Uma possível fortificação muçulmana no Monte Suímo (Sintra)

Fig. 7
Fig. 1 – Mapa do al-Ândalus e parte do Norte de África, c. 868 (simplificado).

Entre os séculos VIII e XII, o território dos actuais concelhos de Sintra e Cascais terá tido um papel importante no sistema de defesa costeira do Garb al-Ândalus[1]. Integrado na área ocidental marítima do distrito (kura) de Lisboa, este espaço estratégico, na rota das navegações para al-Ushbuna e para o mar Mediterrâneo, estaria dotado de estruturas defensivas e de alerta envolvidas num sistema que começaria a ganhar forma algures a partir do litoral de Sintra, ao mesmo tempo que os portos e ancoradouros locais permitiam apoiar as actividades marítimas e militares.

Terá sido o desencadear dos ataques vikings ao Ocidente Ibérico, com início em 844, alcançando Lisboa e chegando a estender-se ao mar Mediterrâneo, que despoletou uma maior atenção defensiva por parte das autoridades muçulmanas, reforçando-se o aparelho militar e o sistema de defesa costeira ao longo do litoral atlântico e do mar Interior. Sabe-se que o governo omíada reforçou a estrutura defensiva com a edificação de torres de vigia (buruj, pl. de burj) e a utilização de sítios elevados e estratégicos que funcionavam como atalaias[2] (tali’a, pl. de at-talai’a), bem como de diversas fortificações onde se incluíam castelos (husun, pl. de hisn) e conventos-fortificados (rubut, pl. de ribat). Acresce que foram tomadas medidas para a formação de uma marinha de guerra ampla e bem provida de projécteis incendiários, tendo-se recrutado marinheiros e mercenários de várias partes, alguns deles especializados no lançamento de fogo-grego[3]. Se os acontecimentos de 844 também levaram, poucos anos depois, à edificação de estaleiros de construção naval em Sevilha, é muito provável que o mesmo tenha ocorrido noutros pontos do al-Ândalus, inclusive na área ocidental.

mapa
Fig. 2 – Complexo defensivo no Baixo Vale do Tejo durante o Período Islâmico.

Para além das estruturas que estariam dispostas ao longo da costa de Sintra e Cascais, existiriam postos militares edificados mais para o interior. Al-Himyari (século XIII), para a região entre Lisboa e Sintra, refere a existência de uma montanha usada antigamente como reduto fortificado[4], o que poderia, à partida, sugerir algum local elevado no actual concelho de Cascais ou nas suas imediações. No entanto, em 1985, José Manuel Vargas colocou a hipótese de o local em causa ser o Monte Suímo, estando situado a Norte de Belas[5]. Este sítio costuma ser identificado como sendo Ossumo[6], uma das vilas do senhorio de Lisboa referidas por al-Razi (século X)[7].

Situado na serra da Carregueira, numa área em que hoje em dia se encontra uma instalação militar do Exército Português, o Monte Suímo é uma colina de forma arredondada de 291 m de altura, constituindo o maior relevo do conjunto de elevações desta serra. A sua localização privilegiada permite obter uma visão de quase 360º dos arredores, com vistas para Lisboa, estuário do Tejo, para toda a Península de Setúbal até à serra da Arrábida e para o Atlântico, sendo apenas interrompidas pelo perfil dominante da serra de Sintra[8].

O Monte Suímo é famoso pelas suas pedras, sobretudo jacintos, granadas e, em menor escala, esmeraldas. As referências a este local e à exploração do mesmo remontarão ao século I d.C., altura em que Plínio, o Velho, referiu que no território de Lisboa se recolhiam carbúnculos e gemas de intenso brilho e de grande qualidade. Outros autores romanos viriam a mencionar este local, denominando-o por Mons Summus, “monte máximo”[9].

Mina do Suimo, Belas. 1863 - GC
Fig. 3 – Representação da mina de Monte Suímo. Fonte: Archivo Pitoresco, 1863.

