Origem e decadência das Festas dos Pescadores de Cascais

Remontando a 1 de Setembro de 1964, as Festas dos Pescadores de Cascais, posteriormente designadas Festas do Mar, surgiram associadas às comemorações do VI centenário da vila. Impulsionadas pelo então comandante do porto de Cascais, realizaram-se na Praia da Ribeira, tendo atraído inúmeros espectadores interessados nas diferentes provas que foram disputadas.

Eis os objectivos dessas festas, as actividades que tiveram lugar nessa altura e que ficaram registadas no jornal A Nossa Terra:

A subida do pau ensebado. Fotografia: C. Camarate.

“O comandante do porto, sr. cap. tenente António Cardoso, não se poupou a esforços, mas conseguiu atingir o seu objectivo divertindo durante umas horas a gente simples do mar, que neste espaço de tempo esqueceu a rudeza da sua profissão e as lutas contra o invencível gigante, a cujas entranhas têm que arrancar o pão de cada dia.

Quer nas corridas de natação, pescadores – 400m, nadadores-salvadores  – 400m, rapazes – 200m e raparigas – 100m; nas regatas de chatas, de 2 a 3 remadores, na distância de 800m, ou nas corridas de sacos, quer na lide dos patos, exercício de varas ou na subida do pau ensebado, houve uma ilimitada alegria e apenas a satisfação de cada um mostrar quanto vale um dia de sã camaradagem.

Houve uma nota dominante de que lamentamos não poder publicar uma imagem, foi sem dúvida o banho das varinas. Cremos que a sua boa disposição contagiou a enorme assistência que por largo tempo as aplaudiu.

A «corrida» dos bravos patos foi também um espectáculo em que os «pirolitos» se misturaram com os desejos de agarrar o pato,  que contribuiu imenso para dar à festa o brilho que ela teve.

Parabéns, portanto, ao comandante sr. António Cardoso, a todos os organizadores e intervenientes da festa, que, achamos, se devia repetir mais anos para alegria de todos”[1].

O jornal A Nossa Terra voltou a dar conta das Festas dos Pescadores ocorridas em 1965, desta vez tendo sido realizadas em dois momentos distintos: o diurno, de carácter puramente desportivo e de destreza, e o nocturno, com danças, cantares e alegria, complementado com fogo-de-artifício modesto, saído das chatas que vagueavam lentamente à borda d’água[2].

No ano seguinte, realizadas com a colaboração da Casa dos Pescadores de Cascais, da Junta de Turismo da Costa do Sol, da Câmara Municipal e da Capitania de Cascais, estas festas viriam a incorporar um arraial e bailes, os quais tiveram lugar na esplanada em frente ao Hotel Baía[3].

Largada de patos (1964).
Fotografia: C. Camarate

Posteriormente, as Festas dos Pescadores foram enriquecidas com outras actividades, tais como garraiadas, a procissão de Nossa Senhora dos Navegantes e concertos. Contudo, a partir de meados da década de 2000, estas festas tradicionais começaram a perder a sua identidade, de tal modo que muitas pessoas locais já nem as consideram festas do mar, mas sim festas de Verão com concertos patrocinados pela CMC. De todas as actividades que atrás indicámos, só mesmo a dita procissão é que se manteve até aos nossos dias – tudo o resto que tinha a ver com o mar e os pescadores desapareceu!

Em pleno 2022, numa altura de acelerada descaracterização do centro histórico de Cascais e em que os pescadores casca(l)enses vão mostrando o seu desagrado pela forma como são tratados pela autarquia local, as chamadas Festas do Mar têm levantado grande polémica, de tal modo que não podemos ignorar o que se tem passado e aquilo que, em jeito de síntese, recentemente foi afirmado num post da página de Facebook “Pescadores OrigensdeCascais”:

“As festas da CMC

Houve tempo em que as “Festas do Mar” eram as festas dos pescadores e do mar. Hoje, nada têm a ver com esse denominador comum. Tristemente, o que se constata é que cada vez mais os pescadores e o mar são apenas o pretexto para a CMC organizar mais um evento/festival de Verão em que apoia tudo menos quem faz de Cascais a vila piscatória que tradicionalmente é.

Garraiada na praia da Ribeira (2000)

Os pescadores não estão, evidentemente, contra as Festas – aliás até são bem-vindas, sobretudo o momento tão querido aos pescadores que é o dia da procissão de Nossa Senhora dos Navegantes. Mas uma coisa é ser a favor das Festas, outra ser a favor DESTAS Festas: umas Festas em que a CMC não hesita em atropelar os pescadores e a sua vida diária.

Mudam a lota de local, o cais dos aprestos, onde todos os dias precisamos de acesso, porque é ali que trabalhamos a qualquer hora do dia sem condicionamentos, está agora limitado pelo posicionamento, à entrada do cais, de wc’s e roulotes de fastfood. Como se não houvesse mais sítio nenhum para os colocar. Senão bastasse, muitos de nós estamos agora privados de estacionamento a que tínhamos direito e estamos constantemente a ser multados no cais.

