Mar agitado na zona da Boca do Inferno (postal antigo).
Possível antiga gruta que foi sofrendo uma forte erosão através da violenta acção do mar ao longo do tempo, a Boca do Inferno é uma das grandes atracções turísticas do concelho de Cascais. Foi em 2011, no âmbito das investigações que estávamos a desenvolver sobre a militarização na área costeira ocidental do distrito (kura) de Lisboa durante o Período Islâmico, que tivemos conhecimento do tema que agora trazemos ao leitor.
Baseado em al‐Udhri (1002‐1085), al‐Qazwini (1203‐1283), historiador e geógrafo nascido na Pérsia, referiu “una gran cueva en la que penetran las olas del mar, su entrada está en un monte muy alto. Así, pues, cuando afluyen las olas del mar a dicha cueva, ves el monte moverse al mismo tempo que ellas. Quien lo observa, lo ve alternativamente subir y bajar”[1].
Dada a descrição ser alusiva a um local nas imediações de Lisboa, Adel Sidarus e António Rei colocaram a hipótese de os autores se quererem reportar à Boca do Inferno[2]. Mais recentemente, António Rei referiu que essa visão teria sido “certamente obtida a bordo de um barco. Eventualmente observado na zona das actuais Cascais e Boca do Inferno, e em que o monte muito alto em que se inseriria a gruta, poderia ser a Serra de Sintra, que lhe fica sobranceira”[3].
Outro aspecto do mar agitado na zona da Boca do Inferno (postal antigo).Interior da Boca do Inferno.
Muito embora as indicações daqueles autores medievais e as consequentes interpretações historiográficas levantem dúvidas e sejam discutíveis quanto ao enquadramento geográfico da Boca do Inferno, é preciso ter em conta que era bastante frequente que as informações de obras antigas (crónicas, descrições, relatos de viagem, etc.) fossem sendo copiadas ao longo dos séculos, mas alterando-se e acrescentando-se alguns pormenores, por vezes sem se visitarem os locais abordados. Consequentemente, isso dava origem a frequentes imprecisões descritivas relativamente a esses mesmos locais, uma vez que não era tida em conta a verdadeira geografia dos sítios, pelo menos na sua plenitude, situação que chegou a acontecer relativamente a Sintra[4].
Entretanto, depois da publicação inicial deste pequeno artigo, Rui Oliveira, Guilherme Cardoso e Maurício Barra alertaram para a possibilidade de os autores medievais se quererem reportar ao Fojo, na costa de Sintra, mais concretamente a Sul da praia da Adraga, e não à Boca do Inferno. Embora al‐Qazwini, seguindo al‐Udhri, não coloque em Sintra a “gran cueva en la que penetran las olas del mar”, mas sim algures nas proximidades de Lisboa, pelos argumentos indicados no parágrafo anterior é possível que o local em causa fosse mesmo na costa sintrense, portanto, o Fojo. Seja como for, fica a dúvida entre os dois locais referidos.
Indicação do Fojo, na costa de Sintra, junto à Pedra de Alvidrar.Fojo da costa de Sintra. Adaptado de: http://umgrandehotel.blogspot.comMapa do al-Ândalus e parte do Norte de África, c. 868 (simplificado).
Marco Oliveira Borges | 2019
[1] Fátima Roldán Castro, El Occidente de Al–Andalus en el Atar al–Bilad de al–Qazwīnī, Sevilla, Ediciones Alfar, 1990, p. 91.
[2] Adel Sidarus e António Rei, “Lisboa e seu termo segundo os geógrafos árabes”, in Arqueologia Medieval, 7 (2001), pp. 45‐46 e 55‐56.
[3] António Rei, O Gharb al–Andalus al–Aqsâ na Geografia Árabe (séculos III h. / IX d.C. – XI h. / XVII d.C.), Lisboa, Instituto de Estudos Medievais, 2012, p. 123, n. 3.
[4] Cf. Marco Oliveira Borges, “A defesa costeira do litoral de Sintra‐Cascais durante o Garb al‐Ândalus. I – Em torno do porto de Colares”, in História. Revista da FLUP, IV: 2 (2012), p. 122, n. 70. Para uma visão aprofundada do sistema defensivo da área ocidental do distrito (kura) de Lisboa durante o Período Islâmico, cf. Marco Oliveira Borges, “A defesa costeira no distrito de Lisboa durante o período islâmico. I – A área a ocidente da cidade de Lisboa”, in João Luís Inglês Fontes et al. (coords.), Lisboa Medieval: Gentes, Espaços e Poderes. Textos seleccionados do III Colóquio Internacional “A Nova Lisboa Medieval” (Lisboa, FCSH/UNL, 20-22 de Novembro de 2013), Lisboa, Instituto de Estudos Medievais, pp. 67-104; idem, “A importância estratégica do conhecimento do território na formação de um sistema defensivo: o caso de Sintra (Portugal) durante o Período Islâmico”, in Anuario de Historia Regional y de las Fronteras, 22: 2 (2017), pp. 17-48; idem, “Aspectos de militarização e defesa costeira no Garb al-Ândalus: o caso de Cascais”, in Revista Universitaria de Historia Militar, 6:11 (2017), pp. 172-196. Os artigos podem ser descarregados integralmente acedendo a este endereço: https://lisboa.academia.edu/MarcoOliveiraBorges
Fig. 1 – Mapa do al-Ândalus e parte do Norte de África, c. 868 (simplificado).
Entre os séculos VIII e XII, o território dos actuais concelhos de Sintra e Cascais terá tido um papel importante no sistema de defesa costeira do Garb al-Ândalus[1]. Integrado na área ocidental marítima do distrito (kura) de Lisboa, este espaço estratégico, na rota das navegações para al-Ushbuna e para o mar Mediterrâneo, estaria dotado de estruturas defensivas e de alerta envolvidas num sistema que começaria a ganhar forma algures a partir do litoral de Sintra, ao mesmo tempo que os portos e ancoradouros locais permitiam apoiar as actividades marítimas e militares.
Terá sido o desencadear dos ataques vikings ao Ocidente Ibérico, com início em 844, alcançando Lisboa e chegando a estender-se ao mar Mediterrâneo, que despoletou uma maior atenção defensiva por parte das autoridades muçulmanas, reforçando-se o aparelho militar e o sistema de defesa costeira ao longo do litoral atlântico e do mar Interior. Sabe-se que o governo omíada reforçou a estrutura defensiva com a edificação de torres de vigia (buruj, pl. de burj) e a utilização de sítios elevados e estratégicos que funcionavam como atalaias[2] (tali’a, pl. de at-talai’a), bem como de diversas fortificações onde se incluíam castelos (husun, pl. de hisn) e conventos-fortificados (rubut, pl. de ribat). Acresce que foram tomadas medidas para a formação de uma marinha de guerra ampla e bem provida de projécteis incendiários, tendo-se recrutado marinheiros e mercenários de várias partes, alguns deles especializados no lançamento de fogo-grego[3]. Se os acontecimentos de 844 também levaram, poucos anos depois, à edificação de estaleiros de construção naval em Sevilha, é muito provável que o mesmo tenha ocorrido noutros pontos do al-Ândalus, inclusive na área ocidental.
Fig. 2 – Complexo defensivo no Baixo Vale do Tejo durante o Período Islâmico.
Para além das estruturas que estariam dispostas ao longo da costa de Sintra e Cascais, existiriam postos militares edificados mais para o interior. Al-Himyari (século XIII), para a região entre Lisboa e Sintra, refere a existência de uma montanha usada antigamente como reduto fortificado[4], o que poderia, à partida, sugerir algum local elevado no actual concelho de Cascais ou nas suas imediações. No entanto, em 1985, José Manuel Vargas colocou a hipótese de o local em causa ser o Monte Suímo, estando situado a Norte de Belas[5]. Este sítio costuma ser identificado como sendo Ossumo[6], uma das vilas do senhorio de Lisboa referidas por al-Razi (século X)[7].
Situado na serra da Carregueira, numa área em que hoje em dia se encontra uma instalação militar do Exército Português, o Monte Suímo é uma colina de forma arredondada de 291 m de altura, constituindo o maior relevo do conjunto de elevações desta serra. A sua localização privilegiada permite obter uma visão de quase 360º dos arredores, com vistas para Lisboa, estuário do Tejo, para toda a Península de Setúbal até à serra da Arrábida e para o Atlântico, sendo apenas interrompidas pelo perfil dominante da serra de Sintra[8].
O Monte Suímo é famoso pelas suas pedras, sobretudo jacintos, granadas e, em menor escala, esmeraldas. As referências a este local e à exploração do mesmo remontarão ao século I d.C., altura em que Plínio, o Velho, referiu que no território de Lisboa se recolhiam carbúnculos e gemas de intenso brilho e de grande qualidade. Outros autores romanos viriam a mencionar este local, denominando-o por Mons Summus, “monte máximo”[9].
