórdiaa hora da sua morte. Aqui verão, caríssimos irmãos quanto bem é estar em graça com Nosso Senhor e aparelhados para todas as horas”[2].

O caso remonta a 1562, altura em que se fazia escala em Moçambique. É muito provável que estas mulheres que o homem tentava ver fossem órfãs, moças que, geralmente, iam ao cuidado de senhoras da nobreza. Contudo, isso não impedia que a sua presença suscitasse grande curiosidade entre as tripulações e demais passageiros. De modo a evitar situações problemáticas, estas mulheres viajavam fechadas num camarote da nau, normalmente à popa, mas com acesso a uma varanda.

Numa deslocação entre Lisboa e os portos asiáticos e vice-versa, se houvessem mulheres grávidas a bordo ou que engravidassem já no mar, o nascimento poderia ocorrer durante a viagem. Note-se que normalmente este tipo de viagens duravam 6 meses, mas nalguns casos, se fosse necessário invernar, era possível que se atingisse um ano e meio. Em 1610, de acordo com o padre francês Francisco Pyrard de Laval, durante a torna-viagem e antes da chegada ao cabo da Boa Esperança, uma dama mestiça oriunda da Índia, mulher de um português, muito bela e com cerca de trinta anos, entrou em trabalho de parto em pleno mar. Acabou por ter a criança, mas ambas morreram, tendo sido lançadas ao mar.

Onanismo e  sodomia

No meio de centenas de homens embarcados, e face a restrições de contactos com as poucas mulheres presentes ou até mesmo à sua ausência, o onanismo e a sodomia acabavam por ser frequentes, havendo dados sobre esta última prática e execuções punitivas a bordo. Em 1548, numa carta dirigida ao rei, D. João Henriques, capitão-mor de uma armada da carreira da Índia, deu a conhecer que recebeu uma denúncia de sodomia, actividade que era severamente punida. O caso punha em acção Diogo Ramires, castelhano que cometera esse pecado com dois criados de D. Manuel Telo. Consequentemente, “por ser coisa tão abominável ante Deus”, e de modo a cumprir a lei e ordenação régia, D. João Henriques tomou parecer com os fidalgos, cavaleiros, padres e oficiais da nau, acabando por condenar o sodomita castelhano à morte. Diogo Ramires chegou a confessar a sua acção, sendo assim executado como “bom cristão”.

Por seu turno, os rapazes mais novos que viajavam nas naus também chegavam a ser um alvo sexual dos homens mais velhos. Numa carta régia de 1620, dirigida ao vice-rei da Índia, o monarca referia que fora informado de que nas naus que partiam de Lisboa iam embarcados muitos meninos que os soldados, à chegada à Índia, logo levavam para as suas casas, abusando deles. Como medida punitiva, o rei determinou que se deveria investigar o assunto e proceder contra os soldados conforme o que estava disposto nas leis e instruções régias.

A violência dos corsários

Entre as situações de violência de corsários franceses contra a navegação portuguesa, há um caso conhecido em que as mulheres que vinham embarcadas foram violadas. O acontecimento teve lugar no início de Junho de 1524, quando uma caravela portuguesa que se deslocava na costa de Lagos foi atacada por franceses. Ao que parece, a situação decorreu como represália por se terem prendido, em Lisboa e em Lagos, alguns franceses que haviam sido capturados por alegada associação a actos de corso. Nesse mesmo ano, provavelmente no seguimento de acções de represália e não muito longe da barra do Tejo, corsários franceses assaltaram outra caravela portuguesa, castrando os homens que vinham nela.

Marco Oliveira Borges | 2019

[1] Este artigo foi escrito para ser publicado na revista Visão História, mas, na versão que veio a ser publicada, sofreu modificações sem o nosso consentimento – inclusive no titulo, que foi completamente alterado –, sendo que a última frase não é de nossa autoria. Além disso, no final do texto surgem imprecisões sobre a nossa pertença institucional e percurso académico (cf. Marco Oliveira BORGES, “Como era a bordo das naus?”, in Visão História, n.º 54, 2019, pp. 48-50). Face ao exposto, decidimos disponibilizar aqui a versão original do artigo. Importa ainda referir que neste texto retomamos muitas das informações já apresentadas num outro estudo, no qual são indicadas as fontes e a bibliografia usada: Marco Oliveira BORGES, “Aspetos do quotidiano e vivência feminina nos navios da carreira da Índia durante o século XVI: primeiras mulheres, buscas e sexualidade a bordo”, in Revista Portuguesa de História, t. 47, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2016, pp. 195-214. Outros dados, fontes e estudos podem ser igualmente consultados em Marco Oliveira BORGES, O trajecto final da carreira da Índia na torna-viagem (1500-1640). Problemas à navegação entre os Açores e Lisboa: acções e reacções. Tese de Doutoramento, 2 vols., Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (a aguardar defesa).

[2] Documentação para a História das Missões do Padroado Português do Oriente. Colig. e anot. por António da Silva Rego, vol. IX, Lisboa, Agência Geral das Colónias, 1953, p. 72.