Durante o Período Islâmico alguns autores voltaram a aludir ao Munt Shiyun ou Monte Sião, bem como à exploração de minas e à existência de pedras preciosas num monte (ou montanha) das proximidades de Lisboa[10], embora sem ligarem as ditas pedras ao referido local. Em relação ao reduto fortificado atrás referido, parece que apenas al-Himyari – decerto baseado em al-Bakri, discípulo de al-Udhri – refere a sua existência. Neste sentido, a informação sobre o local fortificado já viria do século XI.

Se tivermos em conta a forte possibilidade de que esse reduto fortificado estaria mesmo edificado no Monte Suímo, até pela situação geográfica atrás descrita, capacidade de visualização e de comunicação a longa distância com outros locais importantes integrados na óptica do sistema defensivo que temos vindo a referir, quando é que teria sido erguido? Qual a sua tipologia? Até quando terá estado em funcionamento? Embora ainda não existam possíveis repostas para estas questões, observações efectuadas por Vítor Rafael Sousa e Rui Oliveira no Monte Suímo permitiram verificar a existência de fragmentos de telhas e outras cerâmicas cronologicamente enquadráveis no período alto-medieval/islâmico, bem como a existência de estruturas que poderão corresponder às ruínas de uma antiga fortificação (figs. 4 e 5)[11]. Porém, são necessários trabalhos arqueológicos para que se possa compreender realmente qual a realidade estrutural que subsistiu naquele local e se, de facto, os vestígios dizem respeito a uma antiga fortificação muçulmana.

Fig. 5
Fig. 4 – Ruínas de estruturas pétreas observáveis no Monte Suímo (foto: Vítor Rafael Sousa).
Fig. 6
Fig. 5 – Fragmentos de telhas alto-medievais/islâmicas no Monte Suímo (foto: Vítor Rafael Sousa).

Marco Oliveira Borges | 2019

[1] Este pequeno artigo de divulgação histórica, ainda que tendo sido sujeito a ligeiras modificações, foi adaptado de estudos mais alargados: Marco Oliveira BORGES, “A defesa costeira no distrito de Lisboa durante o período islâmico. I – A área a ocidente da cidade de Lisboa”, in João Luís Inglês Fontes et al. (coords.), Lisboa Medieval: Gentes, Espaços e Poderes. Textos seleccionados do III Colóquio Internacional “A Nova Lisboa Medieval” (Lisboa, FCSH/UNL, 20-22 de Novembro de 2013), Lisboa, Instituto de Estudos Medievais, 2017, pp. 67-104; idem, “Aspectos de militarização e defesa costeira no Garb al-Ândalus: o caso de Cascais”, in Revista Universitaria de Historia Militar, 6:11 (2017), pp. 172-196.

[2] As atalaias podiam ser estruturas arquitectónicas (normalmente turriformes) ou simples locais destacados na paisagem de onde se exercia a vigilância e alertava para a chegada de inimigos (cf. Mário BARROCA, “Atalaia”, in Jorge de Alarcão e Mário Barroca (coord.), Dicionário de Arqueologia Portuguesa, Porto, Figueirinhas, 2012, pp. 48-49).

[3] Sobre todas estas medidas, cf. ABENALCOTÍA, Historia de la conquista de España de Abenalcotía el Cordobés. Seguida de fragmentos históricos de Abencotaiba, etc., trad. de Ribera, Don Julián, Madrid, Tipografía de la Revista de Archivos, 1926, p. 53; António Borges COELHO, Portugal na Espanha Árabe, 3.ª ed. rev., Lisboa, Editorial Caminho, 2008, pp. 169 e 173; Jorge LIROLA DELGADO, El poder naval de al-Andalus en la época del califato omeya (siglo IV hégira/X era cristiana). Tesis doctoral, vol. I., Universidad de Granada, 1991, pp. 122-125; Christophe PICARD, La mer et les Musulmans d’occident au Moyen Age (VIIIe – XIIIe siècle), Paris, Presses Universitaires de France, 1997, pp. 148 e 156; Helena CATARINO, “Breve sinopse sobre topónimos Arrábida na costa portuguesa”, in Francisco Franco Sánchez (ed.), La Rábita en el Islam. Estudios Interdisciplinares. Congressos Internacionals de Sant Carles de la Ràpita (1989, 1997), Sant Carles de la Ràpita/Alacant, Ajuntament de Sant Carles de la Ràpita/Universitat d’Alacant, 2004, pp. 263-267; Fernando Branco CORREIA, “A acção do poder político nas actividades portuárias e na navegação no ocidente islâmico. Alguns tópicos”, in Jesús Angel Solórzano Telechea e Mário Viana (eds.), Economia e Instituições na Idade Média. Novas Abordagens, Ponta Delgada, Centro de Estudos Gaspar Frutuoso, 2013, pp. 14-38.