Fig. 3 – Representação da mina de Monte Suímo. Fonte: Archivo Pitoresco, 1863.
Durante o Período Islâmico alguns autores voltaram a aludir ao Munt Shiyun ou Monte Sião, bem como à exploração de minas e à existência de pedras preciosas num monte (ou montanha) das proximidades de Lisboa[10], embora sem ligarem as ditas pedras ao referido local. Em relação ao reduto fortificado atrás referido, parece que apenas al-Himyari – decerto baseado em al-Bakri, discípulo de al-Udhri – refere a sua existência. Neste sentido, a informação sobre o local fortificado já viria do século XI.
Se tivermos em conta a forte possibilidade de que esse reduto fortificado estaria mesmo edificado no Monte Suímo, até pela situação geográfica atrás descrita, capacidade de visualização e de comunicação a longa distância com outros locais importantes integrados na óptica do sistema defensivo que temos vindo a referir, quando é que teria sido erguido? Qual a sua tipologia? Até quando terá estado em funcionamento? Embora ainda não existam possíveis repostas para estas questões, observações efectuadas por Vítor Rafael Sousa e Rui Oliveira no Monte Suímo permitiram verificar a existência de fragmentos de telhas e outras cerâmicas cronologicamente enquadráveis no período alto-medieval/islâmico, bem como a existência de estruturas que poderão corresponder às ruínas de uma antiga fortificação (figs. 4 e 5)[11]. Porém, são necessários trabalhos arqueológicos para que se possa compreender realmente qual a realidade estrutural que subsistiu naquele local e se, de facto, os vestígios dizem respeito a uma antiga fortificação muçulmana.
Fig. 4 – Ruínas de estruturas pétreas observáveis no Monte Suímo (foto: Vítor Rafael Sousa).Fig. 5 – Fragmentos de telhas alto-medievais/islâmicas no Monte Suímo (foto: Vítor Rafael Sousa).
Marco Oliveira Borges | 2019
[1] Este pequeno artigo de divulgação histórica, ainda que tendo sido sujeito a ligeiras modificações, foi adaptado de estudos mais alargados: Marco Oliveira BORGES, “A defesa costeira no distrito de Lisboa durante o período islâmico. I – A área a ocidente da cidade de Lisboa”, in João Luís Inglês Fontes et al. (coords.), Lisboa Medieval: Gentes, Espaços e Poderes. Textos seleccionados do III Colóquio Internacional “A Nova Lisboa Medieval” (Lisboa, FCSH/UNL, 20-22 de Novembro de 2013), Lisboa, Instituto de Estudos Medievais, 2017, pp. 67-104; idem, “Aspectos de militarização e defesa costeira no Garb al-Ândalus: o caso de Cascais”, in Revista Universitaria de Historia Militar, 6:11 (2017), pp. 172-196.
[2] As atalaias podiam ser estruturas arquitectónicas (normalmente turriformes) ou simples locais destacados na paisagem de onde se exercia a vigilância e alertava para a chegada de inimigos (cf. Mário BARROCA, “Atalaia”, in Jorge de Alarcão e Mário Barroca (coord.), Dicionário de Arqueologia Portuguesa, Porto, Figueirinhas, 2012, pp. 48-49).
[3] Sobre todas estas medidas, cf. ABENALCOTÍA, Historia de la conquista de España de Abenalcotía el Cordobés. Seguida de fragmentos históricos de Abencotaiba, etc., trad. de Ribera, Don Julián, Madrid, Tipografía de la Revista de Archivos, 1926, p. 53; António Borges COELHO, Portugal na Espanha Árabe, 3.ª ed. rev., Lisboa, Editorial Caminho, 2008, pp. 169 e 173; Jorge LIROLA DELGADO, El poder naval de al-Andalus en la época del califato omeya (siglo IV hégira/X era cristiana). Tesis doctoral, vol. I., Universidad de Granada, 1991, pp. 122-125; Christophe PICARD, La mer et les Musulmans d’occident au Moyen Age (VIIIe – XIIIe siècle), Paris, Presses Universitaires de France, 1997, pp. 148 e 156; Helena CATARINO, “Breve sinopse sobre topónimos Arrábida na costa portuguesa”, in Francisco Franco Sánchez (ed.), La Rábita en el Islam. Estudios Interdisciplinares. Congressos Internacionals de Sant Carles de la Ràpita (1989, 1997), Sant Carles de la Ràpita/Alacant, Ajuntament de Sant Carles de la Ràpita/Universitat d’Alacant, 2004, pp. 263-267; Fernando Branco CORREIA, “A acção do poder político nas actividades portuárias e na navegação no ocidente islâmico. Alguns tópicos”, in Jesús Angel Solórzano Telechea e Mário Viana (eds.), Economia e Instituições na Idade Média. Novas Abordagens, Ponta Delgada, Centro de Estudos Gaspar Frutuoso, 2013, pp. 14-38.
[4] AL-HIMYARI, Kitab ar–Rawd al–Mi’tar, Valencia, Anubar, 1963, p. 17; António Borges COELHO, op. cit., p. 47.
[5] Cf. José Manuel VARGAS, “Presença árabe em terras de Sintra”, in Jornal Agualva-Cacém, n.º 1, 1985, p. 10; Eva-Maria VON KEMNITZ, “Sintra islâmica – reminiscências históricas, literárias e artísticas”, in Contributos para a História Medieval de Sintra. Actas do I Curso de Sintra (28 de Março – 2 de Junho de 2007), Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 2008, p. 59, n. 12.
[6] Cf. Gustavo MARQUES, Inscrição românica de Odivelas, Odivelas, Junta de Freguesia de Odivelas, 1986, p. 14; Sérgio Luís CARVALHO, “Acerca das minas do Suímo (Belas), sua identificação com Ossumo e respectiva exploração pela Coroa na Idade Média”, in Arqueologia do Estado. 1.as Jornadas sobre formas de organização e exercício dos poderes na Europa do Sul, séculos XIII-XVIII, Lisboa, História e Crítica, 1988, pp. 465-473; José Cardim Ribeiro, “Felicitas Ivlia Olisipo. Algumas considerações em torno do catálogo Lisboa Subterrânea”, sep. de Al-Madan, II: 3 (1994), p. 82. Outras possíveis localizações foram aduzidas por Adel SIDARUS e António REI, “Lisboa e seu termo segundo os geografos árabes”, in Arqueologia Medieval, 7 (2001), pp. 41-42, 48 e 54; António REI, “Ocupação humana no alfoz de Lisboa durante o período islâmico (714‐1147)”, in A Nova Lisboa Medieval. Actas do I Encontro, Lisboa, Edições Colibri, 2001, p. 31; Jorge de Alarcão, “Notas de Arqueologia, epigrafia e toponímia – V”, in Revista Portuguesa de Arqueologia, Lisboa, 11: 1 (2008), pp. 115-116; André de OLIVEIRA-LEITÃO, O Povoamento no Baixo Vale do Tejo: entre a territorialização e a militarização (meados do século IX‐início do século XIV). Dissertação de Mestrado, Universidade de Lisboa, 2011, p. 31; António REI, O Gharb al-Andalus al-Aqsa na Geografia Arabe (seculos III h. / IX d.C. – XI h. / XVII d.C.), Lisboa, Instituto de Estudos Medievais, 2012, pp. 149 e 192.
[8] M. CACHÃO, P. E. FONSECA, R. Galopim de CARVALHO, C. Neto de CARVALHO, R. OLIVEIRA, M. M. FONSECA e J. MATA, “A mina de granadas do Monte Suímo: de Plínio-o-Velho e Paul Choffat à actualidade”, in E-Terra. Revista Electrónica de Ciências da Terra, 18: 20 (2010), p. 2.
[9] Cf. Sérgio Luís CARVALHO, op. cit., pp. 466-468.
[10] Cf. António REI, op. cit., pp. 123, 125, 144, 149 e 192.
[11] Agradecemos a Rui Oliveira e a Vítor Rafael Sousa pelas indicações e contributo fotográfico.
Castelo dos Mouros e Palácio da Pena vistos da vila velha de Colares.
Indicada por diversas ocasiões nas fontes árabes medievais[1], Sintra chegou a ser referida como tendo dois castelos de “extrema solidez”[2]. É al-Himyari – decerto baseado na obra de al-Bakri (século XI), embora esta tenha chegado aos nossos dias truncada – quem fornece essa indicação. Uma destas fortificações é o famoso castelo dos Mouros, tendo sido construído de forma estratégica num dos cumes sobranceiros da serra de Sintra. Quanto à época da sua edificação, tem sido avançado que terão ocorrido duas fases distintas, sendo que a mais antiga remontará aos séculos IX-X, à semelhança de outros casos peninsulares, correspondendo à época de fortificação da costa atlântica levada a cabo pelas autoridades muçulmanas face aos ataques vikings[3]. No entanto, os trabalhos mais recentes têm apontado para cronologias de ocupação do local em torno dos séculos X e XI[4].