É, por isso, muito triste constatar que em vez de apoiar uma indústria onde trabalham mais de 100 pessoas para alimentar as suas famílias, para além de outras embarcações de pesca que fazem aqui porto, a CMC prefira continuar a prejudicar constantemente os pescadores, até nas suas Festas!

Deveriam copiar o bom exemplo da vila piscatória vizinha, Ericeira, onde os pescadores também fazem parte da sua identidade. Aí sim, são Festas do Mar. Uma vila onde o sector piscatório e sua tradição é acarinhado e protegido pelas suas gentes e dirigentes municipais. Isso é que é ser inclusivo”[4].

Algumas das tarjas colocadas há dias atrás, posteriormente removidas. Fotografia: Cascais. 24 horas.

O cenário é de tal modo preocupante que os pescadores, em sinal de protesto, exibiram, há poucos dias atrás, várias tarjas com frases no cais de aprestos[5]. Entretanto, um indivíduo desconhecido, que não faz parte da comunidade piscatória e que alegou estar a agir a mando de alguém com importantes funções na autarquia local, entrou no cais com uma faca para tentar remover essas tarjas, mas acabou por ser afastado do local[6].

No meio desta conjuntura surreal, alguns pescadores colocaram bandeiras negras nas embarcações e recusaram participar na procissão de Nossa Senhora dos Navegantes, realizada no passado dia 28 de Agosto. Aliás, no dia anterior, através da referida página de Facebook, havia sido dada uma explicação para tal:

“Queremos pedir desculpa aos cascalenses e a todas as gentes, por alguns de nós, em forma de protesto, com muito pesar, tristeza, porque somos todos crentes e a procissão será sempre o nosso momento nas festas. Este ano não estaremos presentes.

As bandeiras assinalam a nossa homenagem aos camaradas, familiares, desaparecidos e falecidos no mar assim como também representam o descontentamento e dificuldades que o sector piscatório atravessa no município.

Queremos também dizer e desejar a todas embarcações, camaradas e à população em geral que optam por realizar, acompanhar a procissão em terra e no mar, uma boa proa e que Deus nos acompanhe a todos”[7].

Por mais incrível que pareça, no meio disto tudo as redes sociais da autarquia local, assim como de alguns dos seus funcionários com cargos importantes, tentam passar a imagem de que tudo está bem. Aliás, face às críticas de que têm sido alvo, até reforçaram as publicações no Facebook envolvendo o mar e a pesca.

Talvez um dia as Festas do Mar voltem a recuperar a sua essência original, com várias actividades ligadas ao mar (mas sem animais), assim como os pescadores venham a ter o devido respeito e as condições necessárias para desenvolverem normalmente as suas actividades de trabalho. Se a História serve para algo, que sirva não apenas para valorizarmos os pescadores como meros actores do passado, mas também para compreendermos a sua importância no presente e no futuro de uma vila cujas raízes estão na pesca e em que as tradições devem ser reavivadas, mantidas e transmitidas aos vindouros.

Contudo, por agora, o cenário é outro: os interesses comandam, prioridades absurdas levam à descaracterização do centro histórico da vila, enquanto que a retórica, a máquina de propaganda e de favorecimento de imagem iludem a multidão. 

Marco Oliveira Borges | 2022


[1] “Festa dos Pescadores, em Cascais, integrada nas comemorações do VI centenário da vila”, A Nossa Terra, n.º 365, 1964, pp. 1 e 6.

[2] “Festas dos Pescadores”, A Nossa Terra, n.º 419, 1965, pp. 1 e 6.

[3] Manuel Eugénio Fernandes Silva e José Ricardo C. Fialho, Cascais e o mar, Cascais, União das Freguesias de Cascais e Estoril, 2019, p. 197.

[4] https://www.facebook.com/photo?fbid=737442120691381&set=a.104411107327822 (22/08/2022).

[5] “Pescadores de Cascais mostram indignação com faixas na baía”, Cascais. 24 horas, 25/08/2022 (disponível em https://www.cascais24.pt/p/pescadores-de-cascais-mostram.html?spref=fb&fbclid=IwAR3BLGcFVure91y8dxjfHikaXVkjWEM5Zziyms_wJu4tl9HgoNMMtPivtp8).

[6] “Armado com faca invade espaço de pescadores para cortar tarjas de indignação | Com vídeo”, Cascais. 24 horas, 25/08/2022 (disponível em https://www.cascais24.pt/p/armado-com-faca-invade-espaco-de.html?spref=fb&fbclid=IwAR0CsQiGWqWI4ijITgHwKSKZGoJsCk9I72e19rxuanVsfpYyHqhcV3j5Rns).

[7] https://www.facebook.com/photo?fbid=740263767075883&set=a.156819445420321 (27/08/2022).