
Indicada por diversas ocasiões nas fontes árabes medievais[1], Sintra chegou a ser referida como tendo dois castelos de “extrema solidez”[2]. É al-Himyari – decerto baseado na obra de al-Bakri (século XI), embora esta tenha chegado aos nossos dias truncada – quem fornece essa indicação. Uma destas fortificações é o famoso castelo dos Mouros, tendo sido construído de forma estratégica num dos cumes sobranceiros da serra de Sintra. Quanto à época da sua edificação, tem sido avançado que terão ocorrido duas fases distintas, sendo que a mais antiga remontará aos séculos IX-X, à semelhança de outros casos peninsulares, correspondendo à época de fortificação da costa atlântica levada a cabo pelas autoridades muçulmanas face aos ataques vikings[3]. No entanto, os trabalhos mais recentes têm apontado para cronologias de ocupação do local em torno dos séculos X e XI[4].

Qual era o outro castelo de Sintra referido por al-Himyari? Em que local estaria situado? Quando foi construído? Pese embora a hipótese de que um dos castelos de Sintra indicados por al-Himyari estaria edificado no sítio onde se encontra o actual Paço da vila, Maria Teresa Caetano referiu que o autor poderia querer reportar-se ao castelo de Colir (Colares)[5], o qual é apontado por João de Barros (1522):
“E armado [Clarimundo] com alguns criados de Fanimor, começaram a entrar por um rio [Colares] que vinha coberto daquelas maçãs e flores, em tanta quantidade que impediam as naus que vinham umas entre outras com vento mui brando e gracioso […]. Assim que foi esta entrada tão deleitosa, quanto triste daí a pouco espaço, porque chegando ao porto onde se fazia uma grande baía estava um castelo de maravilhosa fortaleza, e nele uma torre mui alta, que descobria o mar daí a dez léguas”[6].
Curiosamente, João de Barros não hesita em considerar o castelo de Colir como sendo mais antigo do que o castelo de Sintra (Mouros)[7]. Porém, a área onde terá sido erguido esse suposto castelo muçulmano sofreu várias alterações ao longo dos séculos, pelo que até ao momento não foi possível confirmar vestígios da sua antiga existência[8]. Durante o reinado de D. Manuel, e a partir da suposta estrutura muçulmana, terá sido construída a Casa da Câmara de Colares, sendo que nas imediações foram detectados elementos pétreos de um portal manuelino. Em inícios do século XVII, o edifício funcionava como Câmara e cadeia colarense, tendo sido adquirido por D. Dinis de Melo e Castro, antigo bispo de Leiria, Viseu e Guarda, que o transformou num palácio para sua habitação por volta de 1620[9]. O palácio terá ardido em meados do século XIX, tendo sido demolidas, já no início do século XX, as ruínas do Paço para a construção de uma escola primária[10]. No entanto, ainda hoje é possível observar uma arcada que restou desse palácio sobranceiro à vila moderna de Colares.

Situado numa área elevada, na vila velha colarense, desse suposto castelo muçulmano tinha-se uma visão privilegiada para o porto local e para o esteiro de mar que invadia o vale de Colares, controlando toda a área em redor e a serra, havendo ainda contacto visual excepcional com o castelo dos Mouros. Ao mesmo tempo, dessa primeira estrutura também se tinha visão singular para a área da actual praia das Maçãs – o acesso naval ao interior do território – e espaço marítimo envolvente, tendo o castelo “uma torre mui alta, que descobria o mar daí a dez léguas”[11]. Assim, do ponto de vista estratégico, faz todo o sentido que existisse um castelo precisamente na vila velha de Colares, onde alguns dados arqueológicos exumados confirmam a presença muçulmana pelo menos desde o século X. Escavações realizadas entre 1989 e 1990, junto à igreja Matriz de Colares, permitiram detectar silos muçulmanos de onde foram obtidos abundantes fragmentos cerâmicos dos séculos X e XI[12].

Maria Teresa Caetano refere que a antiga “povoação fortificada deveria erguer-se no local onde actualmente está a Quinta do Matias, em pleno centro da actual vila, limitada por grossa muralha de feição circular que, na parte de baixo, é extremamente alta […]”[13]. Esse amuralhamento conserva, hoje em dia, sobretudo a Norte, alguns vestígios estruturais muito antigos.