Sistema defensivo no Baixo Vale do Tejo durante o Período Islâmico. Embora nem todos os topónimos assinalados sejam de origem árabe, os locais indicados tiveram ocupação muçulmana e/ou possíveis estruturas que integravam o sistema defensivo.
Qual era o outro castelo de Sintra referido por al-Himyari? Em que local estaria situado? Quando foi construído? Pese embora a hipótese de que um dos castelos de Sintra indicados por al-Himyari estaria edificado no sítio onde se encontra o actual Paço da vila, Maria Teresa Caetano referiu que o autor poderia querer reportar-se ao castelo de Colir (Colares)[5], o qual é apontado por João de Barros (1522):
“E armado [Clarimundo] com alguns criados de Fanimor, começaram a entrar por um rio [Colares] que vinha coberto daquelas maçãs e flores, em tanta quantidade que impediam as naus que vinham umas entre outras com vento mui brando e gracioso […]. Assim que foi esta entrada tão deleitosa, quanto triste daí a pouco espaço, porque chegando ao porto onde se fazia uma grande baía estava um castelo de maravilhosa fortaleza, e nele uma torre mui alta, que descobria o mar daí a dez léguas”[6].
Curiosamente, João de Barros não hesita em considerar o castelo de Colir como sendo mais antigo do que o castelo de Sintra (Mouros)[7]. Porém, a área onde terá sido erguido esse suposto castelo muçulmano sofreu várias alterações ao longo dos séculos, pelo que até ao momento não foi possível confirmar vestígios da sua antiga existência[8]. Durante o reinado de D. Manuel, e a partir da suposta estrutura muçulmana, terá sido construída a Casa da Câmara de Colares, sendo que nas imediações foram detectados elementos pétreos de um portal manuelino. Em inícios do século XVII, o edifício funcionava como Câmara e cadeia colarense, tendo sido adquirido por D. Dinis de Melo e Castro, antigo bispo de Leiria, Viseu e Guarda, que o transformou num palácio para sua habitação por volta de 1620[9]. O palácio terá ardido em meados do século XIX, tendo sido demolidas, já no início do século XX, as ruínas do Paço para a construção de uma escola primária[10]. No entanto, ainda hoje é possível observar uma arcada que restou desse palácio sobranceiro à vila moderna de Colares.
Arcada subsistente do Palácio de D. Dinis de Melo e Castro.
Situado numa área elevada, na vila velha colarense, desse suposto castelo muçulmano tinha-se uma visão privilegiada para o porto local e para o esteiro de mar que invadia o vale de Colares, controlando toda a área em redor e a serra, havendo ainda contacto visual excepcional com o castelo dos Mouros. Ao mesmo tempo, dessa primeira estrutura também se tinha visão singular para a área da actual praia das Maçãs – o acesso naval ao interior do território – e espaço marítimo envolvente, tendo o castelo “uma torre mui alta, que descobria o mar daí a dez léguas”[11]. Assim, do ponto de vista estratégico, faz todo o sentido que existisse um castelo precisamente na vila velha de Colares, onde alguns dados arqueológicos exumados confirmam a presença muçulmana pelo menos desde o século X. Escavações realizadas entre 1989 e 1990, junto à igreja Matriz de Colares, permitiram detectar silos muçulmanos de onde foram obtidos abundantes fragmentos cerâmicos dos séculos X e XI[12].
Perspectiva aérea do terraço e arcada subsistente do Palácio de D. Dinis de Melo e Castro.
Maria Teresa Caetano refere que a antiga “povoação fortificada deveria erguer-se no local onde actualmente está a Quinta do Matias, em pleno centro da actual vila, limitada por grossa muralha de feição circular que, na parte de baixo, é extremamente alta […]”[13]. Esse amuralhamento conserva, hoje em dia, sobretudo a Norte, alguns vestígios estruturais muito antigos.
Pormenor de parte da área amuralhada vista a partir das escadinhas do Pelourinho de Colares.Escadinhas do Pelourinho de Colares.
É igualmente João de Barros quem dá a conhecer a lenda da fundação do castelo de Colir, dizendo que o topónimo Colares vem do nome dado a essa alegada fortificação por uma condessa vinda do Norte da Europa. Tendo fugido do rei da Dinamarca, a condessa aportou no esteiro de mar local com duas naus, conseguindo autorização para permanecer e adquirir parte da terra ao rei mouro de Lisboa, isto em troca do penhor de três colares de ouro[14]. Ao mandar edificar o castelo, a condessa, face a esse penhor, deu-lhe o nome Colir, do qual teria derivado, mais tarde, Colares. Embora não tenha sustentado esta lenda, J. Diogo Correia admitiu que o topónimo poderá mesmo resultar “do simples aproveitamento do nome comum, colar, cujo étimo é o latim collare, de collum, pescoço, e que significa mesmo colar, coleira ou golilha”[15]. Numa outra interpretação, é referido que o topónimo Colares derivará do latim colle, estando associado a “colina”, “outeiro”, podendo, por outro lado, estar ligado a colo, de collum[16]. Mais recentemente, Adalberto Alves relacionou o topónimo com o árabe kula, significando “pequeno lago”[17].
Seja como for, e embora por vezes a ideia da possível existência de um castelo muçulmano em Colares seja alvo de cepticismo, desvalorizando-se o que João de Barros escreveu na Crónica do Imperador Clarimundo, uma vez que se trata de uma obra bastante fantasiada, é preciso ter em conta que as crónicas e outras obras antigas, por vezes, conservam reflexos de tradições orais, de documentos e de obras perdidas no tempo, sendo “o único testemunho” para a “reconstituição de acontecimentos muito anteriores” à época em que são escritas[18]. É muito provável que boa parte das informações de João de Barros, senão todas, tenham provindo por via oral, por intermédio de pessoas locais. Refira-se que o autor escreveu a dita obra numa altura em que Colares, devido à descoberta de epígrafes romanas no Alto da Vigia (1505), despertava grande interesse na Coroa, no círculo próximo do rei e nos humanistas da época, pelo que isso poderá ter levado a que se tentasse saber mais sobre a história local[19].
Na impossibilidade de se confirmar a veracidade da tradição sobre este suposto castelo de origem muçulmana vinda de João de Barros e seguida por fr. Joseph de Santa Anna, somente a arqueologia poderá vir a trazer outras luzes sobre o assunto.
À conversa com dois habitantes de Colares, um deles, na altura, com 98 anos de idade. Entre os vários assuntos, e enquanto uma equipa da RTP2 fazia filmagens aéreas para o programa televisivo “Caminhos” (https://www.youtube.com/watch?v=xVvG-KbkVvw&t=12s), registava-se o relato oral sobre o castelo muçulmano de Colares (2015).
[2] Cf. AL-HIMYARI, Kitab ar-Rawd al-Mi’tar. Trad. por Mª Pilar Maestro González, Valencia, Anubar, 1963, p. 233; António Borges COELHO, Portugal na Espanha Árabe, 3.ª ed. rev., Lisboa, Editorial Caminho, 2008, p. 49; António REI, O Gharb al-Andalus al-Aqsâ na Geografia Árabe (séculos III h./IX d.C.-XI h./XVII d.C.), Lisboa, Instituto de Estudos Medievais, 2012, p. 166.
[3] Cf. Basilio Pavon MALDONADO, Ciudades y Fortalezas LusoMusulmanas. Crónicas de viajes por el sur de Portugal, Madrid, Instituto de Cooperación con el Mundo Árabe, 1993, pp. 20-25; Christophe PICARD e Isabel Cristina Ferreira FERNANDES, “La défense côtière à l’époque musulmane: l’exemple de la presqu’île de Setúbal”, in Archéologie Islamique, 8 (1999), pp. 74-75; Catarina COELHO, “A ocupação islâmica do castelo dos Mouros (Sintra): interpretação comparada”, in Revista Portuguesa de Arqueologia, 3: 1 (2000), pp. 210-211, 214 e 218; Christophe PICARD, Le Portugal musulman (VIII-XIIIe siècle). L’Occident d’al- Andalus sous domination islamique, Paris, Maisonneuve et Larose, 2000, pp. 209-210 e 215; Catarina COELHO, “Castelo de Sintra: evidências arqueológicas do quotidiano entre os séculos IX-XII”, in Isabel Cristina FERNANDES (coord.), Fortificações e Território na Península Ibérica e no Magreb (séculos VI a XVI), vol. II, Lisboa, Edições Colibri/Campo Arqueológico de Mértola, 2013, pp. 739-740.
[4] Maria João de SOUSA, “The castelo dos Mouros, Sintra”, in Portugal. Report and proceedings of the 157th Summer Meeting of the Royal Archaeological Institute in 2011, London, The Royal Archaeological Institute, 2012, p. 53.
[5] Maria Teresa CAETANO, Colares, 2ª ed., rev. e act., Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 2016, p. 42.