[4] AL-HIMYARI, Kitab arRawd alMi’tar, Valencia, Anubar, 1963, p. 17; António Borges COELHO, op. cit., p. 47.

[5] Cf. José Manuel VARGAS, “Presença árabe em terras de Sintra”, in Jornal Agualva-Cacém, n.º 1, 1985, p. 10; Eva-Maria VON KEMNITZ, “Sintra islâmica – reminiscências históricas, literárias e artísticas”, in Contributos para a História Medieval de Sintra. Actas do I Curso de Sintra (28 de Março – 2 de Junho de 2007), Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 2008, p. 59, n. 12.

[6] Cf. Gustavo MARQUES, Inscrição românica de Odivelas, Odivelas, Junta de Freguesia de Odivelas, 1986, p. 14; Sérgio Luís CARVALHO, “Acerca das minas do Suímo (Belas), sua identificação com Ossumo e respectiva exploração pela Coroa na Idade Média”, in Arqueologia do Estado. 1.as Jornadas sobre formas de organização e exercício dos poderes na Europa do Sul, séculos XIII-XVIII, Lisboa, História e Crítica, 1988, pp. 465-473; José Cardim Ribeiro, “Felicitas Ivlia Olisipo. Algumas considerações em torno do catálogo Lisboa Subterrânea”, sep. de Al-Madan, II: 3 (1994), p. 82. Outras possíveis localizações foram aduzidas por Adel SIDARUS e António REI, “Lisboa e seu termo segundo os geografos árabes”, in Arqueologia Medieval, 7 (2001), pp. 41-42, 48 e 54; António REI, “Ocupação humana no alfoz de Lisboa durante o período islâmico (714‐1147)”, in A Nova Lisboa Medieval. Actas do I Encontro, Lisboa, Edições Colibri, 2001, p. 31; Jorge de Alarcão, “Notas de Arqueologia, epigrafia e toponímia – V”, in Revista Portuguesa de Arqueologia, Lisboa, 11: 1 (2008), pp. 115-116; André de OLIVEIRA-LEITÃO, O Povoamento no Baixo Vale do Tejo: entre a territorialização e a militarização (meados do século IXinício do século XIV). Dissertação de Mestrado, Universidade de Lisboa, 2011, p. 31; António REI, O Gharb al-Andalus al-Aqsa na Geografia Arabe (seculos III h. / IX d.C. – XI h. / XVII d.C.), Lisboa, Instituto de Estudos Medievais, 2012, pp. 149 e 192.

[7] António Borges COELHO, op. cit., p. 37.

[8] M. CACHÃO, P. E. FONSECA, R. Galopim de CARVALHO, C. Neto de CARVALHO, R. OLIVEIRA, M. M. FONSECA e J. MATA, “A mina de granadas do Monte Suímo: de Plínio-o-Velho e Paul Choffat à actualidade”, in E-Terra. Revista Electrónica de Ciências da Terra, 18: 20 (2010), p. 2.

[9] Cf. Sérgio Luís CARVALHO, op. cit., pp. 466-468.

[10] Cf. António REI, op. cit., pp. 123, 125, 144, 149 e 192.

[11] Agradecemos a Rui Oliveira e a Vítor Rafael Sousa pelas indicações e contributo fotográfico.

Diogo Cão em Cascais com o prisioneiro Eustache de La Fosse (1480)

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Fig. 1 – Capa da obra Crónica de uma viagem à costa da Mina no ano de 1480.