É igualmente João de Barros quem dá a conhecer a lenda da fundação do castelo de Colir, dizendo que o topónimo Colares vem do nome dado a essa alegada fortificação por uma condessa vinda do Norte da Europa. Tendo fugido do rei da Dinamarca, a condessa aportou no esteiro de mar local com duas naus, conseguindo autorização para permanecer e adquirir parte da terra ao rei mouro de Lisboa, isto em troca do penhor de três colares de ouro[14]. Ao mandar edificar o castelo, a condessa, face a esse penhor, deu-lhe o nome Colir, do qual teria derivado, mais tarde, Colares. Embora não tenha sustentado esta lenda, J. Diogo Correia admitiu que o topónimo poderá mesmo resultar “do simples aproveitamento do nome comum, colar, cujo étimo é o latim collare, de collum, pescoço, e que significa mesmo colar, coleira ou golilha”[15]. Numa outra interpretação, é referido que o topónimo Colares derivará do latim colle, estando associado a “colina”, “outeiro”, podendo, por outro lado, estar ligado a colo, de collum[16]. Mais recentemente, Adalberto Alves relacionou o topónimo com o árabe kula, significando “pequeno lago”[17].
Seja como for, e embora por vezes a ideia da possível existência de um castelo muçulmano em Colares seja alvo de cepticismo, desvalorizando-se o que João de Barros escreveu na Crónica do Imperador Clarimundo, uma vez que se trata de uma obra bastante fantasiada, é preciso ter em conta que as crónicas e outras obras antigas, por vezes, conservam reflexos de tradições orais, de documentos e de obras perdidas no tempo, sendo “o único testemunho” para a “reconstituição de acontecimentos muito anteriores” à época em que são escritas[18]. É muito provável que boa parte das informações de João de Barros, senão todas, tenham provindo por via oral, por intermédio de pessoas locais. Refira-se que o autor escreveu a dita obra numa altura em que Colares, devido à descoberta de epígrafes romanas no Alto da Vigia (1505), despertava grande interesse na Coroa, no círculo próximo do rei e nos humanistas da época, pelo que isso poderá ter levado a que se tentasse saber mais sobre a história local[19].
Na impossibilidade de se confirmar a veracidade da tradição sobre este suposto castelo de origem muçulmana vinda de João de Barros e seguida por fr. Joseph de Santa Anna, somente a arqueologia poderá vir a trazer outras luzes sobre o assunto.