[6] João de BARROS, Chronica do Emperador Clarimundo, Donde os Reis de Portugal Descendem, quinta impressão, t. III, Lisboa, Na Officina de João António da Silva, 1791, cap. I, pp. 19-20.
[8] Para uma análise do território e possível delimitação do antigo povoado muçulmano da vila velha de Colares, cf. Maria Teresa CAETANO, op. cit., pp. 40-46.
[9] Frei Joseph Pereira de SANTA ANNA, Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia Nestes Reynos de Portugal, Algarves, e seus Domínios, t. II, Lisboa, Na Officina dos Herdeiros de António Pedrozo Galram, 1751, pp. 88-89.
[12] Catarina COELHO, “A ocupação islâmica do castelo dos Mouros (Sintra): interpretação comparada”, in Revista Portuguesa de Arqueologia, III: 1 (2000), p. 210; idem, “O castelo dos Mouros (Sintra)”, in Isabel Cristina Ferreira FERNANDES (coord.), Mil Anos de Fortificações na Península e no Magreb (500-1500). Actas do Simpósio Internacional sobre Castelos, Lisboa, Edições Colibri, 2002, p. 394.
[14] João de BARROS, op. cit., cap. III, pp. 35-37.
[15] J. Diogo CORREIA, “Toponímia estremenha”, in Estremadura. Boletim da Junta de Província, II: XLIV-XLVI, 1957, pp. 128-129.
[16] Idem, ibidem, pp. 128-129; Maria Teresa CAETANO, op. cit., p. 9.
[17] Adalberto ALVES, “Colares”, in Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013, p. 407.
[18] José MATTOSO, “Notas críticas às notas de fim de volume”, in Alexandre HERCULANO, História de Portugal. Desde o começo da Monarquia até o fim do Reinado de Afonso III, vol. I, Amadora, Livraria Bertrand, 1980, p. 694; André de OLIVEIRA-LEITÃO, Povoamento no Baixo Vale do Tejo: entre a territorialização e a militarização (meados do século IX – início do século XIV). Dissertação de Mestrado em História Medieval, Universidade de Lisboa, 2011, p. 102.
[19] Marco Oliveira BORGES, “A navegabilidade do rio de Colares e a defesa costeira durante o Período Islâmico”, comunicação apresentada no Colóquio Colares – Uma evocação histórica, 12 de Novembro de 2016 (Bombeiros Voluntários de Colares).
A referência documental mais antiga que se conhece de naufrágios ocorridos na costa de Sintra-Cascais remete-nos para 1147[1]. A 28 de Junho deste ano, vindo auxiliar D. Afonso Henriques na tomada de Lisboa aos mouros, alguns navios da frota cruzada proveniente do Norte da Europa apanharam um temporal ao largo do litoral de Sintra-Cascais, situação que pôs em perigo a navegação e levou a naufrágios. Conforme refere Raul de Glanville[2], um dos cruzados ingleses que participou na tomada de Lisboa e que escreveu sobre os acontecimentos, “o vento que soprava dos montes de Sintra açoutou os navios com tão grande tempestade, que se afundou uma parte dos batéis com a sua tripulação”[3].
Fig. 2 – Invocação contra os diabos provocadores de naufrágios (segunda metade do século XV). Fonte: Paulo Lopes, O medo do mar nos Descobrimentos, Lisboa, Tribuna, 2009.
Tendo em conta que navios de diferentes origens geográficas e tipologias faziam parte desta frota de guerra, a qual era constituída por perto de 164 embarcações ou até mais[4], decerto que não foram propriamente batéis que vieram ao fundo com as suas tripulações. Perante tal tempestade, e embora o cruzado omita certos pormenores, a frota acabou por aportar e abrigar-se em Cascais, não seguindo directamente para Lisboa[5].
Muito embora os dados sejam bastante lacónicos, estamos perante um caso que vem enriquecer o conhecimento sobre os naufrágios ocorridos ao largo de Sintra e Cascais ao longo dos séculos, constituindo mais um exemplo do potencial arqueológico subaquático desta costa.
Fig. 3 – Sistema defensivo no Baixo Vale do Tejo durante o Período Islâmico (em construção).
[2] Seguimos o nome do cruzado com base no que a crítica historiográfica mais recente propõe (cf. Maria João V. BRANCO, “Introdução”, in A Conquista de Lisboa aos Mouros. Relato de um Cruzado. Ed., trad. e notas de Aires A. NASCIMENTO, 2.ª ed., Lisboa, Vega, 2007, pp. 28-30).
[3] Cf. Conquista de Lisboa aos Mouros em 1147. Carta de um cruzado inglês que participou nos acontecimentos, Lisboa, Livros Horizonte, 1989, p. 31.
[4] As fontes não são concordantes, chegando a ser referidos c. 164 navios, 170, 180, 190 ou até mesmo 200 (cf. Pedro Gomes BARBOSA, Conquista de Lisboa, 1147. A Cidade Reconquistada aos Mouros, Lisboa, Tribuna, 2004, p. 27; Marco Oliveira BORGES, op. cit., pp. 126-128 e 141).
[5]Crónica dos Cinco Reis de Portugal, vol. I, [Porto], Civilização, 1945, cap. XXI, pp. 92-93; Marco Oliveira BORGES, op. cit., pp. 127-129.
Fig. 1 – Mapa do al-Ândalus e parte do Norte de África, c. 868 (simplificado).
Entre as teorias existentes sobre a origem do topónimo Cascais, aquela que reunia maior consenso diz que o mesmo virá do plural de cascal, estando relacionado com a possível abundância de amontoados de cascas ou de conchas de moluscos marinhos[1]. Esta é uma teoria que acabou por ficar associada a um contexto português em que o topónimo Cascais teria derivado, por simplificação, de uma hipotética “aldeia dos cascais”, surgida no âmbito do aparecimento das póvoas marítimas com o avançar da “Reconquista” cristã[2]. No entanto, mais recentemente, tem-se associado a este topónimo o nome do navegador/almirante muçulmano Khashkhash (século IX).
Ao que tudo indica, parece ter sido A. H. de Oliveira Marques quem primeiramente estabeleceu uma possível relação entre Cascais e Khashkhash[3], ainda que numa simples nota de rodapé e sem aduzir qualquer tipo de explicação[4]. Posteriormente, outros autores viriam a debruçar-se sobre a mesma questão embora sem terem conhecimento da interrogação levantada por Oliveira Marques. Se nalguns casos a associação entre Khashkhash e Cascais tem pecado por ser feita sem qualquer ligação histórica ou filológica explicativa que possa elucidar os leitores, noutros é feita através da proximidade fonética entre o nome do almirante – por meio da transliteração Kaxkax – e este topónimo, sem o apoio nas fontes muçulmanas e sem o conhecimento das problemáticas historiográficas que giram em torno desta figura, divulgando-se dados que resultam de uma imprecisão que coloca Khashkhash fora da sua época histórica mais de 250 anos depois, que o destaca infundadamente como um corsário responsável por manter a ordem num vasto sector marítimo a Norte de Lisboa, entre outros equívocos[5].
Para além destes aspectos, que têm vindo a ser revistos e aprofundados, é preciso ter em conta que a leitura e interpretação das fontes muçulmanas levanta diversos problemas quanto a esta figura, tendo existido pelo menos duas pessoas da mesma família com idêntico nome (Khashkhash) e ligações à vida marítima. Sabemos que um deles, enquanto almirante muçulmano, morreu a combater os vikings algures entre 858-862 ao largo de Cádis[6], enquanto que outro ainda era vivo em finais do século IX.
Em todo o caso, é exequível que um destes homens possa ter mantido contacto com Cascais, possivelmente no âmbito das lides da defesa costeira do al-Ândalus[7], e que tenha dado o seu nome ao porto desta vila (figs. 1 e 2). Por outro lado, uma eventual presença prolongada nesse porto (ou um acontecimento marcante ocorrido ali mesmo e em que um deles tivesse estado envolvido) poderia ter levado a que a memória do seu nome tivesse sido preservada depois da sua partida, não tendo Khashkhash necessariamente de ter dado o seu nome àquele local. Esta é uma hipótese que, aliás, até pode ser pensada analogamente com a presença viquingue na actual costa portuguesa, sendo que alguns possíveis locais de apoio à navegação nórdica poderão mesmo ter mantido o nome que era dado a esses guerreiros depois de os mesmos terem partido[8].
Fig. 2 – Visão parcial do sistema de defesa costeira no Baixo Vale do Tejo durante o Período Islâmico (em construção).
Se do ponto de vista histórico acredita-se que possa ter existido um contacto entre Khashkhash e Cascais, do ponto de vista linguístico também é possível ligar as duas palavras: através da mediação do étimo cascal e de uma ligação à Catalunha (figs. 1 e 4). Já vimos que a teoria que reunia maior consenso até recentemente diz que Cascais será um topónimo de origem portuguesa e que virá do plural de cascal. Contudo, mantendo à mesma o elemento cascal, é possível pensar noutras hipóteses. Em árabe, khashkhash é a palavra sinónima do português “papoila-dormideira”, enquanto que no léxico do catalão existe a palavra árabe cascall, significando precisamente “papoila-dormideira”[9].