Decorria o ano de 1480 quando aportou em Cascais uma armada portuguesa possivelmente liderada por Diogo Cão[1], navegador que mais tarde viria a realizar 2 ou 3 viagens de exploração pela costa ocidental africana em busca do extremo Sul do continente[2]. A armada vinha da Costa da Mina, trazendo como prisioneiro Eustache de La Fosse, mercador flamengo que integrava uma expedição castelhana de 3 caravelas que haviam sido capturadas nessa área do Golfo da Guiné e que, anos mais tarde, viria a escrever um relato detalhado da sua viagem (fig. 1).

Chegado às águas da Mina a 17 de Dezembro de 1479, e estando numa área interdita a estrangeiros, Eustache de La Fosse já havia andado a comerciar escravos, preparando-se agora para atingir a aldeia portuária das Duas Partes. Este local estava situado na região de maior afluxo de ouro do Golfo da Guiné, próximo do sítio onde viria a ser erguida a feitoria-fortaleza da Mina. No entanto, antes de chegar àquela aldeia, a caravela de Eustache de La Fosse acabaria por ser atacada e interceptada por 4 caravelas sob comando aparente de Diogo Cão (7 de Janeiro de 1480). No dia anterior já as outras 2 caravelas castelhanas que integravam a expedição haviam sido capturadas pelos portugueses e levadas para a Mina[3].

Golfo da Guiné
Fig. 2 – Golfo da Guiné.
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Fig. 3 – Feitoria-fortaleza da Mina. Fonte: Georg Braun, Civitates orbis terrarum, 1572.

Pelo tratado de Alcáçovas, firmado a 4 de Setembro de 1479 por Portugal e Castela, celebrava-se a paz entre os dois reinos, pondo-se fim a uma guerra que vinha desde 1475. Nesse tratado Castela comprometia-se a reconhecer o direito português aos arquipélagos dos Açores e da Madeira, bem como a todas as terras e ilhas já descobertas ou que viessem a ser descobertas a Sul das Canárias, reservando-se a navegação e o exclusivo comercial para Portugal. Portanto, ficava acordado que doravante apenas os portugueses poderiam navegar para Sul daquele arquipélago.

Neste seguimento, a presença de Eustache de La Fosse no Golfo da Guiné era uma clara violação do tratado recentemente firmado, pelo que os portugueses fizeram legítimo uso da força contra as 3 caravelas que se aventuraram por aquelas paragens. A rainha castelhana D. Isabel continuava a enviar outros navios secretamente para a Costa da Mina, facto que levou D. Afonso V, no dia 6 de Abril de 1480 (um mês após a ratificação do tratado de Alcáçovas), a conceder certos poderes aos capitães que o príncipe D. João enviava àquelas partes. Com efeito, ordenava-se que fosse apresado qualquer navio que violasse a linha de demarcação estabelecida no tratado, tanto de Castela como de outro Reino, e que as suas tripulações fossem lançadas ao mar “pera que mouram logo naturallmemte”[4].

Eustache de La Fosse, os seus homens e os das outras caravelas não foram lançados ao mar, uma vez que foram capturados três meses antes de o rei português ter dado aquelas ordens, as quais ainda não tinham chegado a Diogo Cão e aos restantes portugueses envolvidos na captura. Devido ao facto de terem feito muitos prisioneiros, os portugueses acabariam por libertar os marinheiros intrusos e o seus ajudantes. Devolveram-lhes uma das caravelas castelhanas e deixaram que partissem rumo a Castela com alguma água, biscoito, uma vela e uma âncora. No entanto, os restantes não tiveram tanta sorte. Na indecisão sobre o castigo que deveria ser aplicado aos homens mais importantes, ficou determinado que o mercador flamengo e outros seriam levados para Portugal. Já de regresso ao Reino, a última escala que a armada portuguesa fez foi nas ilhas de Cabo Verde. Sem haver mais informações de terra firme ou ilhas, nem sequer a passagem pelos Açores, que habitualmente era feita com recurso à volta pelo largo, os navios chegaram à costa portuguesa e ancoraram em Cascais:

         “E após várias jornadas mais [eis que] chegámos a Portugal na véspera do Pentecostes, cerca da meia-noite e deitámos âncora [frente] a Cascalaix [Cascais], vila que se situa na embocadura do rio de Lisboa. Logo na manha seguinte foi-se um cavaleiro até ao Rei para lhe anunciar a chegada das caravelas [vindas] da Mina de Ouro. Fomo-nos para Setomire [Setúbal], pois a peste reinava em Lisboa, e ali compareceram os comissários do Rei para se inteirarem sobre as novas anunciadas: o que trazíamos da Mina, o que era a semente do paraíso – e também para decidir o que seria feito de nós, [uma vez que] portugueses não éramos […]”[5].

Conforme atesta o trecho, quando as caravelas da Mina chegaram a Cascais deparam-se com dois factores que não permitiram a continuação da viagem para Lisboa. O primeiro tem a ver com o facto de a chegada àquele porto ter acontecido perto da meia-noite, sendo que não se arriscava uma entrada nocturna na sempre perigosa barra do Tejo, situação que obrigou os navios a permanecerem em Cascais até ao dia seguinte. O segundo factor está ligado ao surto de peste que grassava em Lisboa e que condicionava fortemente a viagem para a capital. Aliás, como aconteceu em muitos outros casos em que estava afectada a saúde pública devido a surtos de peste mais persistentes, chegava-se a proibir a entrada no rio Tejo e a continuação da viagem para Lisboa[6].

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Fig. 4 – O porto de Cascais em finais do século XV. Fonte: Georg Braun, Civitates orbis terrarum, 1572.

No dia seguinte à chegada a Cascais as caravelas rumaram a Setúbal. Quanto a Eustache de La Fosse, esse acabaria por ser condenado à forca por viajar até à Costa da Mina sem autorização do rei português. Porém, antes da execução da sentença e mediante a promessa de 200 cruzados a serem pagos em Sevilha, o flamengo conseguiu fazer razoado concerto com o carcereiro da prisão (Alcácer do Sal) acabando por fugir com alguns dos seus homens[7]. Muitos anos depois veio a legar-nos uma magnífica descrição onde abordou as peripécias da sua viagem à Costa da Mina e o consequente transporte como prisioneiro para Portugal, feito na sua própria caravela (La Mondadine), mas sob comando de Diogo Cão.

Marco Oliveira Borges | 2016

[1] Cf. Marco Oliveira BORGES, O porto de Cascais durante a Expansão Quatrocentista. Apoio à navegação e defesa costeira. Dissertação de Mestrado em História Marítima, Universidade de Lisboa, 2012, pp. 71-72.

[2] António Manuel GONÇALVES, “Diogo Cão”, in Francisco Contente DOMINGUES (dir.), Dicionário da Expansão Portuguesa, 1415-1600, vol. I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2016, pp. 209-211.

[3] Eustache de LA FOSSE, Crónica de uma Viagem à Costa da Mina no ano de 1480. Pról. de Joaquim Montezuma de CARVALHO. Trad. e adaptação do texto por Pedro ALVIM, Lisboa, Vega, 1992, pp. 62-63.

[4] Cf. Alguns documentos do Archivo Nacional da Torre do Tombo acerca das navegações e conquistas portuguesas […], Lisboa, Imprensa Nacional, 1892, pp. 45-46; Damião PERES, História dos descobrimentos portugueses, 4.ª ed., Porto, Vertente, 1992, p. 195; Ana Maria Pereira FERREIRA, Problemas marítimos entre Portugal e a França na primeira metade do século XVI, Cascais, Patrimónia Histórica, 1995, p. 218, n. 292.

[5] Eustache de LA FOSSE, op. cit., pp. 69-71.

[6] Marco Oliveira BORGES, op. cit., pp. 66 e 72.

[7] Eustache de LA FOSSE, op. cit., pp. 71-81.