Marco Oliveira Borges | 2017
[1] Este pequeno artigo de divulgação histórica, embora com ligeiras modificações e acrescentos, foi adaptado de um estudo mais alargado: Marco Oliveira BORGES, “A importância estratégica do conhecimento do território na formação de um sistema defensivo: o caso de Sintra (Portugal) durante o Período Islâmico”, in Anuario de Historia Regional y de las Fronteras, 22: 2 (2017), pp. 24-25. Disponível para consulta e descarregamento gratuito através de https://www.academia.edu/33596227/A_import%C3%A2ncia_estrat%C3%A9gica_do_conhecimento_do_territ%C3%B3rio_na_forma%C3%A7%C3%A3o_de_um_sistema_defensivo_o_caso_de_Sintra_Portugal_durante_o_Per%C3%ADodo_Isl%C3%A2mico_2017_.
[2] Cf. AL-HIMYARI, Kitab ar-Rawd al-Mi’tar. Trad. por Mª Pilar Maestro González, Valencia, Anubar, 1963, p. 233; António Borges COELHO, Portugal na Espanha Árabe, 3.ª ed. rev., Lisboa, Editorial Caminho, 2008, p. 49; António REI, O Gharb al-Andalus al-Aqsâ na Geografia Árabe (séculos III h./IX d.C.-XI h./XVII d.C.), Lisboa, Instituto de Estudos Medievais, 2012, p. 166.
[3] Cf. Basilio Pavon MALDONADO, Ciudades y Fortalezas LusoMusulmanas. Crónicas de viajes por el sur de Portugal, Madrid, Instituto de Cooperación con el Mundo Árabe, 1993, pp. 20-25; Christophe PICARD e Isabel Cristina Ferreira FERNANDES, “La défense côtière à l’époque musulmane: l’exemple de la presqu’île de Setúbal”, in Archéologie Islamique, 8 (1999), pp. 74-75; Catarina COELHO, “A ocupação islâmica do castelo dos Mouros (Sintra): interpretação comparada”, in Revista Portuguesa de Arqueologia, 3: 1 (2000), pp. 210-211, 214 e 218; Christophe PICARD, Le Portugal musulman (VIII-XIIIe siècle). L’Occident d’al- Andalus sous domination islamique, Paris, Maisonneuve et Larose, 2000, pp. 209-210 e 215; Catarina COELHO, “Castelo de Sintra: evidências arqueológicas do quotidiano entre os séculos IX-XII”, in Isabel Cristina FERNANDES (coord.), Fortificações e Território na Península Ibérica e no Magreb (séculos VI a XVI), vol. II, Lisboa, Edições Colibri/Campo Arqueológico de Mértola, 2013, pp. 739-740.
[4] Maria João de SOUSA, “The castelo dos Mouros, Sintra”, in Portugal. Report and proceedings of the 157th Summer Meeting of the Royal Archaeological Institute in 2011, London, The Royal Archaeological Institute, 2012, p. 53.
[5] Maria Teresa CAETANO, Colares, 2ª ed., rev. e act., Sintra, Câmara Municipal de Sintra, 2016, p. 42.
[6] João de BARROS, Chronica do Emperador Clarimundo, Donde os Reis de Portugal Descendem, quinta impressão, t. III, Lisboa, Na Officina de João António da Silva, 1791, cap. I, pp. 19-20.
[7] Idem, ibidem, cap. I, pp. 33 e 37-38.
[8] Para uma análise do território e possível delimitação do antigo povoado muçulmano da vila velha de Colares, cf. Maria Teresa CAETANO, op. cit., pp. 40-46.
[9] Frei Joseph Pereira de SANTA ANNA, Chronica dos Carmelitas da Antiga, e Regular Observancia Nestes Reynos de Portugal, Algarves, e seus Domínios, t. II, Lisboa, Na Officina dos Herdeiros de António Pedrozo Galram, 1751, pp. 88-89.
[10] Maria Teresa CAETANO, op. cit., pp. 110-113.
[11] João de BARROS, op. cit., cap. I, pp. 19-20.
[12] Catarina COELHO, “A ocupação islâmica do castelo dos Mouros (Sintra): interpretação comparada”, in Revista Portuguesa de Arqueologia, III: 1 (2000), p. 210; idem, “O castelo dos Mouros (Sintra)”, in Isabel Cristina Ferreira FERNANDES (coord.), Mil Anos de Fortificações na Península e no Magreb (500-1500). Actas do Simpósio Internacional sobre Castelos, Lisboa, Edições Colibri, 2002, p. 394.
[13] Maria Teresa CAETANO, op. cit., p. 43.
[14] João de BARROS, op. cit., cap. III, pp. 35-37.
[15] J. Diogo CORREIA, “Toponímia estremenha”, in Estremadura. Boletim da Junta de Província, II: XLIV-XLVI, 1957, pp. 128-129.
[16] Idem, ibidem, pp. 128-129; Maria Teresa CAETANO, op. cit., p. 9.
[17] Adalberto ALVES, “Colares”, in Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013, p. 407.
[18] José MATTOSO, “Notas críticas às notas de fim de volume”, in Alexandre HERCULANO, História de Portugal. Desde o começo da Monarquia até o fim do Reinado de Afonso III, vol. I, Amadora, Livraria Bertrand, 1980, p. 694; André de OLIVEIRA-LEITÃO, Povoamento no Baixo Vale do Tejo: entre a territorialização e a militarização (meados do século IX – início do século XIV). Dissertação de Mestrado em História Medieval, Universidade de Lisboa, 2011, p. 102.
[19] Marco Oliveira BORGES, “A navegabilidade do rio de Colares e a defesa costeira durante o Período Islâmico”, comunicação apresentada no Colóquio Colares – Uma evocação histórica, 12 de Novembro de 2016 (Bombeiros Voluntários de Colares).