Neste seguimento, saliente-se que a antiga ocupação muçulmana do território que pertence ao actual concelho de Cascais não é nenhuma novidade, atestando-se numerosas localidades de etimologia arábica, algumas resultantes de estabelecimentos novos, outras do robustecimento dos antigos: Abuxarda, Adruana, Alcabideche, Alcoitão, Alcorvim, Aljafamim, Alvide, Birre, Quenena, Zambujal, Zambujeiro e, provavelmente, Bicesse, Murches, Sassoeiros, Talaíde e Trajouce (fig. 3). O topónimo Alcabideche, por exemplo, “parece remeter para uma arabização do termo latino para fonte (caput aquæ), antecedido do artigo definido, designando assim um simples acidente geográfico cujo nome latino se viu arabizado durante a ocupação muçulmana da Península” (OLIVEIRA-LEITÃO, 2011, 30).
Fig. 3 – Termo de Cascais nos séculos XIV-XV. Repare-se nos diversos topónimos de origem árabe. Fonte: A. H. de Oliveira Marques.
Com o decorrer das investigações e da exequível ligação entre Khashkhash e Cascais surgiu outra hipótese para a possível origem do étimo que dá nome a esta vila. Para além de cascall figurar no léxico do catalão, é igualmente conhecida a existência de uma vila partilhando o mesmo nome, na Catalunha (fig. 4), anteriormente a 1097, a qual possuía uma rábita (também referida como ribat) conhecida na documentação cristã por “ràpita del Cascall”[10]. Quando pensados em analogia com Cascais, estes dados levam-nos a pensar que a origem deste topónimo poderá mesmo estar associada ao contexto de defesa costeira do al-Ândalus e à deslocação (voluntária ou em serviço do poder central) de forças militares dessa área para a kura de Lisboa, acabando, de alguma forma, aquele porto por ganhar um nome que já existia do lado oriental do al-Ândalus (Sharq al-Ândalus). Esta é uma hipótese que deve ser vista em paralelo com outras localidades cujo nome está associado à vinda de grupos humanos, clãs ou tribos de outras áreas do al-Ândalus e do Norte de África, como, por exemplo, Alcorvim[11] (Malveira da Serra, Cascais). Este topónimo está ligado à cidade de Cairuão, capital de Ifríquia, no Magreb Oriental.
Fig. 4 – Litoral catalão com destaque para a rábita Cascall. Fonte: Dolors Bramon, Reivindicació catalana del geògraf al-Idrisi, 2012, p. 35.
Para reforçar esta hipótese de uma possível deslocação humana, note-se que na documentação catalã, associada às formas Kashtali, Kashki, Kashkallu, Kashkali (árabes)[12] e Cascall (cristã), existem as variantes toponímicas Cascal, Cascallo, Cascayo, Caschais, Cascai, Cascait e Cascayll. Parece-nos demasiado evidente que o topónimo Cascais, na sua forma primitiva e podendo derivar do contexto árabe catalão descrito (ainda que a raiz daquela vila catalã e topónimo pudessem ser anteriores à ocupação muçulmana do local), tivesse, posteriormente, seguido semelhantes formas das que surgem atestadas na documentação cristã catalã até chegar à actual. Assim, importa frisar que tanto a primeira forma conhecida do topónimo (Cascays, 1282[13]) – pelo menos até ao momento –, bem como a forma actual (Cascais), seguem sem qualquer dúvida a orientação das variantes catalãs.
Em suma, as recentes investigações mostram que a teoria fundamentada no âmbito do aparecimento das póvoas marítimas com o decorrer da “Reconquista” cristã, e que via em Cascais a simplificação de uma hipotética “aldeia dos cascais” (origem portuguesa), perdeu total sentido, ainda que o elemento “cascal” seja fundamental para as outras interpretações. Os dados aduzidos mostram que a origem do topónimo primitivo será muito anterior a esse momento e que derivará de um contexto diferente[14]. A continuação dos trabalhos permitirá aprofundar assuntos ainda não abordados ou outros focados superficialmente.
Fig. 5 – Cascais de meados do século XV numa gravura do século XVIII.
Marco Oliveira Borges | 2016
[1] Sobre as teorias, cf. Rafael BLUTEAU, Suplemento ao Vocabulário Portuguez, e Latino […], pt. I, Lisboa, Na Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1727, p. 204; J. Leite de VASCONCELLOS, Opusculos, vol. III – Onomatologia, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1931, pp. 416-417; AHMC, AADL-CMC, “[Parecer de Affonso de Dornellas relativo ao Brasão Heráldico do concelho de Cascais]”, 14 de Abril de 1934; J. Diogo CORREIA, Toponímia do Concelho de Cascais, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1964, pp. [9]-11; Ferreira de ANDRADE (dir.), Monografia de Cascais, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1969, pp. 7-8; José Pedro MACHADO, “Cascais”, in Dicionário Onomástico Etimológico da Língua Portuguesa, 2.ª ed., vol. I, Lisboa, Livros Horizonte, 1993, p. 365; A. H. de Oliveira MARQUES, “Para a História do Concelho de Cascais na Idade Média – I”, in Novos Ensaios de História Medieval Portuguesa, Lisboa, Editorial Presença, 1988, pp. 108 e 111-112; José D’ENCARNAÇÃO, Cascais, paisagem com pessoas dentro, Cascais, Associação Cultural de Cascais, 2011, p. 14, n. 2.
[2] “A tese mais verosímil aponta para a provável palavra portuguesa cascal – à semelhança de areal, faial, funchal – identificadora de um terreno ou uma praia coberta de cascas ou conchas de mariscos. Haveria nesta zona alguns cascais e o topónimo primitivo seria porventura a aldeia dos cascais ou a dos cascais, de onde derivou, por simplificação, Cascais. Seria assim? Só a documentação nos poderá um dia responder” (cf. A. H. de Oliveira MARQUES, op. cit., pp. 111-112).
[3] Khashkhash, Kaxkax, Hashas, Jashjash, Chaschchasch, etc., conforme as transliterações do árabe para diferentes línguas. Adoptámos a transliteração Khashkhash por transcrever de forma (quase) inequívoca os sons da língua árabe. Por limitações tipográficas não temos usado letras com diacríticos.
[4] “Haverá alguma relação entre Cascais e este Hashas?” (cf. A. H. de Oliveira MARQUES, “O «Portugal» islâmico”, in Joel SERRÃO e A. H. de Oliveira MARQUES (dir.), Nova História de Portugal, vol. II – Portugal das Invasões Germânicas à Reconquista, Lisboa, Editorial Presença, 1993, p. 245, n. 6).
[5] Este assunto foi analisado por Marco Oliveira BORGES, “A defesa costeira do litoral de Sintra-Cascais durante a Época Islâmica. II – Em torno do porto de Cascais”, in Ana CUNHA, Olímpia PINTO e Raquel de Oliveira MARTINS (coord.), Paisagens ePoderes no Medievo Ibérico. Actas do I Encontro Ibérico de Jovens Investigadores em HistóriaMedieval. Arqueologia, História e Património, Braga, Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória», Universidade do Minho, 2014, pp. 430-435; idem e Helena Condeço de CASTRO, “O navegador muçulmano Khashkhash e a possível ligação com o topónimo Cascais: problemas e possibilidades”, in Arquivo de Cascais. História, Memória, Património, 14 (2015), pp. 6-29.
[6] Jorge LIROLA DELGADO, El poder naval de al-Andalus en la época del califato omeya (siglo IV hégira/X era cristiana). Tesis Doctoral, vol. I, Universidad de Granada, 1991, pp. 124-125; Abbas HAMDANI, “An Islamic Background to the Voyages of Discovery”, in Salma Khadra JAYYUSI (ed.), The Legacy of Muslim Spain, 2nd ed., Leiden, Brill Academic Publishers, 1994, p. 275; Christophe PICARD, La mer et les Musulmans d’occident au Moyen Age (VIIIe – XIIIe siècle), Paris, Presses Universitaires de France, 1997, pp. 21 e 125; idem, L’océan Atlantique musulman. De la conquête arabe à l’époque almohade. Navigation et mise en valeur des côtes d’al-Andalus et du Maghreb occidental (Portugal-Espagne-Maroc), Paris, Maisonneuve et Larose, 1997, p. 76.
[7] Sobre a importância estratégica de Cascais durante o Período Islâmico e a sua integração no sistema defensivo do distrito (kura) de Lisboa, cf. Marco Oliveira BORGES, op. cit., pp. 409-441. Recentemente, no âmbito do programa televisivo “Caminhos” (RTP2), tivemos a oportunidade de participar num episódio sobre “A defesa costeira no litoral de Sintra-Cascais durante o Período Islâmico”. O episódio pode ser visto através da seguinte ligação: https://www.youtube.com/watch?v=xVvG-KbkVvw&feature=em-upload_owner (consultado em 10-05-2015).
