
Na aldeia do Mucifal, situada na margem direita do rio de Colares, esteiro de mar outrora navegável[1], foram descobertos alguns exemplares completos ou pouco fragmentados de ânforas romanas[2]. A descoberta deu-se na década de 1950, durante a exploração de um areal localizado na saída Norte do Mucifal[3]. No total foram descobertos entre 5 a 7 exemplares, embora só tenham sido estudadas duas das ânforas ali encontradas, as quais deram entrada no Museu Regional de Sintra em 1981. Uma ou duas, na altura da descoberta, tiveram como destino o Museu Nacional de Arqueologia, enquanto que duas ou três dispersaram-se por colecções particulares[4]. As duas ânforas provenientes do Mucifal, estudadas por Frederico Coelho Pimenta, são do tipo Dressel 14 (fabricadas no Vale do Sado), datáveis dos séculos I-II d.C., e estavam vocacionadas para o transporte de pasta de peixe (garum). Tinham capacidade para 32-33 litros[5].

Embora aparentemente encontradas sem contexto, é muito provável que as ânforas do Mucifal, podendo fazer parte de um número maior do que aquele que foi referido, estivessem associadas ao abastecimento de um habitat que terá existido nesta área. Se bem que não se tenha relacionado, já em Agosto e Setembro de 1905, no âmbito de algumas peças arqueológicas que deram entrada no Museu Nacional de Arqueologia e Etnologia, também foi referida uma lista de objectos provenientes do Mucifal: 3 mós de pedra, 1 mediano romano de bronze, metade de um cossoiro, 9 machados de pedra, 64 pondera de barro e 1 capitel de calcário[6]. Ao que parece, embora não sendo certo, a descoberta destes materiais terá estado associada à realização de obras públicas, sendo que as evidências detectadas na altura terão levado a uma “exploração archeologica”[7].
Seja como for, estes materiais indiciam claramente a existência de um habitat romano na área do Mucifal (provavelmente uma villa[8]), que, à semelhança de outros locais de Sintra, Cascais e Mafra que têm vindo a ser estudados, estariam inseridos numa rede de trocas regional em ligação com Olisipo, onde as mercadorias em circulação teriam essencialmente um transporte naval[9].

locais onde foram detectados vestígios romanos.
Numa outra hipótese, referida oralmente por José Cardim Ribeiro, foi sugerido que as ânforas do Mucifal poderão estar associadas à produção local de preparados piscícolas e à existência de cetárias. À semelhança do que poderá ter acontecido no vale do Lizandro, é possível que nas margens do antigo rio de Colares tenham existido cetárias. Faltam trabalhos de prospecção arqueológica ao longo desta área antigamente invadida pelo mar, sendo que a densa acumulação de areia e vegetação presentes nas margens, um pouco a montante da praia das Maçãs, poderão estar a ocultar importantes vestígios arqueológicos.

Marco Oliveira Borges | 2018
[1] Marco Oliveira BORGES, “Portos e ancoradouros do litoral de Sintra-Cascais. Da Antiguidade à Idade Moderna (I)”, in Jornadas do Mar 2014. Mar: uma onda de progresso, Almada, Escola Naval, 2015, pp. 154-155; Maria Teresa CAETANO, Colares, 2.ª ed., Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 2016, pp. 13-24; Marco Oliveira BORGES, “Paisagem cultural marítima de Sintra: uma abordagem histórico-arqueológica”, in Pedro Fidalgo (coord.), Estudos de paisagem, vol. III, Lisboa, Instituto de História Contemporânea da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2017, pp. 255-262.
[2] Este pequeno artigo de divulgação histórica, ainda que tendo sido sujeito a pequenas modificações, foi retirado de um estudo mais alargado: Marco Oliveira BORGES, “Navegação comercial fluvio-marítima e povoamento no Ocidente do Municipium Olisiponense: em torno dos rios Lizandro (Mafra) e Colares (Sintra)”, in Carmen Soares, José Luís Brandão e Pedro C. Carvalho (coords.), História Antiga: relações interdisciplinares. Paisagens urbanas, rurais e sociais, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2018, pp. 238-240.
[3] Frederico Coelho PIMENTA, op. cit., pp. 135-137.
[4] Idem, ibidem, p. 137.
[5] Idem, ibidem, pp. 135-138 e 145-147. De uma forma geral, as ânforas Dressel 14 eram contentores largamente produzidos nas olarias da Lusitânia, mais concretamente no Algarve, nos vales do rio Tejo e do rio Sado, bem como em Peniche, entre meados do século I e inícios do século III d.C. Destinavam-se ao transporte dos preparados de peixe produzidos na Lusitânia, sendo estes contentores uma criação local que posteriormente seria imitada nos centros de produção bética (Victor FILIPE, “Importação e exportação de produtos alimentares em Olisipo: as ânforas romanas da Rua dos Bacalhoeiros”, in Revista Portuguesa de Arqueologia, 11: 2, 2008, p. 321).
[6] M. J. CAMPOS, “Acquisições do Museu Ethnologico Português”, in O Archeologo Português, XI, 1906, pp. 284, 287 e 289.
[7] Idem, ibidem, pp. 284 e 287.
[8] Élvio Melim de SOUSA e Eurico SEPÚLVEDA, “Artefactos romanos de seis estações arqueológicas do concelho de Mafra”, in Boletim Cultural 98, Mafra, Câmara Municipal de Mafra, 1999, p. 64.
[9] Maria José de ALMEIDA e Ana Catarina Bravo SOUSA, “O povoamento rural romano no concelho de Mafra”, in Boletim Cultural 95, Mafra, Câmara Municipal de Mafra, 1996, pp. 213-214; Marco Oliveira BORGES, “Portos e ancoradouros do litoral de Sintra-Cascais […]”, pp. 153-158; idem, “A importância do porto do Touro e do sítio arqueológico do Espigão das Ruivas (Cascais) entre a Idade do Ferro e a Idade Moderna”, in História. Revista da FLUP, IV: 6, 2016, pp. 178-179; idem, “Paisagem cultural marítima de Sintra […]”, pp. 250-255; idem, “Povoamento, estruturas e navegação na costa de Cascais entre a Idade do Ferro e o Período Islâmico” (no prelo).