Apontamentos sobre Sintra e Cascais durante a Idade Média

Moinho
Fig. 1 – Moinho de vento com a serra de Sintra como pano de fundo (Alcabideche).           Fotografia: Alexandra Morais

As relações entre Sintra e Cascais durante a Idade Média, territórios intimamente ligados entre si desde tempos recuados, foram sendo parcialmente apontadas por alguns investigadores que se dedicaram ao estudo da História de Cascais durante o século XX. Essas relações acabariam por ganhar maior importância já em finais da década de 1980, isto com as investigações desenvolvidas por A. H. de Oliveira Marques. O historiador cascalense, no seguimento das investigações que estava a realizar sobre o seu concelho natal, chegou mesmo a proferir uma conferência intitulada “Sintra e Cascais na Idade Média” (Palácio Nacional de Sintra, 3/7/1987), tendo o texto de apoio sido publicado no ano posterior[1].

Não crendo na teoria de que o topónimo Sintra pudesse ter surgido durante o Período Romano, Oliveira Marques referiu que tinha indiscutivelmente uma origem árabe, se bem que não se soubesse o étimo (árabe ou berbere) que lhe deu lugar. O historiador destacou que Sintra já era uma importante cidade nos séculos X e XI, se não antes, vindo referida entre os autores muçulmanos como um dos grandes povoados que existia no Ocidente da Península Ibérica (Garb al-Ândalus). Em relação ao território de Cascais, e à semelhança de Sintra, a toponímia de raiz árabe atestava uma colonização abundante e com estabelecimentos novos durante os quase quatro séculos e meio de ocupação muçulmana. Destaque para o topónimo Alcabideche, pequeno povoado na dependência de Sintra, decerto a ela ligado por estrada[2]. De Alcabideche era natural Abu Zaid Ibn Muqana al-Qabdaqi al-Ushbuni, famoso poeta que deu a conhecer a existência de moinhos de vento nessa área.

O interesse pelas relações entre Sintra e Cascais durante a Idade Média ainda hoje é visível entre os investigadores, sendo que os trabalhos recentes têm trazido diversas novidades, seja para o Período Islâmico como para os séculos XIV-XV. Para o primeiro caso, tem-se fortalecido a ideia de que durante aquele período histórico começara a ganhar forma um sistema de defesa costeira a partir de Sintra que teria necessária continuação pelo actual litoral cascalense[3], embora Cascais não tenha sido alvo da atenção dos autores muçulmanos, os quais, aliás, não tiveram em conta a realidade portuária entre a costa de Sintra e o porto de Cascais, se bem que exista uma possível descrição da Boca do Inferno[4]. De forma comprovada, existem somente as descrições relativas a Alcabideche, nomeadamente por intermédio de Ibn Muqana (século XI)[5]. Nem mesmo o foral de Sintra de 1154 (o qual chegou até aos nossos dias através de dois traslados feitos no século XV) alude a Cascais como parte integrante do termo sintrense, ainda que durante o século X devesse existir um iqlim em Sintra que englobaria Cascais e Mafra nos limites do seu termo[6]. É verdade que existem referências à passagem dos cruzados que auxiliaram na “Reconquista” de Lisboa (1147) pelo porto de Cascais, com expressa alusão a este topónimo, mas essas informações, se bem que alegadamente baseadas numa memória documental do século XII, aparecem muito tardiamente[7]. É num documento de 1282 que, pela primeira vez, o topónimo “Cascays” vem atestado (fig. 2). Em todo o caso, nos últimos tempos tem ganho forma a forte possibilidade de que o topónimo Cascais possa mesmo ter uma origem árabe, estando associado ao contexto de defesa costeira do al-Ândalus[8].

1282
Fig. 2 – Alusão documental mais antiga que se conhece ao topónimo “Cascays”. Fonte: ANTT, Chancelaria de D. Dinis, liv. I, fls. 46v-47.