[9] Marco Oliveira BORGES e Helena Condeço de CASTRO, “O navegador muçulmano Khashkhash […]”, pp. 22-23.
[10] Al-Idrisi descreve esta estrutura como sendo “formosa, forta i inexpugnable vora la mar i compta amb una guarnició (qawm) brava” (apud Dolors BRAMON, “La ràpita del Cascall al delta de l’Ebre”, in Francisco FRANCO SÁNCHEZ (ed.), La Rábita en el Islam. Estudios Interdisciplinares. Congressos Internacionals de Sant Carles de la Ràpita (1989, 1997), Ajuntament de Sant Carles de la Ràpita, Universitat d’Alacant, 2004, p. 120).
[11] Derivação de Alquerubim, sendo que, por vezes, também surge grafado como Alcorobim. Alquerubim pode derivar do árabe al-qarawiyin, significando “os de Qayrawan”, Cairuão, cidade situada na actual Tunísia. A sua importância religiosa assume tal importância que é vista como a “Meca do Ocidente” (cf. J. Diogo CORREIA, op. cit., pp. 15-16; José Pedro MACHADO, Sintramuçulmana. Vista de olhos sobre a sua toponímia arábica, Lisboa, Na Imprensa Mediniana, 1940, p. 8; idem, “Alquerubim”, in Dicionário Onomástico […], p. 111; António REI, “Ocupação humana no alfoz de Lisboa durante o período islâmico (714‐1147)”, in A Nova Lisboa Medieval. Actas do I Encontro, Lisboa, Edições Colibri, pp. 31-32, n. 35). Adalberto Alves faz derivar o topónimo Cairuão de qayrawân, significando “campo da guarnição [militar]” (cf. Adalberto ALVES, “Cairuão”, in Dicionário de arabismos da língua portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional‐Casa da Moeda, p. 349).
[12] Dolors BRAMON, El Mundo en el Siglo XII. Estudio de la versión castellana y del “Original” Árabe de una geografía universal: “El tratado de al-Zuhri”, Barcelona, Editorial Ausa, s.a., p. 158, n. 780.
[13] ANTT, Chancelaria de D. Dinis, liv. I, fls. 46v-47.
[14] Marco Oliveira BORGES e Helena Condeço de CASTRO, “O navegador muçulmano Khashkhash […]”, p. 29.
Simulação de um ataque viquingue à Catoira (Galiza). Fotografia: oglobo.globo.com
Os ataques vikings entraram no registo cronístico da Europa Ocidental em 788, altura em que, confundido com comerciantes, um grupo de nórdicos atacou o Sul de Inglaterra e matou um representante régio local[1]. Poucos anos depois, em 793, saquearam o mosteiro inglês de Lindisfarne. O acontecimento chocou clérigos como Alcuíno de Iorque, que, numa carta escrita a partir da corte de Carlos Magno, interpretou o acontecimento sucedido como um castigo divino pelo desleixo moral do rei da Northumbria e do seu povo[2].
Estas incursões, partidas inicialmente dos territórios que viriam a ser conhecidos por Dinamarca, Noruega e Suécia, haveriam de atingir, algumas décadas depois, o Ocidente ibérico, com Lisboa a ganhar destaque como alvo das primeiras investidas. Assim, a primeira informação da presença viking[3] no actual território que corresponde a Portugal remete-nos para 844. Por volta do dia 20 de Agosto deste ano[4], 54 navios nórdicos e 54 cáravos[5] atacaram Lisboa numa investida que se prolongou por treze dias e que resultou em três batalhas com os muçulmanos locais[6]. Foi Ibn Hayyan (987-1076), citando al-Razi (888-955), que abordou a chegada dos Majus (ou Magus)[7] por essa altura. O emir Abd al-Rahman II, avisado da chegada dos guerreiros nórdicos pelo governador de Lisboa (Whab Allah Ibn Hazm), pôs em alerta as cidades costeiras a Sul. No entanto, o relato de Ibn al-Qutiya (m. 977), em conjugação com o al-Muqtabis de Ibn Hayyan, permite pensar que este ataque possa não ter sido somente à cidade de Lisboa mas também a outras localidades situadas no distrito[8]. Deste modo, Sintra[9] – que na altura tinha um rio navegável – e Cascais, na rota das navegações para Lisboa, poderão ser locais implícitos nos relatos muçulmanos[10]. É possível, igualmente, que as investidas de 844 tenham tido extensão a outras áreas já dentro do Tejo, até mesmo a Santarém[11].
Já para Sul, as investidas deste ano haveriam de se estender a Sevilha, Sidónia e a Cádis. No regresso ao Norte, depois de terem sofrido várias baixas e de terem perdido 34 navios nas costas da Andaluzia, Ibn Idhari (séculos XIII-XIV) refere que houve nova passagem dos guerreiros nórdicos por Lisboa embora não se saiba exactamente o que aconteceu[12]. Porém, al-Qurashi, citado por Ibn Hayyan, refere que os viquingues sofreram uma derrota no distrito de Lisboa, sendo “triturados por la guerra”[13].
Guerreiros nórdicos num ataque a Angers (911). Representação presente num manuscrito francês de 1100 (Vida de S. Aubin).Escavação de um navio nórdico (1904). Fotografia: Viking Ship Museum (Oslo).
Nas suas demoradas e longínquas expedições os viquingues tiveram de usar pontos de apoio temporário ao longo da faixa costeira atlântica e mediterrânica, sendo que alguns poderão mesmo ter mantido o nome que era dado a esses guerreiros depois da sua partida[14]. Por outro lado, é possível que uma ocupação nórdica de certas áreas também possa ter derivado da doação cristã de terras em zona de fronteira[15]. Estas são situações que, para o caso do actual território português, têm sido pensadas para três locais: Lorvão[16] e Lordemão[17], no actual distrito de Coimbra, e Salvaterra de Magos[18], no de Santarém. Naturalmente que estes guerreiros nórdicos, levando a cabo expedições que se prolongavam no tempo – até mesmo devido às condicionantes atmosféricas e oceânicas que enfrentavam –, precisavam de locais para aportar, descansar, arranjar alimentos e poder consertar os navios, isto quando não era mesmo para invernar. Assim, para além dos locais referidos, decerto que terão existido outros sítios no actual território português usados temporariamente pelos nórdicos, até mesmo no Noroeste, área onde estes guerreiros chegaram a raptar algumas pessoas e a pedir resgates. Em 1015, durante nove meses, um grande número de nórdicos saqueou e fez prisioneiros entre o rio Douro e o rio Ave. Essas investidas apanharam três filhas de um homem chamado Amarelo Mestaliz, o qual conseguiu pagar o respectivo resgate a muito custo[19]. Já mais para Sul, as proximidades de Lisboa[20], quer nas margens do rio Tejo[21], quer já fora do estuário, inclusive a extensa e abrigada enseada de Cascais, também são hipóteses a ter em conta enquanto possíveis locais usados pelos nórdicos para a apoio à sua navegação[22].
Placa toponímica alusiva a Lordemão (Coimbra), étimo possivelmente associado a uma presença nórdica. Fotografia: https://cidadaosporcoimbra.pt
Note-se que outros ataques a Lisboa ocorreram em 858 e, possivelmente, em 859. Nesta última investida, levada a cabo por 62 navios, Ibn Idhari refere que dois dos que se haviam adiantado à restante frota (e que vinham carregados com ouro, prata, escravos[23] e provisões) acabaram mesmo por ser capturados por navios muçulmanos na costa de Beja[24], ou seja, algures na área costeira atlântica a que o distrito presidia[25], ou até mesmo já no Guadiana[26].
Decorreria muito tempo até que os viquingues voltassem novamente a atacar Lisboa, se bem que estes guerreiros possam ter levado a cabo ataques pela costa ocidental da Península Ibérica dos quais não subsistiu registo[27]. Assim, em 966, estes guerreiros nórdicos voltaram a atacar aquela cidade, vindo a enfrentar as forças muçulmanas locais numa batalha com vários mortos entre ambas as partes e de desfecho desconhecido[28]. Desta vez, Ibn Idhari faz menção a 28 navios nórdicos, sendo que ainda houve um combate no rio Arade (Silves) que opôs as forças nórdicas à frota muçulmana saída de Sevilha.
Representação de embarcações nórdicas, uma delas levando 8 cavalos.Figura de proa de um navio nórdico.Capacete nórdico. Contrariamente ao que por vezes é dito e representado, os capacetes dos vikings não tinham chifres.Locais de alguns acontecimentos da Idade Viquingue, c. 790 até c. 1100. Mapa: Hélio Pires, Incursões Nórdicas no Ocidente Ibérico […], p. 301.
Marco Oliveira Borges | 2016
[1] Este pequeno artigo de divulgação histórica, embora aqui surja com algumas modificações e acrescentos, foi adaptado de um trabalho mais alargado: Marco Oliveira BORGES, “A defesa costeira do litoral de Sintra-Cascais durante a Época Islâmica. II – Em torno do porto de Cascais”, in Ana CUNHA, Olímpia PINTO e Raquel de Oliveira MARTINS (coord.), Paisagens ePoderes no Medievo Ibérico. Actas do I Encontro Ibérico de Jovens Investigadores em HistóriaMedieval. Arqueologia, História e Património, Braga, Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória», Universidade do Minho, 2014, pp. 413-414 e 424-425. Disponível para consulta e descarregamento gratuito em https://www.academia.edu/10196133/A_defesa_costeira_do_litoral_de_Sintra-Cascais_durante_a_%C3%A9poca_isl%C3%A2mica._II_-_Em_torno_do_porto_de_Cascais_2014.
[2] Hélio PIRES, Incursões Nórdicas no Ocidente Ibérico (844-1147): Fontes, História e Vestígios. Tese de Doutoramento em História Medieval, Universidade Nova de Lisboa, 2012, pp. 7-8.
[3] O termo “viking”, na Escandinávia, não designava um povo, como por vezes vemos referido nos dicionários e enciclopédias de língua portuguesa, mas sim uma actividade ou grupos dos que a ela se dedicavam, sendo que a prática que mais lhe ficou associada nas fontes anglo-saxónicas e islandesas foi a pirataria (cf. idem, ibidem, pp. 1-4).
[5] Ainda que pudessem não ser exactamente 54 navios de cada tipo, certamente que os cáravos com que os nórdicos chegaram a Lisboa teriam sido tomados ao longo da costa, na investida para Sul. Neste sentido, Lisboa não teria sido o primeiro alvo nórdico (idem, ibidem, p. 109).
[6] Ibn HAYYAN, Crónica de los emires Alhakam I y Abdarrahman II entre los años 796 y 847 [Almuqtabis II-1]. Trad., notas e índices de Mahmud Ali MAKKI y Federico CORRIENTE, Zaragoza, Instituto de Estudios Islámicos y del Oriente Próximo, 2001, p. 312; António Borges COELHO, Portugal na Espanha Árabe, 3.ª ed. rev., Lisboa, Editorial Caminho, 2008, p. 169.
[7] Foi aos zoroastristas, cujo culto original teve base na Pérsia, sendo os seus actos tradicionalmente acompanhados por um fogo sagrado, que os muçulmanos inicialmente chamaram al-magus. Porém, a partir do século IX, o termo surge nas fontes do al-Ândalus referindo-se, não aos zoroastristas, mas sim aos piratas nórdicos que os muçulmanos “identificaram como um outro em cujas práticas religiosas não se reconheciam”. Nesse sentido, “identificando-os como pagãos, recorreram à expressão clássica que, em cânones árabes, denominava os não-crentes – os magos”. Portanto, esta também não é uma forma de identificar um povo específico, mas sim uma referência vaga ao “outro”, àquele que não é muçulmano, judeu ou cristão (Hélio PIRES, op. cit., pp. 92-93).
[8] ABENALCOTÍA, Historia de la conquista de España de Abenalcotía el Cordobés. Seguida de fragmentos históricos de Abencotaiba, etc. Trad. de Don Julián RIBERA, Madrid, Tipografía de la Revista de Archivos, 1926, p. 50; Hélio PIRES, op. cit., p. 104; Fernando Branco CORREIA, “A acção do poder político nas actividades portuárias e na navegação no ocidente islâmico. Alguns tópicos”, in Jesús Angel SOLÓRZANO TELECHEA e Mário VIANA (eds.), Economia e Instituições na Idade Média. Novas Abordagens, Ponta Delgada, Centro de Estudos Gaspar Frutuoso, 2013, pp. 13-14.
[16] A hipótese é colocada por Joseph M. Piel, por se ter “lembrado do etnónimo Lordemanos/Lordemãos, […] a forma medieval corrente que se substituiu à historicamente mais conforme de Nordemanos, literalmente “homens do Norte”, ou seja os Normandos, aliás Viquingos” (cf. Joseph M. PIEL, Sobre a origem do nome do mosteiro de Lorvão, sep. de Biblos, LVII, 1981, p. 169).
[17] À semelhança do topónimo Lordemanos, existente na província de Leão, e no seguimento da hipótese levantada por Joseph M. Piel (cf. Vicente ALMAZÁN, Gallaecia Scandinavica. Introducción ó estúdio das relacións galaico-escandinavas durante a Idade Media, Vigo, Galáxia, 1986, pp. 119-120; Hélio PIRES, op. cit., pp. 260-261).
[18] Povoação inicialmente designada por “Paul de Magos”. A presente “hipótese baseia-se no facto de os muçulmanos designarem por «maghus» aqueles que a documentação cristã chama «lordomani»” (Pedro Gomes BARBOSA, op. cit., pp. 131-132; Fernando Branco CORREIA, “Fortificações de iniciativa omíada no Gharb al-Andalus nos séculos IX e X – hipóteses em torno da chegada dos Majus (entre Tejo e Mondego)”, in Isabel Cristina F. FERNANDES (coord.), Fortificações e Território na Península Ibérica e no Magreb (séculos VI a XVI), vol. I, Lisboa, Edições Colibri/Campo Arqueológico de Mértola, 2013, p. 85, n. 50.
[19] Hélio PIRES, “Money for freedom: ransom paying to Vikings in Western Iberia”, in Viking and Medieval Scandinavia, 7 (2011), pp. 125-130; idem, Incursões Nórdicas no Ocidente Ibérico […], pp. 91 e 171-190.
[20] Idem, Incursões Nórdicas no Ocidente Ibérico […], p. 115.
[21] Fernando Branco CORREIA, op. cit., p. 85, n. 50.
[22] Isabel Cristina Ferreira FERNANDES, “Aspectos da litoralidade do Gharb al-Andalus: os portos do Baixo Tejo e do Baixo Sado”, in Arqueologia Medieval, 9 (2005), p. 53; Marco Oliveira BORGES, op. cit., 424-425.
[23] Pouco depois de 860, os viquingues venderam alguns negros na Irlanda anteriormente capturados em Marrocos (cf. Claudio SÁNCHEZ-ALBORNOZ, Normandos en España durante el siglo VIII?, sep. de Cuadernos de Historia de España, Buenos Aires, 1957, p. 314).
[26] Helena CATARINO, “Breve sinopse sobre topónimos Arrábida na costa portuguesa”, in Francisco FRANCO SÁNCHEZ (ed.), La Rábita en el Islam. Estudios Interdisciplinares. Congressos Internacionals de Sant Carles de la Ràpita (1989, 1997), Sant Carles de la Ràpita/Alacant, Ajuntament de Sant Carles de la Ràpita/Universitat d’Alacant, 2004, p. 264.
[28] Neste caso, o califa foi avisado da investida nórdica por intermédio de Alcácer do Sal (António Borges COELHO, op. cit., p. 174; Hélio PIRES, op. cit., pp. 129-130).
Fig. 1 – Moinho de vento com a serra de Sintra como pano de fundo (Alcabideche). Fotografia: Alexandra Morais
As relações entre Sintra e Cascais durante a Idade Média, territórios intimamente ligados entre si desde tempos recuados, foram sendo parcialmente apontadas por alguns investigadores que se dedicaram ao estudo da História de Cascais durante o século XX. Essas relações acabariam por ganhar maior importância já em finais da década de 1980, isto com as investigações desenvolvidas por A. H. de Oliveira Marques. O historiador cascalense, no seguimento das investigações que estava a realizar sobre o seu concelho natal, chegou mesmo a proferir uma conferência intitulada “Sintra e Cascais na Idade Média” (Palácio Nacional de Sintra, 3/7/1987), tendo o texto de apoio sido publicado no ano posterior[1].
Não crendo na teoria de que o topónimo Sintra pudesse ter surgido durante o Período Romano, Oliveira Marques referiu que tinha indiscutivelmente uma origem árabe, se bem que não se soubesse o étimo (árabe ou berbere) que lhe deu lugar. O historiador destacou que Sintra já era uma importante cidade nos séculos X e XI, se não antes, vindo referida entre os autores muçulmanos como um dos grandes povoados que existia no Ocidente da Península Ibérica (Garb al-Ândalus). Em relação ao território de Cascais, e à semelhança de Sintra, a toponímia de raiz árabe atestava uma colonização abundante e com estabelecimentos novos durante os quase quatro séculos e meio de ocupação muçulmana. Destaque para o topónimo Alcabideche, pequeno povoado na dependência de Sintra, decerto a ela ligado por estrada[2]. De Alcabideche era natural Abu Zaid Ibn Muqana al-Qabdaqi al-Ushbuni, famoso poeta que deu a conhecer a existência de moinhos de vento nessa área.