Um aspecto bastante sintomático das relações entre Sintra e Cascais, e que se destaca na documentação dos séculos XIV-XV, são os conflitos jurisdicionais que opuseram os poderes locais e os habitantes destes dois territórios. A aldeia de Cascais foi elevada a vila em 1364, ficando isenta da sujeição a Sintra[9], mas só em 1370 conseguiu a criação do seu termo, desmembrando-se assim do território sintrense[10], que se regia pelo foral outorgado por D. Afonso Henriques em 1154. No entanto, mesmo depois da criação do termo e senhorio cascalense surgiram diversas dúvidas e cobiças territoriais, até porque doravante algumas pessoas passaram a ter propriedades nas zonas de fronteira entre ambos os territórios, por vezes não se sabendo exactamente em que local começava a fronteira ou fazendo-se vista grossa. Na verdade, os sintrenses não viram com bons olhos a desanexação do território de Cascais. Em 1387, num dos muitos problemas que surgiram, a rainha D. Filipa de Lencastre, que havia entrado na posse de Sintra, tentou apossar-se de Cascais. A situação levou a um conflito com os funcionários do doutor João das Regras, na altura senhor de Cascais, vindo este a conseguir de D. João I uma carta de confirmação dos seus direitos sobre este senhorio[11].

Termo de Cascais
Fig. 3 – Termo de Cascais nos séculos XIV-XV. Fonte: A. H. de Oliveira Marques.

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Fig. 4 – D. Filipa de Lencastre. Fonte: Manuela Santos Silva, A rainha inglesa de Portugal. D. Filipa de Lencastre, Círculo de Leitores, 2012.

Um outro elemento fundamental nas relações entre Sintra e Cascais foi o porto cascalense. Embora o esteiro de Colares tenha funcionado como porto de Sintra ainda durante o Período Islâmico, escoando-se por ali mercadorias para Lisboa, actividade que remontaria pelo menos ao Período Romano[12], terá deixado de ser navegável durante os séculos XII-XIII[13]. Assim, não admira que anteriormente a 1377 o escoamento da produção vinda do hinterland[14] sintrense e que era destinada a Lisboa, Sevilha e a outros locais, incluindo ao Mediterrâneo[15], já fosse feito através de Cascais, que funcionava como porto de Sintra[16].

Marco Oliveira Borges | 2016

[1] A. H. de Oliveira MARQUES, “Sintra e Cascais na Idade Média”, in Novos Ensaios de História Medieval Portuguesa, Lisboa, Editorial Presença, 1988, pp. 144-153.

[2] Idem, ibidem, pp. 145-146.

[3] Marco Oliveira BORGES, “A defesa costeira do litoral de Sintra-Cascais durante o Garb al-Ândalus. I – Em torno do porto de Colares”, in História. Revista da FLUP, IV: 2 (2012), pp. 109-128; idem, “A defesa costeira do litoral de Sintra-Cascais durante a Época Islâmica. II – Em torno do porto de Cascais”, in Ana CUNHA, Olímpia PINTO e Raquel de Oliveira MARTINS (coord.), Paisagens e Poderes no Medievo Ibérico. Actas do I Encontro Ibérico de Jovens Investigadores em História Medieval. Arqueologia, História e Património, Braga, Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória», Universidade do Minho, 2014, pp. 409-441. Recentemente, no âmbito do programa televisivo “Caminhos” (RTP2), tivemos a oportunidade de participar num episódio sobre “A defesa costeira no litoral de Sintra-Cascais durante o Período Islâmico”. O episódio pode ser visto através da seguinte ligação: https://www.youtube.com/watch?v=xVvG-KbkVvw&feature=em-upload_owner (consultado em 10-05-2015).

[4] Cf. Fátima ROLDÁN CASTRO, El Occidente de Al-Andalus en el Atar al-Bilad de al-Qazwīnī, Sevilla, Ediciones Alfar, 1990, p. 91; Adel SIDARUS e António REI, “Lisboa e seu termo segundo os geógrafos árabes”, in Arqueologia Medieval, 7 (2001), pp. 45-46 e 55-56; António REI, O Gharb al-Andalus al-Aqsâ na Geografia Árabe (séculos III h. / IX d.C. – XI h. / XVII d.C.), Lisboa, Instituto de Estudos Medievais, 2012, p. 123, n. 3.