O interesse pelas relações entre Sintra e Cascais durante a Idade Média ainda hoje é visível entre os investigadores, sendo que os trabalhos recentes têm trazido diversas novidades, seja para o Período Islâmico como para os séculos XIV-XV. Para o primeiro caso, tem-se fortalecido a ideia de que durante aquele período histórico começara a ganhar forma um sistema de defesa costeira a partir de Sintra que teria necessária continuação pelo actual litoral cascalense[3], embora Cascais não tenha sido alvo da atenção dos autores muçulmanos, os quais, aliás, não tiveram em conta a realidade portuária entre a costa de Sintra e o porto de Cascais, se bem que exista uma possível descrição da Boca do Inferno[4]. De forma comprovada, existem somente as descrições relativas a Alcabideche, nomeadamente por intermédio de Ibn Muqana (século XI)[5]. Nem mesmo o foral de Sintra de 1154 (o qual chegou até aos nossos dias através de dois traslados feitos no século XV) alude a Cascais como parte integrante do termo sintrense, ainda que durante o século X devesse existir um iqlim em Sintra que englobaria Cascais e Mafra nos limites do seu termo[6]. É verdade que existem referências à passagem dos cruzados que auxiliaram na “Reconquista” de Lisboa (1147) pelo porto de Cascais, com expressa alusão a este topónimo, mas essas informações, se bem que alegadamente baseadas numa memória documental do século XII, aparecem muito tardiamente[7]. É num documento de 1282 que, pela primeira vez, o topónimo “Cascays” vem atestado (fig. 2). Em todo o caso, nos últimos tempos tem ganho forma a forte possibilidade de que o topónimo Cascais possa mesmo ter uma origem árabe, estando associado ao contexto de defesa costeira do al-Ândalus[8].
Fig. 2 – Alusão documental mais antiga que se conhece ao topónimo “Cascays”. Fonte: ANTT, Chancelaria de D. Dinis, liv. I, fls. 46v-47.
Um aspecto bastante sintomático das relações entre Sintra e Cascais, e que se destaca na documentação dos séculos XIV-XV, são os conflitos jurisdicionais que opuseram os poderes locais e os habitantes destes dois territórios. A aldeia de Cascais foi elevada a vila em 1364, ficando isenta da sujeição a Sintra[9], mas só em 1370 conseguiu a criação do seu termo, desmembrando-se assim do território sintrense[10], que se regia pelo foral outorgado por D. Afonso Henriques em 1154. No entanto, mesmo depois da criação do termo e senhorio cascalense surgiram diversas dúvidas e cobiças territoriais, até porque doravante algumas pessoas passaram a ter propriedades nas zonas de fronteira entre ambos os territórios, por vezes não se sabendo exactamente em que local começava a fronteira ou fazendo-se vista grossa. Na verdade, os sintrenses não viram com bons olhos a desanexação do território de Cascais. Em 1387, num dos muitos problemas que surgiram, a rainha D. Filipa de Lencastre, que havia entrado na posse de Sintra, tentou apossar-se de Cascais. A situação levou a um conflito com os funcionários do doutor João das Regras, na altura senhor de Cascais, vindo este a conseguir de D. João I uma carta de confirmação dos seus direitos sobre este senhorio[11].
Fig. 3 – Termo de Cascais nos séculos XIV-XV. Fonte: A. H. de Oliveira Marques.
Fig. 4 – D. Filipa de Lencastre. Fonte: Manuela Santos Silva, A rainha inglesa de Portugal. D. Filipa de Lencastre, Círculo de Leitores, 2012.
Um outro elemento fundamental nas relações entre Sintra e Cascais foi o porto cascalense. Embora o esteiro de Colares tenha funcionado como porto de Sintra ainda durante o Período Islâmico, escoando-se por ali mercadorias para Lisboa, actividade que remontaria pelo menos ao Período Romano[12], terá deixado de ser navegável durante os séculos XII-XIII[13]. Assim, não admira que anteriormente a 1377 o escoamento da produção vinda do hinterland[14] sintrense e que era destinada a Lisboa, Sevilha e a outros locais, incluindo ao Mediterrâneo[15], já fosse feito através de Cascais, que funcionava como porto de Sintra[16].
Marco Oliveira Borges | 2016
[1] A. H. de Oliveira MARQUES, “Sintra e Cascais na Idade Média”, in Novos Ensaios de História Medieval Portuguesa, Lisboa, Editorial Presença, 1988, pp. 144-153.
[3] Marco Oliveira BORGES, “A defesa costeira do litoral de Sintra-Cascais durante o Garb al-Ândalus. I – Em torno do porto de Colares”, in História. Revista da FLUP, IV: 2 (2012), pp. 109-128; idem, “A defesa costeira do litoral de Sintra-Cascais durante a Época Islâmica. II – Em torno do porto de Cascais”, in Ana CUNHA, Olímpia PINTO e Raquel de Oliveira MARTINS (coord.), Paisagens ePoderes no Medievo Ibérico. Actas do I Encontro Ibérico de Jovens Investigadores em HistóriaMedieval. Arqueologia, História e Património, Braga, Centro de Investigação Transdisciplinar «Cultura, Espaço e Memória», Universidade do Minho, 2014, pp. 409-441. Recentemente, no âmbito do programa televisivo “Caminhos” (RTP2), tivemos a oportunidade de participar num episódio sobre “A defesa costeira no litoral de Sintra-Cascais durante o Período Islâmico”. O episódio pode ser visto através da seguinte ligação: https://www.youtube.com/watch?v=xVvG-KbkVvw&feature=em-upload_owner (consultado em 10-05-2015).
[4] Cf. Fátima ROLDÁN CASTRO, El Occidente de Al-Andalus en el Atar al-Bilad de al-Qazwīnī, Sevilla, Ediciones Alfar, 1990, p. 91; Adel SIDARUS e António REI, “Lisboa e seu termo segundo os geógrafos árabes”, in Arqueologia Medieval, 7 (2001), pp. 45-46 e 55-56; António REI, O Gharb al-Andalus al-Aqsâ na Geografia Árabe (séculos III h. / IX d.C. – XI h. / XVII d.C.), Lisboa, Instituto de Estudos Medievais, 2012, p. 123, n. 3.
[5] O poeta nasceu em Alcabideche, em inícios do século XI ou finais do anterior. É provável que não tenha vivido muito para além de 1068 (cf. António Borges COELHO, Portugal na Espanha Árabe, 3.ª ed. rev., Lisboa, Editorial Caminho, 2008, pp. 524-525 e 552, n. 44).
[6] Alguns indícios levam a crer “que a figura do Iqlim em torno das grandes cidades poderá corresponder à área sobre a qual o aglomerado exerce um controlo económico e espacial” (Catarina COELHO, “A ocupação islâmica do Castelo dos Mouros (Sintra): interpretação comparada”, in Revista Portuguesa de Arqueologia, 3: 1 (2000), p. 208).
[8] Cf. Marco Oliveira BORGES e Helena Condeço de CASTRO, “O navegador muçulmano Khashkhash e a possível ligação com o topónimo Cascais: problemas e possibilidades”, in Arquivo de Cascais. História, Memória, Património, 14 (2015), pp. 6-29.
[9] Cf. A. H. de Oliveira MARQUES, Carta de Vila de Cascais de 1364. Estudo e transcrição de […], Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1989, pp. 5-18.
[10] ANTT, Chancelaria de D. Fernando, liv. 1, fl. 56.
[11] Cf. Chancelarias Portuguesas. D. João I, vol. II, t. I, Lisboa, Centro de Estudos Históricos da Universidade Nova de Lisboa, 2005, pp. 151-152, doc. 261; A. H. de Oliveira MARQUES, “Sintra e Cascais na Idade Média”, p. 152.
[13] Mais provavelmente durante o século XII, devendo ainda ter servido de acesso ao interior do território quando Sigurd atacou Sintra em 1109 (cf. Maria Teresa CAETANO, Colares, Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 2000, p. 41; Marco Oliveira BORGES, “A defesa costeira do litoral de Sintra-Cascais durante o Garb al-Ândalus. I […]”, pp. 124-125; idem, O porto de Cascais durante a Expansão Quatrocentista. Apoio à navegação e defesa costeira. Dissertação de Mestrado em História Marítima, Universidade de Lisboa, 2012, pp. 167-168; idem, “Portos e ancoradouros do litoral de Sintra-Cascais. Da Antiguidade à Idade Moderna (I)”, p. 160).
[14] Sobre este conceito, cf. Marco Oliveira BORGES, “Hinterland”, in José Vicente SERRÃO, Márcia MOTTA e Susana Münch MIRANDA (dir.), E-Dicionário da Terra e do Território no Império Português, Lisboa, CEHC-IUL, 2016. Disponível em https://edittip.net/category/hinterland/.
[15] Sobre este assunto e teias comerciais envolvidas, cf. idem, O porto de Cascais […], pp. 94-102.