[5] O poeta nasceu em Alcabideche, em inícios do século XI ou finais do anterior. É provável que não tenha vivido muito para além de 1068 (cf. António Borges COELHO, Portugal na Espanha Árabe, 3.ª ed. rev., Lisboa, Editorial Caminho, 2008, pp. 524-525 e 552, n. 44).

[6] Alguns indícios levam a crer “que a figura do Iqlim em torno das grandes cidades poderá corresponder à área sobre a qual o aglomerado exerce um controlo económico e espacial” (Catarina COELHO, “A ocupação islâmica do Castelo dos Mouros (Sintra): interpretação comparada”, in Revista Portuguesa de Arqueologia, 3: 1 (2000), p. 208).

[7] Cf. Marco Oliveira BORGES, “Em torno da preparação do cerco de Lisboa (1147) e de uma possível estratégia marítima pensada por D. Afonso Henriques”, in História. Revista da FLUP, IV: 3 (2013), pp. 127-129. Disponível em https://www.academia.edu/5666143/Em_torno_da_prepara%C3%A7%C3%A3o_do_cerco_de_Lisboa_1147_e_de_uma_poss%C3%ADvel_estrat%C3%A9gia_mar%C3%ADtima_pensada_por_D._Afonso_Henriques_2013_http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/11716.pdf.

[8] Cf. Marco Oliveira BORGES e Helena Condeço de CASTRO, “O navegador muçulmano Khashkhash e a possível ligação com o topónimo Cascais: problemas e possibilidades”, in Arquivo de Cascais. História, Memória, Património, 14 (2015), pp. 6-29.

[9] Cf. A. H. de Oliveira MARQUES, Carta de Vila de Cascais de 1364. Estudo e transcrição de […], Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1989, pp. 5-18.

[10] ANTT, Chancelaria de D. Fernando, liv. 1, fl. 56.

[11] Cf. Chancelarias Portuguesas. D. João I, vol. II, t. I, Lisboa, Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 2005, pp. 151-152, doc. 261; A. H. de Oliveira MARQUES, “Sintra e Cascais na Idade Média”, p. 152.

[12] Marco Oliveira BORGES, “A defesa costeira do litoral de Sintra-Cascais durante o Garb al-Ândalus. I […]”, pp. 118-119; idem, “Portos e ancoradouros do litoral de Sintra-Cascais. Da Antiguidade à Idade Moderna (I)”, in Jornadas do Mar 2014. Mar: uma onda de progresso, Almada, Escola Naval, pp. 152-164. Disponível para consulta e descarregamento gratuito em https://www.academia.edu/22073421/Portos_e_ancoradouros_do_litoral_de_Sintra-Cascais._Da_Antiguidade_%C3%A0_Idade_Moderna_I_2015.

[13] Mais provavelmente durante o século XII, devendo ainda ter servido de acesso ao interior do território quando Sigurd atacou Sintra em 1109 (cf. Maria Teresa CAETANO, Colares, Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 2000, p. 41; Marco Oliveira BORGES, “A defesa costeira do litoral de Sintra-Cascais durante o Garb al-Ândalus. I […]”, pp. 124-125; idem, O porto de Cascais durante a Expansão Quatrocentista. Apoio à navegação e defesa costeira. Dissertação de Mestrado em História Marítima, Universidade de Lisboa, 2012, pp. 167-168; idem, “Portos e ancoradouros do litoral de Sintra-Cascais. Da Antiguidade à Idade Moderna (I)”, p. 160).

[14] Sobre este conceito, cf. Marco Oliveira BORGES, “Hinterland”, in José Vicente SERRÃO, Márcia MOTTA e Susana Münch MIRANDA (dir.), E-Dicionário da Terra e do Território no Império Português, Lisboa, CEHC-IUL, 2016. Disponível em https://edittip.net/category/hinterland/.

[15] Sobre este assunto e teias comerciais envolvidas, cf. idem, O porto de Cascais […], pp. 94-102.

[16] A. H. de Oliveira MARQUES, op. cit., p. 151.